Cronica Hana Luzia 01 julho.21

 

“Coisas belas são difíceis” é uma frase platônica pichada na fachada de uma pequena casa arruinada em Tiradentes, Minas Gerais. Toda vez que vou lá, procuro me certificar de que a pichação sobrevive ainda. Em tempos de notícias grotescas, é importante manter um arsenal de beleza acessível. Coisas belas são difíceis, e não só no sentido vislumbrado por Platão. A beleza difícil é recurso de enlace, beleza que convoca ao presente e ajuda a fincar pé no mundo que parece de mil modos querer nos expulsar.

Há um vídeo curto na internet em que o pintor David Hockney dá conta do assunto de maneira simples e direta. No vídeo ele diz que “o mundo é muito muito bonito se você olhar pra ele”. Parece simples, mas não é, porque olhar, olhar mesmo, mais do que ver, é difícil. Difícil também porque a afirmação da beleza do mundo hoje se dissolve na afetação manipuladora, no discurso oportunista do coachismo, naquilo que um belo samba chamou de “bondade de gente ruim”. O mundo bonito de Hockney está também cheio disso tudo, além dos sofrimentos mudos que explodem de repente. Fica difícil sustentar “o mundo é muito muito bonito” quando tudo depõe tão contra. Mas por isso mesmo sustentar essa assertiva deve ser cada vez mais fundamental. Mesmo que seja por uma espécie de teimosia, para não deixar que a imagem do mundo habitável se renda ao comércio global de olhares tacanhos, onde só temos lugar como reféns assustados da nossa própria destruição cínica.

Nas últimas décadas, Hockney se tornou uma espécie de guardião das coisas belas. A beleza em Hockney coincide com a visão de um mundo fulgurante em cores. Que os gregos tenham se dedicado à busca da beleza acima de todas as coisas não é difícil aceitar ou entender. Podemos criticá-los, relativizar sua importância, podemos até denunciar nossa paixão excessiva pelo que fizeram, mas isso não altera o fato de que aquele povo, cercado por mitos e mares, apostou todas as fichas no que deslumbra, e o que deslumbra é um certo tipo de aparição irrefutável das coisas neste mundo. A beleza era para eles a mais encantadora das aparições.

E aparição é algo frágil. O que surge de repente pode rapidamente se transformar ou desaparecer. Dizemos que “as aparências enganam”, não só porque associamos a aparência ao falso e ao dissimulado, mas porque a aparência não nos garante nem promete nada além do que mostra. Seria talvez mais correto dizer que nós é que nos enganamos ao exigirmos que uma aparência se estabilize, fique parada, quieta e solene como uma verdade eterna.

O que eu queria dizer evocando a casinha de Tiradentes e os gregos é que a beleza é um flagra, algo que se capta assim que surge, antes que fuja. E que isso funciona como uma costura, algo que nos ata ao lugar e tempo em que calhamos existir. Por isso a tentativa um pouco desajeitada de escrever sobre guardiões da beleza, os meus e minhas, nos quais me agarro um pouquinho para atravessar o grotesco contemporâneo.

Nos tempos que correm, como outras pessoas do meu convívio, talvez eu também esteja mais receptiva ao dom dessa beleza que a fluência da alegria embala. Flores, insetos, livros, beleza que chega ao acaso. Um livro absurdamente belo da poeta dinamarquesa Inger Christensen, de 1981, chamado Alfabeto. Esse longo poema tem sua estrutura baseada na série de Fibonacci, os versos falam do que existe por aqui apesar de tudo, apesar das ameaças que nos impomos — cigarras existem, ciprestes e o cerebelo, o sol amarelo cromado, o verão e as noites de junho existem, sussurros e poemas existem.

Outro dia foi a beleza emergindo no banal corriqueiro: percorria o Facebook e fui capturada pela beleza geométrica das pinturas de um artista indígena. Seu nome artístico é Wally Km Amarü, e no momento ele vende suas pinturas para ajudar a salvar uma pessoa da família, internada. Da etnia Kamaiura, Wally vive na aldeia Amarú, no Alto Xingu. Me contou que começou a fazer pintura sobre madeira e tecido há quatro anos, quando sua esposa precisou de uma cirurgia.

Caetano Veloso também é guardião da beleza. Pelo menos é assim que cada vez mais recorro a ele, procuro ouvi-lo. A beleza em Caetano e Hockney tem a ver com uma forma de amizade com o tempo. Nas canções de Caetano frequentemente a beleza é celebrada como esse deslumbramento sem garantia, sem promessa, a beleza que se transforma na própria coisa bela, não um atributo, mas um modo de ser, “ilê aiê, sua beleza se transforma em você”. A beleza é uma alegria que não promete nada mas, ao irromper no presente, traz a sensação do fim possível dos terrores.

Hockney busca a beleza no alumbramento produzido pelas cores. O seu amarelo é inconfundível, desavergonhado, como um grito estridente de felicidade. De certo modo ele e Van Gogh restituíram ao amarelo uma dignidade que a história cultural do ocidente tinha sequestrado. A pequena editora portuguesa não (edições) tomou a iniciativa de publicar o livro Chroma de Derek Jarman. Ali há uma espécie de verbete sobre o sentido malévolo atribuído ao amarelo: a malária, a bílis, a yellow press (pra nós ela é marrom) e a inveja são amarelas. Felizmente há também guardiães do amarelo neste mundo vil. Meses atrás traduzi com o Sergio Flaksman um poema de William Carlos Williams onde o amor emerge como um tipo de aparição amarela, salpicando o mundo de açafrão: “a mancha do amor / recobre o mundo! Amarela, amarela, amarela”.

Nos últimos anos Hockney passou a pintar amarelos luminosos (e também roxos assombrosos) no iPad. Se googlar poderá vê-lo trabalhando. Hockney viralizou durante a pandemia com o lembrete: “eles não podem cancelar a primavera”. E nos países frios a primavera é esse alumbramento, beleza irrecusável e não cancelável, apesar do mundo se acabando e nos tirando tudo que dá prazer, para em seguida oferecer mais terror e produtos contra o medo, e contra o medo do medo.

Quando a primavera ressurgiu nas bandas de cá, voltei a passear no cemitério florescente. Deparei com lírios que pareciam pequenos sóis em ascensão, apenas retidos pelas hastes verdejantes. Eram verdadeiras aparições depois do inverno e do lockdown de vários meses. Aqui são chamados de lírios da Páscoa, mas eu já os tinha visto fulgurantes nos quadros de Hockney.