Não consegui fazer tudo caber na última crônica. Tomo a liberdade de perseguir ainda um pouco a alma encantadora das livrarias. Desta vez há uma cena de casamento, história real contada pela Elisa Ventura, idealizadora e responsável pelas livrarias Blooks. Ao ser perguntada sobre o que há de mais interessante em se manter uma livraria de rua, Elisa disse que o melhor são as surpresas do real. E contou sobre um pedido maravilhosamente surpreendente de dois noivos que procuraram a Blooks para fazer a cerimônia de casamento dentro da livraria. O casal havia se conhecido na livraria, começaram a namorar na livraria, naturalmente decidiram se casar na livraria. “Fizemos a cerimônia com a loja aberta e foi lindo”, contou Elisa. Como terá ocorrido o esbarrão inicial desse amor que surgiu em meio ao amor aos livros?
Aqui onde moro e de onde escrevo gosto de visitar a livraria Politikens Boghal. É centralíssima, cravada numa esquina da praça da prefeitura. Durante muito tempo foi uma livraria meio caída onde entrávamos pra fugir das rajadas de vento. Tudo mudou quando Christina Thiemer Grønborg se tornou livreira ali. Fez uma seleção não só formidável, mas com alma e, com direito a muitos minilivros de pequeníssimas editoras que publicam prosa seleta contemporânea. Christina ainda teve a ótima ideia de espalhar pelas prateleiras da livraria, bilhetes que ajudam a clientela a encontrar aquilo que procura. De modo que se alguém estiver na letra C de “Ficção” procurando um Raymond Carver, topará com um bilhetinho dizendo “os Carvers não estão ali, "procure entre os Clássicos”.
A ideia é boa e poderia ser radicalizada. A pessoa está a flanar na seção de autoajuda quando um bilhete bem situado captura sua atenção: saia já daqui, siga até o fim do corredor, procure algo assombroso na seção de literatura russa moderna. Leia Bulgákov.
Pensei até em levar os leitores comigo num passeio descritivo, estilo tim-tim por tim-tim, mas ao entrar na Politikens Boghal com intenções de realizar pesquisa de campo, fui tomada por uma desagradável sensação de tontura. Fiquei nauseada diante da profusão de novidades, livros que piscavam o olho, mexiam-se, murmuravam, e havia alguns que até cantavam um canto opaco e misterioso prometendo a dor de paraísos interditos. Agarrei-me ao mastro da minha falta de tempo como os amigos de Ulisses se agarraram ao medo do canto das sereias (que Ovídio, com razão, chamou de “as doutas sereias”) contentando-me em apenas folhear um ou dois exemplares. A poeta russa Marina Tsvetáieva também se assustava com a vida dos livros, dizia haver livros tão, mas tão vivos, que enquanto não estão sendo lidos podem estar fazendo alguma coisa misteriosa, alguns podem estar virando flor, virando rio.
Outra imagem evocável é a da criança que se afoga lentamente no denso rio de chocolate da história de Roald Dahl que virou filme. Um pouco assim me senti diante da sedutora oferta de tanta boa literatura. “Boa literatura”, sim, mas não por capricho ou desejo de ressuscitar em crônica o fantasma do paideuma (mais vivo que o espectro do comunismo), apenas creio que cada um deve poder zelar por suas preferências, inclusive para poder ter o prazer de ter o seu próprio sistema de gosto contrariado.
A pandemia também tem o seu lugar aqui. Isso de perder o hábito de experimentar o “furioso contato da existência” (obrigada de novo, Drummond) afetou certamente o prazer do furioso contato com as livrarias. Tendo hoje de dedicar mais tempo a escrever do que a ler, o encontro com a abundância e variedade de livros que falam, tilintam e nos convocam, fica por demais parecido com a experiência de uma espécie de aflição. Não sou mais a mesma, vertigem da aceleração…
Passo a algo maravilhoso, que não é casamento em livraria. Os jovens estão unpacking Maria da Conceição Tavares. Juro que é sensacional e fenômeno que merece nossa atenção. O nome da economista alcançou os trend topics do tuíter, ela virou meme e tem até um canal engraçado dedicado a seu acervo no YouTube. Estão compartilhando e comentando pedacinhos de aulas em que ela esbraveja, xinga a porra da burguesia e ensina a realidade real dos abusos, sempre com lucidez arrebatadora e um cigarrinho aceso entre os dedos. Conquistou assim uma geração de estudantes cientes de que o futuro não tem nada de radiante, mas que tampouco aceitam o pessimismo paralisante e as soluções falaciosas que produz. Toda uma máquina de tristeza e astenia que alimenta inclusive a venda de livros de positividade venenosa e outros quitutes que ajudam a amaciar a carne antes de moer gente.
Pra terminar: alguém tascou um google translator na célebre frase de Borges “Siempre imaginé que el Paraíso sería algún tipo de biblioteca” e agora ela circula assim pelas redes: “Sempre acreditei que o paraíso fosse uma espécie de livraria”. Alto lá, amamos e precisamos das livrarias, queremos até namorar e casar dentro delas, mas o que tá errado não tá certo. No espírito das redes e dos títulos que vendem: “mais Maria da Conceição aos berros, menos perdão, resiliência e robôs que não distinguem biblioteca e livraria”. Como diria Bobi Bazlen, não existem paraísos perdidos, apenas superados. Bom dezembro se for possível!