Um narrador meio sôfrego tenta dizer alguma coisa a outra pessoa, uma ela, que o interrompe com perguntas banais. Tudo se passa numa rodoviária enquanto esperam a hora da partida de um ônibus que levará a moça (será moça?) para longe, talvez para sempre. As interrupções vão criando uma espécie de adiamento exasperante de algo denso e importante que não chega a ser dito. A cena se encerra sem terminar, numa frase inacabada.
Falo de um conto de Caio Fernando Abreu incluído em O ovo apunhalado com o bonito título Para uma avenca partindo. Talvez se pareça mais com a derivação em prosa de um poema do que com um conto, mas não é esse o assunto. Leio Caio Fernando Abreu desde os 16 anos. Há na sua embocadura algo que se presta à releitura, ou, mais que isso, algo que pede releitura. São textos companheiros de jornada. Há livros fabulosos que não nos acompanham assim vida adentro, mundo afora; uma vez lidos, são arquivados. Todo livro é o livro lido e um outro livro que se escreve na cabeça de quem lê. A literatura tem essa propriedade da reversão: não salva, mas pode criar uma espécie de fissura energética.
Volto a esse conto porque pertence a uma família de textos literários em que a leitora, sim, ela mesma, é convocada de maneira irrecusável a elaborar um contraplano do que lê. Isso porque o próprio conto se debate com a questão do endereçamento, da impossível transmissão de algo que engasga. O texto se equilibra entre o monólogo dialogado, o solilóquio e a carta. Lembra outros textos da ficção brasileira que também parecem falar conosco, com nós mesmos, dando a impressão de que são escritos à medida que são lidos. Tal qual a imagem da caixinha de música, em que a bailarina só dança quando alguém abre a caixa, embora pareça dançar eternamente. A literatura é também essa bailarina incansável, ou a vegetação proliferante de que falava Sócrates (o filósofo, não o jogador), um apelo ao contraplano imaginário. A literatura produz um plasma, no sentido que os sofistas davam a essa palavra: “roteiro inventado sem situação histórica específica”. Não que os contos de Caio pretendam ser nuvem flutuando acima da história, seus roteiros se parecem antes com aquela ambulância em um poema que saía pelas ruas recolhendo restos de conversas em busca da palavra de toque.
De Para uma avenca partindo, com o passar dos anos, fui gostando cada vez mais daquilo que se subentende, se subdiz ou se elide. Assim é que, gostando muito e cada vez mais do conto, fui gostando cada vez menos do homem que se dirige àquela mulher na rodoviária. E comecei a alucinar numa leitura um pouco extravagante que me fez acreditar que o conto mesmo está fora dele, noutro plano, que o conto fala não da dificuldade de dizer, mas de um excesso, um jorro como quem goza sozinho no discurso imaginário que não libera. Pergunto o motivo, sem encontrar resposta. De modo que decido transformar esta crônica no exercício de extroversão de um dos contraplanos imaginários que produzo enquanto leio esse conto, em busca talvez não de resposta, mas de uma contrapartida em que a mulher ou o amante que projeto pelo discurso dele finalmente fala. Não é uma revanche, mas é.
CARTA DE UMA AVENCA PARTIDA
Começo pelo meio da viagem cansativa, o motorista ensandecido quase desabando a cada curva. Como costuma acontecer na vida que não é literatura. Já não sou tua avenca no solzinho da sala, como você gostava de brincar; era doce sim e um pouco escroto também. Como aliás quase tudo entre nós todo esse tempo. Por que não bambuzal? Dane-se.
Enfim, na rodoviária, sei que você tentava me dizer alguma coisa. Óbvio que eu não precisava de água, nem de maçã nenhuma e na verdade nem estava pensando em Peter Fonda. Só não queria te ouvir. Não ali, não na hora da partida. Não mais. Esse teu jeito sôfrego de criar suspense em torno do que no fundo nem é tão fulcral, nem assim tão revelador… cheguei ao ponto de não retorno. Cansada, sim. Desculpa se não faço jus aos melhores momentos, que, sim, foram lindos.
Mas cansei de você sempre querendo aprofundar comoções, e sempre sem planos, sem proposta, insistindo nos arroubos de autoconhecimento redentor e me obrigando a ser a eterna espectadora do teu show. Eu disse brincando, mas é real, você sempre foi sua própria musa, isso te contenta; no teu lugar eu ficaria feliz, por isso a baixa expectativa, eu de avenca. Meu coração alhures, isso também dizia o silêncio.
Ainda posso te ver me olhando atônito como se minha cara fosse de espanto ou de medo da profundidade do que você estava prestes a dizer, e não uma cara apenas perplexa por te ver ensaiando um drama derradeiro ali no meio daquele fedor da rodoviária, tudo tão sem sentido afinal. Nem é questão de fazer ou não fazer sentido, mas, porra, esquece os morcegos, um dia tomam rumo. Eu só queria poder te dizer calma, calma, vai ficar tudo bem, o que você quer é outra coisa, isso tudo, meu amor, é pura alucinação da despedida. A gente já acabou faz algum tempo. Sabe aquele cara no ônibus? Insinuou uma punheta, fiz logo um escândalo. Deu uma merda geral, claro, nem vale o relato, no fim uma senhorinha me acolheu, meio mala, mas enfim. De tanta raiva nem consegui chorar, na descida da serra apaguei. Cansada dessas e outras, sabe?
Não quero mais te ver tergiversar sobre meu silêncio como se fosse o suprassumo da superficialidade. Mas nem se arrependa da tentativa, e de todo modo nada entre nós mudaria se eu conseguisse alcançar o que gostaria de dizer para te impedir de me falar o que você achava que tinha mesmo de ser dito ali. Eu te tocaria com as mãos talvez deslizando pelos cabelos, os teus cabelos longos que eu adoro desde sempre: não, meu querido, não hoje, não aqui. Você teve tanto tempo, além da conta. Disponibilidade para te ouvir eu sempre tive, mas ser a cúmplice, a claque a postos para homem-feito, avisei que não daria.
Tento não ser brutal, sei que o que gaguejava vinha sim do fundo de você, era sincero, comoção real. Seria mesmo? Simplesmente não queria te ver despejando aqueles sentimentos em mim na hora da partida. Não queria viajar com aquela massa de afetos arremessados. Mas não tem ressentimento, o momento de frustração maior já passou, a falta de expectativa também, cheguei a este lugar de indiferença morna, sei lá, dê o nome que quiser, pouco importa. Deixei dois frascos daquele maravilhoso própolis na gaveta de cabeceira. Das manhãs sestrosas, pão com beijo, pé de cidreira, não esqueço. Meu silêncio não era inábil, nem farposo. Era outra coisa, mas agora fui. Sou avenca partindo. Mando o novo telefone quando der. Ninguém vai morrer disso.