Cronica Laura Hana Luzia
Uma criança inspirada disse certa vez que um poema é um cavalo a galope dentro de um ovo. É uma imagem tão perfeita, que temos vontade de conversar mais com essa criança iluminada, perguntar a ela muitas outras coisas, o que é a morte, o tédio, ser feliz, o que fazer, como viver. Acho que se eu pudesse entrevistar essa criança perguntaria quem pôs o ovo estupendo, um cavalo ou uma galinha? Diante do impossível, a imaginação toma seu rumo, se bifurca, colhe flores do mal de um jardim suspenso, vê navios, peixes que dançam sobre bulbos de junco, ressuscita línguas mortas, penetra a superfície interna dos corpos e, depois de muito viajar, se recolhe, fica parada num canto captando o eco ruidoso das coisas imediatas e decisivas.

Há muito tempo saiu de moda dizer o que uma coisa é ou deixa de ser. Desde a virada anti-interpretativa nos preocupamos mais com o funcionamento da arte do que com definições que nos digam o que ela é e pacifiquem nossos palpitantes corações. Acontece que ninguém é de ferro. De vez em quando topamos com definições tão alumbrantes que nos lançam de novo nos braços do prazer ontológico de dizer o que é o que é.

Foi assim com um pequeno texto do argentino Isidoro Blaisten.

Eu estava em Buenos Aires para lançar um livro e gozar um pouco da vida mundana que a literatura de vez em quando proporciona. Estava hospedada na casa de minha tradutora, Julia Tomasini. Numa de nossas tertúlias sem fim, falamos sobre o que de maravilhoso na literatura argentina permanece ainda desconhecido ou pouco lido no Brasil e vice-versa. Talvez porque pressentisse uma grande perda, eu andava em busca de leituras que fizessem rir, foi então que Julia tirou o Blaisten da manga ou da cartola. 

Disse que não fazia muito tempo tinham lançado em nova edição as suas Anticonferencias, “una rareza encantadora, una forma de charla que te lleva de cualquier parte a cualquier otra”. Passo ao português, mas imaginem que ainda é a Julia falando: “Você vai adorar, Blaisten é uma raridade na literatura argentina. Não por ser secreto ou não lido, mas por causa do humor, tem histórias onde a sátira e o absurdo constroem maravilhas, El tío Facundo, La salvación ou Victorcito, el hombre oblicuo. O ouvido de Blaisten para os detalhes da língua falada lembram Puig ou Arlt. Enquanto a absurda e sofrida existência de seus personagens tem algo de Wilcock”.

Na primeira oportunidade, corri para uma livraria atrás do meu Blaisten. Isso faz quase 4 anos, de lá pra cá o mundo se transformou numa espécie de antimundo, onde os conferencistas são coaches e a poesia tenta sair de seu próprio labirinto. Voltei recentemente ao Blaisten interessada nos mistérios do riso em tempos de horror. Como sabia a Hilst, onde há muita tristeza o riso é crucial. Divido então com vocês minha anticonferência predileta, O que é um poeta?, numa tradução improvisada:

“Penso que é um gato de cinco patas, um olmeiro que dá peras, alguém que senta na porta de casa e não vê passar o cadáver do seu inimigo, tampouco vê passar o cadáver do seu amigo, vê passar o seu próprio cadáver.

O poeta é o único ser que se banha duas vezes no mesmo rio, o único que se molha duas vezes na mesma chuva. Shakespeare, o poeta que disse ‘o resto é silêncio’, o poeta que disse que a vida é uma história cheia de som e fúria contada por um idiota, disse que os poetas são os espiões de Deus. Sempre estranhei esse plural. Por que os poetas são os espiões de Deus e não o poeta é o espião de Deus?

Simplesmente porque Deus é o maior de todos os poetas. E os poetas são, então, os espiões do espião supremo. Deus é uma luz suprema imprecisa que os poetas enxergam sem perderem a visão, sem sequer precisarem apertar os olhos enquanto os desconcertados tropeçam na escuridão”.

É um texto delicioso, que nos deixa sem muita coragem para elaborar outras respostas à antipergunta que apresenta. Aquela criança que compareceu na primeira linha desta crônica certamente teria coisas belas e precisas a dizer. O jeito é abrir espaço para outras vozes, fazendo da crônica uma caixinha de ressonância. Convoquei alguns e algumas colegas de antiprofissão.

A primeira resposta chegou feito um azougue, do Zuca Sardan: 

“Era um vez Deus, um bom velhote, que certo dia se perguntou… ‘Por que só existo eu?… Vou inventar um papagaio, que converse comigo.’ E Deus inventou o papagaio, e achou que estava bom. Daí pra frente se embalou e passou uma semana inteira inventando o Mundo”. 

O papagaio de Deus foi o primeiro eco do ego de alguém, foi também o primeiro espião de Deus na Terra criada pelo Criador, mas neste ponto constato que meu espaço está acabando e que não há Deus nem céu que me proteja dos excessos. Assim a próxima resposta, da poeta Lu Menezes, terá de esperar o mês de abril. Com ela virão outras vozes, numa confraria de impossíveis, festa de vaga-lumes no edifício-garagem do Deus que não existe, cavalos correndo dentro de um ovo.