Convalescer é um trabalho imenso, em geral penoso e muito chato. Envolve atravessar sentimentos ingratos, o fel do pessimismo, o enfado, o desespero, em certos casos o fim do ano.
Nem sempre a convalescença proporciona o luxo da leitura ou das boas ideias literárias. Custa muito passar mal e é desgostoso ter de atravessar horas e horas em função do próprio mal-estar.
Foi mais ou menos assim que me vi convalescente, exausta, entediada, atenta e monotemática, impedida de escrever a crônica do mês dentro do prazo. Na virada do ano, sequestrada pelo aparato dos cuidados médicos pós-operatórios por conta de uma questão não grave nem aguda, mas também não desimportante, tive de fazer a passagem abraçada ao ceticismo. Velho amigo, velho inimigo.
Você sabe como se chama a flor branca que nos puxa para o futuro? O ceticismo abre a boca e diz que não há futuro, e muito em breve não haverá flores brancas. O ceticismo ri com a boca cheia de dentes. Laurie Anderson tem um poema sobre o nome das flores brancas.
Havendo seres sencientes, haverá poemas sobre o que nos empurra para o futuro, haverá ainda e apesar de tudo aceleração dos corpos que se sentem atraídos mutuamente, flores brancas cujo nome nos escapa, o sem sentido dos tempos.
A distância entre a descrição médica de como tudo vai se passar no futuro e como tudo de fato se passa no presente pós-cirúrgico é sempre maior que a distância entre fato e ficção, superstição e realidade, mito e verdade, a intenção da escritora e o seu romance publicado.
Romances são maquetes, são modelos, dizia Barthes, são um tipo especial de simulação do mundo; já as descrições médicas são simulações das próprias descrições médicas, remetendo aos sonhos descritos em livros imaginados pela medicina. Por isso, talvez, a caligrafia médica seja frequentemente uma caligrafia de outra espécie, matéria onírica, como os nomes de fantasia, uma literatura para detetives, palavras com que as próprias palavras sonham em se vestir.
Das coisas que chamam atenção no ambiente hospitalar, o fato de os decoradores desses espaços terem achado razoável e até inteligente adotar a estética dos shoppings diz algo sobre nossa indigência. Há crematórios que também se esforçam por parecer shoppings, e é talvez por isso que alguns shoppings se pareçam tanto com o inferno.
Enquanto aguardava o tomógrafo começar a funcionar, pude admirar a fotografia de uma copa de árvore em contraluz que decorava o teto da sala. O contraste entre o cheiro da sala e o não cheiro da árvore era atordoante. A imagem era bem-feita, bem-impressa, montada em caixas de luz. Tão artificialmente real, que eu quase poderia dizer que, de fato, fiquei um tempo sob aquela árvore aguardando a chegada da técnica, absorvendo os feixes reluzentes que atravessavam a copa verdejante e batiam sobre meus olhos, ofuscando um pouco a visão. Quanto tempo estive ali? Não sei o que pensar sobre esse tipo de imagem que dá tapinhas no nosso ombro e diz, com uma voz falseada, vai ficar tudo bem, querida. Por outro lado, a imagem fala comigo e me diz com eloquência que odeio estar naquele lugar onde estou, à espera da técnica do aparelho há vários minutos, o que ao menos me deu tempo para decidir que desta vez vou me recusar a tomar o contraste, e se me perguntarem vou dizer que já estou quase vomitando antes de tomar qualquer coisa.
De volta ao corredor do shopping, explico ao médico que não quis tomar o contraste, ele diz que se o exame não ficar bom “vou te devolver para máquina”. Rio da sua honestidade, é bom quando as palavras não mentem, ele ri de volta, e já nada faz muito sentido, nem a imagem da copa da árvore, nem o laser que nos vai fatiando em camadas de imagens muito finas, a fala espontânea do médico que sem me conhecer acha por bem me chamar de “Laurinha” no dia 31 de dezembro.
Toda doença é um pouco como o cachorro cego e enfurecido do conto de Coetzee. O corpo não sabe escrever, o dinheiro não sabe falar. Quando o corpo começa a ser escrito, a coisa já é outra. Tem dias que é mesmo um alívio poder dizer sim, onde dói é aqui, moço, exatamente aqui, com um vigor de criança de no máximo cinco anos que coagula tudo em uns quatro dias.
O que eu gostaria de ver num hospital? Um enorme Totoro com a cara zangada, o caminho das framboesas, o rosto de Buster Keaton sério, versos de Issa Kobayashi.
Houve uma época em que a sala do meu pediatra era decorada com papel de parede de árvores perdendo as folhas no outono. Esse tipo de transporte pela imagem, de gosto tão duvidoso, tem a vantagem de despertar a simpatia pelo exagero. Alguém pendurou origamis pelos corredores do hospital. Não sei o que pensar sobre eles, são graciosos, mas talvez prefira a foto da árvore sobre o tomógrafo.
Na passagem de ano, eu li coisas soltas nas redes, em looping, como se o ano não conseguisse passar, como se eu entrasse num túnel de superstições frágeis, como a esperança nas charges do Henfil. A grande maioria cumpria função de autoajuda, frases de positividade. Mantras? Li também postagens tipo recensão do que fora realizado em 2021, como um currículo que se desembrulhasse durante a festa, antes do brinde. Do fundo da convalescença, eu só conseguia ver em tudo isso a cara estranha da esperança se olhando no espelho, uma boca podre sorrindo para nós.
Estar doente é uma condição de sensibilidade e um estado de contemplação específico. Grandes artistas já fizeram obras horrivelmente equivocadas para hospitais, inclusive para as alas infantis, o que é ainda mais vergonhoso. Não é fácil se conectar com esse estado ou condição, assim é que um anjo de metal foi colocado no setor de internação do principal hospital de Copenhague, obra comissionada por uma fundação importante, e executada por um artista de sucesso. Um hospital não é um museu, e se for, então é o último dos museus, onde tudo está sendo visto com náusea, dor ou medo. Não há tempo de percorrer circuitos metafóricos demais. Mas a literalidade também pode ser cruel. Para quem está doente, tudo fede um pouco, tudo é demasiado lento, tudo falta ou é brusco demais.
Quem convalesce sente medo, mas também sente medo de sentir medo. Seres sencientes, é nisso que dá. Porque exalar o medo pode fazer com que a doença nos ataque com mais fúria, como o cachorro do conto de Coetzee atacava com fúria a vizinha que passava de bicicleta exalando medo por todos os poros, ladeira acima, rua abaixo. Por isso é tão difícil ser senciente e convalescente. As doenças nos farejam de longe quando vamos descendo a ribanceira, cegos e alegres de bicicleta; nos farejam sorrateiras sob a copa das árvores artificiais, farejam nosso medo, mesmo antes que ele nos atravesse.
Robert Walser sabia o que era ser convalescente e certamente conhecia o nome secreto da flor branca que nos arrasta com fúria para o futuro. Uma vez escreveu para a sua irmã Lisa: “Sobretudo não pensar, querida Lisa, pois eis o maior pecado. Antes a luxúria que a tristeza. Deus odeia os tristes. Mas tudo passa tão depressa. Morremos tão rápido. Apenas o tempo de se tornar demente. Há algo de maravilho em tornar-se demente. Mas não se deve desejá-lo, acontece por si só.” Feliz 2022.