Ilustra CrônicaLauraErber porRafaelOlinto abril.22

 

 

Na última crônica tratei do ovo com um cavalo dentro. Continuo tentando dar antirrespostas à pergunta: o que é um poeta. A criança disse que era um cavalo galopando dentro de um ovo. Talvez seja uma égua. Em apuro ontológico, convoco de novo outras vozes. Do mato fundo, acompanhado por uma banda sonora de capivaras rechonchudas, chega Ricardo Chacal. Cumprimentam-nos e lanço a pergunta no ar denso de uma chuva que ameaça cair. A resposta chega zás-trás: “o poeta é Orfeu fodido”.

Orfeu fodido, o epíteto cativa, faz pensar em alguém que encanta os bichos enquanto segue seu rumo, maltratado, maltrapilho. Chacal prossegue: “poeta pode ser mercúrio o carteiro/ cartas no contratempo/ na contramão do mundo”.

A imagem do poeta-carteiro, que extravia todas as mensagens enviando versos de amor para o nada, é inspiradora, participa da própria redefinição da poesia lírica como poesia sobre esse percurso sem fim. Releio o último verso: “na contramão do mundo”. Coincido com ele, mas logo me pergunto se o próprio mundo hoje não anda na contramão do mundo. Em caso afirmativo, significaria que poeta e mundo andam de mãos dadas numa época convulsiva, mais fodida do que órfica.

Uma guerra chega ao oitavo dia num ponto não muito distante daqui, na Europa Central. Escrevo de Budapeste. Vim fazer pesquisas para um romance, com apoio de uma bolsa da Central European University. A própria história dessa instituição já daria um romance político, mas não o escreverei.

Poesia e guerra, é o tema colocado a toda e todo Orfeu fodido nestes tempos estranhos. Quando Borges despertou para os horrores da Guerra das Malvinas, escreveu um dos melhores poemas de guerra jamais escritos. Em poucos versos conta a história de um planeta dividido onde se encontram Juan López e John Ward. O argentino Juan amava Conrad, o inglês John tinha aprendido castelhano para ler o Quixote. Numa pequena ilha, sem se conhecerem, exterminaram um ao outro. Borges conclui dizendo que o fato ocorreu “em um tempo que não podemos entender”. Mas esse tempo se repete, retorna, nos envolve como o ovo ao cavalo ou égua que galopa. Estamos dentro dele como dentro de nossa própria pele.

A poeta húngara Ágota Kristóf teve de fugir de seu país em 1956, quando a Hungria foi invadida por tropas russas. Ela deixou para trás o caderno onde escrevia seus poemas. Estabeleceu-se na Suíça e começou a escrever em francês, valendo-se de parco domínio da língua. Fez dessa limitação um exercício de contenção. Haruki Murakami cita Kristóf quando relata seu experimento de usar o inglês que não dominava muito bem para tentar melhorar a linguagem do seu primeiro romance. Ágota Kristóf tornou-se célebre por seus romances. Já no fim da vida, autorizou a publicação dos poemas perdidos, os poemas dos cadernos que havia deixado na Hungria ao fugir. Kristóf nunca aceitou bem a perda dos seus primeiros escritos, e insistiu na reconstrução. Nos primeiros anos de exílio no novo país, tratou de reescrevê-los, mantendo os versos que conseguia rememorar, inventando outra vez o que não lembrava. O que é uma poeta? Para mim é também isso, uma jovem que foge da guerra levando poemas na memória. Um dos poemas reconstituídos diz:

as grandes montanhas da primavera estão de volta, mas
não se assemelham a nada no fundo do lago
não há nada além de lodo

Enviei a pergunta a Tatiana Pequeno, autora de um poema impressionante sobre o que pode acontecer dentro de um ônibus na cidade do Rio de Janeiro. Para Tatiana “uma poeta talvez seja pelo aprendizado das cozinhas, pela escuderia das crianças, pela natureza da ventilação sob as nossas calças que precisam ser sempre apertadas. Uma poeta se pega pela mão para esquecer/escrever a moldura desses tecidos molhados – vestidos, bandeiras, papéis, lenços, couraças, panos íntimos – e livrá-los dos excessos de fungos”.

Vou terminar esta crônica convidando Lu Menezes a se juntar ao coro de antirrespostas. Lu Menezes sabe algo sobre o azul e sobre o tempo. Foi ela quem disse que “a imperfeição é o nosso paraíso”, libertando-nos de tentar escrever poemas perfeitos. Os poemas da Lu Menezes são perfeitamente imperfeitos, mas antes é preciso lê-la:


O QUE É UMA POETA?

Por Lu Menezes

Conheço algumas poetas, e a dessemelhança entre elas me faz sentir menos configurável ainda. Certo sociólogo, Georg Simmel, já afirmou, aliás, que as mulheres diferem mais entre si do que os homens, será?

Ante a pergunta de fato “irrespondível”, um denominador comum entre “elas” e “eles” poderia, contudo, integrar breve sondagem, permitindo dizer: uma poeta é uma outsider social – com desmedido apego a insights.

Thiago de Mello foi logo taxado como “delinquente confesso” quando declarou a agentes ditatoriais acreditar em “conscientização da massa” via “poesia revolucionária” – só acredito na autorrevolução da Poesia. E que nossa sociedade, em geral, não lhe dá mínima bola por não render mínimo pé-de-meia a 99% dos poetas – delinquentes inconfessos.

Assim, uma poeta nunca se identifica como tal junto à vizinha vendedora da Avon – para quem um “espantador de pombos” ou um “cheirador de axilas”, ganhando algum dinheiro, terá decerto mais valor. Omitirá seu ofício de poeta para os aeroportuários da imigração, e até mesmo para colegas da Academia que se indignariam com a pretensão extracanônica: trata-se, afinal, de laurel com aura máxima no Olimpo cultural.

Há, entretanto, além do prazer de escrever e (melhor ainda!) ler poesia, outros belos bônus. Incluem a proximidade de gente compensadoramente poética e poiética. Incluem ter na poesia presente, na variedade da Arte e da vida, fiel companhia.

Por exemplo, à falta de tangerina e kiwi, morde-se uma maçã. Que não é só a fruta insossa dos insípidos Adão e Eva. É também Cézanne... É Cesário Verde traduzido por Cabral em O sim contra o sim: Assim chegou aos tons opostos/ das maçãs que contou:/ rubras dentro da cesta/ de quem no rosto as tem sem cor.

Uma poeta é sempre alguém às voltas com os “tons opostos” desta nossa bendita “não profissão”.