Crônica Laura 1 Hana Luzia outubro.21

 

Nos dias crônicos, sigo fenômenos inquietantes, às vezes mais que a própria poesia. Interesso-me por tudo, mas logo me entedio. Por exemplo, as aspas, andam sempre aos pares, mas em sonhos se perdem, nunca se fecham, nunca se acham. De tanto ler coisas aos pedaços, começo a desconfiar que a realidade seja um golpe de citações bem-arranjadas. Também coleciono fragmentos e me entrego aos algoritmos. Sigo páginas que me perseguem. O poema ensina a cair? Nem mesmo a não cair. Como cometas em miniatura, atravessam os céus internéticos frases e versos de livros que não teremos tempo de ler, como deliciosos (ou enjoativos) aperitivos de uma festa à qual ninguém nunca comparecerá.

Um dia também amei os versos de Luiza Neto Jorge sobre o poema que ensina a cair. Na íntegra é mais esquivo, fala dos vários solos sobre os quais é possível se estabacar numa queda de amor e fala de uma outra queda, mais misteriosa, talvez apenas o tremor de uma comoção que nos suspende. Numa certa época gostava de ler esse poema colado a um comentário de Louise Bourgeois. Nalgum lugar de seus diários, ela falava do próprio trabalho como de uma arte da queda no aqui e agora. “No início, o meu trabalho era o medo de cair. Mais tarde, tornou-se a arte de cair. Como cair sem se machucar. Depois se tornou arte de estar aqui, neste lugar.”

E na timeline da minha cabeça logo em seguida ecoava a voz de Gil em Refavela (1977), quando fala dessa mesma arte de estar aqui e agora, mas como arte da presença, uma suavidade que não se aprende nem se ensina, tem mais a ver com uma espécie de êxtase sonolento em que se entra, ou com poder flutuar alguns milímetros acima do solo. Marina Tsvetáieva definiu a poesia como “o primeiro milímetro de ar acima do chão”. Uma definição já é um ensinamento?

Adormeço e sonho com a resposta.

Claro que é um pesadelo e já começa com uma fuga, vejo-me correndo da voz das aspas do poema de alguém — nem Luiza, nem Marina, nem Gilberto —, a voz me persegue pela casa dizendo em versos livres o que devo fazer para ser feliz (mas não demais) e amar muito (mas não demais), fala da irrupção da alegria na infelicidade, da coragem no medo, da empatia na indiferença e no fim me pede para ser interessante sem ser chata.

É um poema anticontemplativo e estridente, tento me esquivar, mas a coisa que fala através do poema sai gritando pela cozinha, tranco-me no banheiro, ela me descobre e, do lado de fora, continua a atirar aspas de livros que nunca lerei. Fecho os olhos como se pudesse parar de escutar; a coisa saca da cartola coelhos declamantes, pequenos poemas fofos, revestidos de pelúcia branca, que se multiplicam feito gremlins ensinando coisas numa velocidade demoníaca. Os mais saltitantes falam ao contrário como o próprio demo; começo a ensurdecer. Abro a porta do banheiro e saio correndo em direção à saída, está longe demais, é impossível, o cromo da geladeira da marca Lispector me captura, penso em me enfiar lá dentro, dentro da grande boca gelada de Clarice talvez o ensinamento do poema em aspas não me alcance. Abro a porta, e lá dentro, do gelo derretido, irrompe a voz do poema que ensina. A voz me olha (não sei explicar como) e diz: “No Egipto fazemos o que queremos”. Salva pela aleatória palavra “Egipto”, finalmente desperto.

Com Adília Lopes, que não queria me ensinar nada, aprendi que existem a palavra “osga” e a palavra “goivo” e que talvez seja hora de rever meu horror à palavra “poetisa”. A poesia talvez nem exista, os poemas existem, rodopiam e bagunçam a paisagem como ventos fugindo de uma ilha.

Gosto mais dos poemas que são abertos e secretos do que dos poemas que são pílulas de sabedoria. A poesia é sua própria A legião estrangeira e a narradora do conto dizendo “mal me conheço”. O poema é o drama do cacto e o sorriso da ruína. O poema é a água de um instante. Mas é também uma queimada, uma devassa e uma freira. O poema é a estátua incômoda e o fogo que a consome. Poesia é mato.

Há poemas que pedem para serem lidos em silêncio. Não significa que nos ensinem alguma coisa sobre falar demais. Todo poema nos transforma em leitora, leitorx, leitores. O poema acende as luzes que indicarão a saída de emergência que você não vai alcançar pela leitura do poema. Um poema de desespero pode ter gestos precisos e displicentes como os de uma aeromoça cansada de voar. A poesia rumo ao pódio ou rumo à prosa. Manuel António Pina disse certa vez que os livros servem para ser lidos e para ser tidos. O mesmo não podemos dizer do poema. Como é que se pode ter um poema sem o ler? Citações, citações, citações. Sou brasileira, confesso, minha culpa, meu pecado, também pratico esse esporte pós-olímpico. Vamos com pedacinhos de João Cabral: “Trouxe o sol à poesia/ mas como trazê-lo ao dia?”. Quase invejo quem acredita hoje que diminuir a distância entre poesia (ou arte, ou literatura) e vida é usar a poesia para ensinar a viver a vida, como se bastasse trazer o sol à poesia, que ela acenderia a luz do dia. E coitada da psicanálise. Mas esse é o título de outra crônica, se vier a escrevê-la vai vir com o subtítulo “Tudo o que você queria ser”, na voz do Milton.

Aqui está o poema, desossado e imberbe, repercutindo a respiração dos dias de retrocesso. O poema é um bode. Mastiga livros entre cadeiras e pratos, digere qualquer coisa, caga bolinhas compactas. A poesia reencontrou uma função cívica, reencontrou-se com a força declamatória da língua. Mas meus ombros não suportam o mundo, eu não suporto algumas pessoas, e alguns livros são realmente insuportáveis.

Nos dias crônicos, escrevo poemas:

não sei contar tudo mas sei que
fazia muito calor
e tudo cheirava a amêndoa e golpes de Estado
o táxi avançava entre a lua
e o bondinho
da janela avistávamos
caminhos onde ninguém espera nada
ou busca coisa alguma
eu perdia várias vidas no trajeto
já prestes a desmaiar
entrava em mim o cheiro intenso de uma flor
e me erguia
o volume das canções
alto demais invadia cada casa
e nossa história
de um entardecer tão triste
onde tudo caía
Rapunzel, a trança e a própria torre
mesmo sabendo
que sempre algo se salva
pelo silêncio:
leve-me ao outro lado
da cidade leve-me
agora
e nessa exata noite
e em todas as outras noites
havia vozes escorrendo do aqueduto
e aspas
“No Egipto fazemos o que queremos”
e renúncias
“para cada beijo haverá um esgar”
e palavras
“leve-me contigo ao outro lado”
e palavras
“mas não agora”


***

Ainda sobre as aspas, um último capricho: prefiro as aspas angulares às curvas e prefiro as curvas às verticais. No meu computador, as aspas não são curvas, nem angulares, nem verticais, são diagonais.

 

Crônica Laura 2 Hana Luzia outubro.21