Crônica Hana Luzia novembro.21

 

A trilha sonora desta crônica começa com Brad Mehldau tocando Blackbird. Então você sente que as coisas começam a amaciar, e se descolam, pelo menos um pouco, da imensa poça de lama em que uma parte do mundo chafurda, a outra também — só que menos dramaticamente. Noutros casos, os piores, chafurda-se numa ex-poça, pura secura que só corrói, como a faca só lâmina de Cabral só fere.

Esta é uma crônica sobre livrarias, o avesso dos horrores. Que assim seja.

Uma livraria não é só um lugar onde uns vendem e outros compram o objeto chamado livro, e disso sabemos desde muito antes da eclosão da pandemia e muito antes até do advento da internet, onde é possível comprar livros sem viver a experiência-livraria.

Livrarias — não falo aqui das grandes cadeias, mas das pequenas ou médias, com alma e atmosfera próprias — são um pouco como pessoas cuja casa frequentamos, cada uma com seu jeito de receber e conversar.

Alberto Giordano, crítico literário, professor e escritor argentino, tem um livro chamado Volver a donde nunca estuve que fala sobre seu pai ao mesmo tempo em que discorre sobre escritas íntimas e o lugar do “eu” na literatura. A certa altura, descreve uma livraria que costumava frequentar com o pai. Era inteiramente dedicada a livros sobre xadrez e, segundo Giordano, foi essa livraria chamada Caissa, situada na região Tribunales, que sedimentou no autor a ideia de Buenos Aires como uma cidade de livrarias.

Nunca estive na Caissa, mas Buenos Aires é mesmo uma cidade diabólica. Morro de medo e de vontade de voltar. Medo porque sempre fico como se entorpecida, compro mais livros do que devia (e podia), e vontade porque alguns dos meus livros prediletos descobri nas livrarias de lá. Cito um: El testigo lúcido, livro de María Negroni sobre o lado sombrio da obra de Alejandra Pizarnik.

De sombra em sombra, volto ao Brasil e o fundo musical agora é Gal Costa cantando Saudosismo. Pra não dizer que só falei de trevas, entre as notícias mais alegres que me chegaram daí nesses tempos duros, incluo a abertura de novas livrarias e sebos. Megafauna e Gato Sem Rabo, ambas em São Paulo — a primeira no edifício Copan, a segunda exclusivamente dedicada aos livros escritos por mulheres —, e o Jacaré, novo sebo no Largo do Machado, Rio de Janeiro, que pelas fotos parece um espaço tão simpático quanto o nome.

Aliás, deve ser bom demais batizar uma livraria. Em nome das Deusas dos livros, eu te batizo: Berinjela! Essa fica no centro do Rio. O Daniel Chomski, seu fundador, disse que escolheu o nome do saboroso legume de casca lustrosa e roxa porque na época de sua inauguração os sebos da cidade tinham nomes sóbrios ou sisudos, e de certo modo espantavam os estudantes. Daniel queria atrair um público mais jovem e universitário, o nome Berinjela atentava contra aquela camada de verniz sobre mofo e causava um estranhamento bem-humorado que deu muito certo. “Visitem a Berinjela”, “Visitem o Jacaré”, olha só que frases boas.

Perguntei a uma amiga hipermnética, qual foi a livraria da sua vida. Ela, rainha dos pormenores, respondeu assim por zap: “Hum… era uma chamada Afterwords, no Dupont Circle, em Washington D.C. Isso foi nos anos 1990. Pode parecer fútil, e sei que agora é comum, mas foi uma das primeiras livrarias com café. E o café era numa espécie de estufa, um pátio todo envidraçado, sabe? E tinha waffles com frutas vermelhas e manteiga batida fresca. E maple syrup quente! E umas luzinhas coloridas… Eu adorava a seleção que eles faziam, comprei lá uns quatro livros do Edward Gorey que tenho até hoje”.

Comentei com meu irmão, que vive em Tóquio, sobre a crônica das livrarias. Disse ele que no bairro Ginza há uma livraria minúscula chamada Morioka Shoten. Diante da profusão angustiante de lançamentos, o seu dono, Yoshiyuki Morioka, decidiu abrir uma livraria que trabalhasse um livro por vez. Assim criou um esquema, talvez único no mundo, de expor e vender apenas um título por semana. Dizem que vende muitos exemplares do livro escolhido.

Minha primeira experiência-livraria não tinha estufa com café e waffles, mas tinha também um clima feérico que não esqueço. Era a Malasartes, uma livraria infantil na Gávea. Pequena brava sobrevivente, segue de portas abertas com os mesmos banquinhos e mesas de metal coloridos que ajudavam a produzir aquela suspensão gostosa do tempo, tão boa e necessária, sobretudo agora que a aceleração é mais impositiva. Tinha até uma seção de críticas, da qual participei uma vez com muito orgulho, aliás.

A Nanni Rios, fundadora da Baleia, de Porto Alegre, disse que a pandemia a obrigou a inventar um ambiente virtual que traduzisse um pouco o clima da livraria. Conseguiu sobreviver, mas sabe que nada se compara ao imprevisível que só acontece no espaço físico. Então perguntei à Nanni qual a coisa mais bacana ocorrida dentro da Baleia. A resposta foi certeira: “O mais bacana de manter uma livraria física é o contato com as demandas literárias de cada um. É ver que muita gente sabe que pra qualquer assunto na vida existe um livro. E que a saída pra lidar com alguns temas pode ser literária, e não necessariamente literal”.