Cronica Hana Luzia junho.21

 

Cuidado, ele pode ser você. Ou alguém muito próximo. Um ex-amor, ex-amigo, seu professor preferido. Refiro-me ao macho de palestra, figura bem mais encontradiça que a do louco, mas menos célebre, embora de maneira alguma menos importante no funcionamento dos ritos conferenciais. Deve ter acontecido outras vezes sem que eu tenha percebido, mas minha indigna atuação como macho de palestra só se tornou visível aos meus próprios olhos depois daquele seminário em que deixei um palestrante da espécie homem falar desbragadamente durante o dobro do tempo estipulado, comendo assim metade do tempo de fala da professora — amiga minha (!) — que interviria na sequência. Felizmente, passado um tempo, a amiga me deu um abraço chinchado e disse: o que foi aquilo? Coberta de razões estava ela, eu em posição indefensável pedi perdão e bola pra frente.

Todo cuidado é pouco, pois o macho de palestra pode perfeitamente ser amável, doce, gentil e educado. Um tipo bacana à beça, quem sabe até seu parça em mil projetos, seu confrade, seu cúmplice, dedo mindinho, seu vizinho, o pai de todos os seus filhos. Ele pode ser minoria e, ele que tudo pode, também pode ser surfista, advogado pro bono, psi nas quebradas, bom cozinheiro, belo ou esquisito. Claro, ele pode ser milico. E nas conferências ele pode reinar sozinho sobre o reinado dos sentidos. Naqueles 30 segundos antes ou depois de a palestra começar, ele pode te elogiar de um jeito que te diminui ou te diminuir como se fosse um elogio. Pode ser safadinho e querer saber mais sobre a sua… pesquisa.

Ele pode ser artista e chegar risonho e atrasado, traje casual, havaianas com bermuda. Oba, lá vem ele sensualizando de camisa de linho não toda abotoada a revelar alguns pelinhos sapecas. Ele pode resolver que o melhor lugar do mundo é aqui e agora para uma majestosa arreganhada de pernas. Quem sabe assim transmite ao público a imagem de um ser mais livre e à vontade, afinal formalidade é coisa de businessmachos, gente sem traquejo na vida. Ele que é todo trabalhado em odara, não se amarra em dinheiro não. Poder? Só se for verbo: eu posso e tu também, entendeu, querida? Tempo cronometrado também não é pra sua pessoa, gente é pra brilhar, deixa ser, o que será será.

Ele pode começar a palestra bem modesto, dizendo que não deu pra preparar coisa nenhuma enquanto vai puxando do fundo do bolso notas em papelitos amassados — sua partitura infinita para dizer demais e além. E o barquinho vai, a tardinha cai, ele vai falando livre das amarras temporais, às vezes ri do próprio falatório que não cessa. Até que um dia finalmente cansa, e poderá ser visto espreguiçando enquanto a mediadora prepara uma pergunta. Boceja assim feito um lance natural, necessidades corpóreas às quais ele obedece espontâneo e iridescente.

Ele pode gostar de citar Didi-Huberman com a comoção de um francês na mata virgem, ou ser um astro da filosofia política, tenso e sisudo como manda o figurino da sua instituição, oscilando entre o imperador da indignação e o desprezo por nosso mundo lasso e medíocre. Quando sua colega de mesa começa a falar, ele, o filósofo enfadado, põe-se a brincar com sua garrafinha d’água. Suspira fundo, decide admirar os próprios pés, repara no verniz que cintila sobre o couro do sapato sem se dar conta de que sua careca nua e lustrosa agora se mostra em perfeita lua inteira para a plateia concentrada. Ou nem isso, talvez ele já tenha batido em retirada. É que depois de se ouvir falar — afinal pra isso estava lá — ele zarpa, há compromissos que um homem deve cumprir, e lá se vai, deixando para trás aquelas mulheres que falam demais.

Não é incomum que todas as perguntas da plateia sejam endereçadas a ele. E assim vamos sustentando o moço palestrante no centro cosmológico de interesse e atenção, o misterioso magnetismo exercido por sua figura é uma depressão à parte. Não que não seja necessário algum tipo de esforço para evitar se deixar seduzir pelo élan do macho de palestra, sobretudo na versão artista, com sua informalidade bem calculada, capaz de deslizar de odara ao show de pedigree numa frase só.

É provável que demonstre grande prazer em acompanhar os volteios de seu próprio raciocínio e há casos em que já foi visto a rir das próprias tiradas sozinho no banheiro. Em outras searas, quem sabe se faça de neurótico, fingindo improvisos de malabar, quando na verdade passou as últimas três semanas preparando tranquilamente aquela palestra de 20 minutos magicamente transformados em 50, sobre todas as coisas que não sabemos nem desconfiamos que possam existir.

Acontece também de ser pouco refinado e absolutamente não perceptivo, em suma um topetudo, apenas tosco. Exemplar já um tanto quanto raro nos departamentos de Letras e Artes, essa figura anacrônica ainda é encontrável em palestras das áreas de Law & Order e Better Call Saul. Certo dia, um desses distintos palestrantes multiscientes baixou numa importante universidade federal brasileira. Lá iluminaria as mentes opacas da parranda das Relações Internacionais, curso em que o alunato costuma ser majoritariamente composto de molières. Após desfiar pernósticos agradecimentos, entrou no tema: segurança pública e questões estratégicas. Nosso macho era general e fez questão de ilustrar sua fala com caprichados slides de PowerPoint, um recurso habitual em palestras de milicos. Setinhas pra lá e pra cá, bolinhas e quadrados, didatismo afinal é uma arte gráfica. Lá pelas tantas o sujeito quis chamar atenção para os riscos e ameaças presentes em nossa vida cotidiana. Astuto e iluminado que era, abordaria de maneira clara aqueles perigos quase invisíveis que, entretanto, são efetivamente temerários. O vocabulário dava um toque de inverossimilhança à sua figura, meio que exalando um fedor retórico pelo auditório. Falava de coisas ameaçadoras às quais muitas vezes não damos a menor atenção, pois estamos prestando atenção em… outras coisas. Ao dizer “outras coisas” soltou uma risadinha, como uma criança que antecipasse um peidinho na sala de visitas.

As graduandas continuavam silenciosas e observantes, e até os colegas homens já conseguiam antever a desgraça por vir. Para ilustrar aquele ponto de grande complexidade, nosso arguto palestrante projetou uma imagem um tanto peculiar. O slide mostrava um cachorro da raça salsicha dirigindo um veículo. Ninguém teve coragem de rir, afinal tratava-se de um macho de alta patente em importante missão pedagógica. Mas, não bastasse o cão motorista, em primeiro plano na fotografia, que parecia mais um meme adaptado, uma mulher atravessava a rua, flagrada em ângulo que ocultava totalmente o seu rosto mas mostrava perfeitamente a calça branca com a bunda em evidência. A velharada do corpo docente se sentiu autorizada a rir, certamente identificada com o rutilante raciocínio do general. Os estudantes se recolheram num silêncio constrangedor, uma professora tossiu, outra espirrou. E, como atrás do macho de palestra há sempre um capacho de palestra disposto a corroborar suas façanhas, um tipo da velha guarda do departamento teve a generosidade de concluir: viram, né, pessoal, atrás de belas mulheres pode haver um grande perigo! Explicação fundamental para o bom entendimento das estratégias de segurança pública no Brasil varonil.

Convenhamos, esse era um caso bem grosseiro, o mais corriqueiro é algo um pouco mais sutil. A situação típica em que este se faz notar é a das mesas-redondas — sempre retangulares — com dois especialistas e uma mulher palestrando. Esta ali é apenas uma mulher que diz coisas, já que o genuíno saber está com eles. A mulher começa porque primeiro são as damas; ela diz A, o sábio que vem em seguida diz exatamente o mesmo A, e então o terceiro palestrante toma o microfone e dispara: como bem disse o meu colega Fulano…

No campo do debate sobre economia, ele costuma vir disfarçado de bacana, com modelitos de última geração adquiridos na Brooks Brothers da última viagem para “fora”. Em palestra recente sobre política orçamentária, justiça distributiva e responsabilidade social, um ilustre economista paulistano (olha a dica!) dividia a mesa virtual com um economista e três economistas do sexo desta que agora escreve, todas elas reconhecidas na área. Discutia-se auxílio emergencial e o impacto da pandemia na vida, economia doméstica e outras calamidades. Seguindo o argumento das colegas de mesa, a última economista a falar destacou a importância de manter o auxílio emergencial sem condicionantes, porque é necessário garantir a vida das pessoas. As palestrantes sustentavam que num contexto regido por uma lógica humana (ou seja, não desumana), não há contradição entre economia e vida. Ah, mas pra quê?! O macho biscoito fino, com toda a sua expertise de douto perfumado, virou-se para a colega de profissão e mandou essa: ora, não posso discutir com argumentos do coração. E logo ele, ora ora, representante genuíno dos deep feelings do mercado, essa entidade que fica nervosa e sofre diarreias emocionais. Afinal, matar ou deixar morrer é só um detalhe.

Pois bem, cuidado. Ele está entre nós como estava entre os antigos aquele Deus onisciente, onipresente e onipotente. Ainda que pouco visível ou bem disfarçado, muitas palestras no Sul Global em processo decolonial são ainda regidas por seu ritmo imperativo. O espetáculo de autoridade máxima desses tutunqués é uma religião da qual não nos livramos facilmente.