Cronica Hana Luzia fev.21

 

O bom da crônica é poder sair dizendo coisas, qualquer coisa, ou cousas, palavra hoje em desuso, porém tão mais simpática que a substituta. Do suspiro de uma rã à aterradora aliança entre a ganância e a onipotência, passando pela hipótese de que a poesia é esquiva feito um gato, tudo parece caber numa crônica. Para quem vem praticando outros gêneros, contudo, isso de voltar à primeira (última?) pessoa de mim mesma tem algo de esquisito. Parece simples, mas na prática sinto a brisa do despenhadeiro e penso: vai dar zebra. Assim, achei que bastaria vir aqui e discorrer sobre aquele dia (eu não estava nem viva) em que Djalma Bom cantou Rosa, de Pixinguinha, para a plateia de metalúrgicos do ABC. 

Mal comecei a escrever, precisei dar uma volta. Não aquela volta empírica no quarteirão, mas um volteio íntimo, deflexões em torno de assuntos engasgados. Paciência. Começar não é tão fácil quanto cair de amor, por isso os gregos inventaram a técnica do in medias res, começar a narrar pelo meio das coisas. 

É impossível começar sem voltar ao ano que (não) passou. Difícil mudar de assunto diante do espetáculo inadjetivável de tanta gente morta pela negligência — essa sim qualificável: assassina — de um país desgovernado. Minto! Desgovernado coisa nenhuma. Na verdade, pilotado com prazer sádico como uma aeronave de guerra. Ou outra estratégia, e não menos sádica: deixar como está pra ver como é que fica. E ficou irrespirável. Daí ser complicado de cara dizer coisas sobre uma rosa, um micro momento de um belo show, emoções de um repertório lírico que não entra em greve. 

Como diz o meme, feliz é aquele que não é triste. Guardo para os momentos de desânimo imagens da beleza convulsiva (obrigada, Breton) do nosso tempo. E que viva Chile! Salve a Primeira Línea de manifestantes em Santiago! Ventureiros, eles são muitos (e esses podem voar!), numa resistência crua de comover, protegidos por placas de trânsito, telhados de zinco, pedacinhos da cidade a encouraçar corpos em luta. Essas e outras guardo numa pasta de imagens-amuleto. Ali os chilenos convivem com os resistentes de Pinheirinho (quem lembra?), armados com vassouras e rodos contra a polícia truculenta de São Paulo. Do Rio, fotos do movimento secundarista; gosto de uma em especial que mostra garotas no auge da indignação e da coragem usando carteiras escolares como escudo contra a tropa de choque da truculenta polícia carioca. De 2013, a imagem de um faixão cor de laranja com as palavras “NÓS SOMOS A REDE SOCIAL”. Ah, quem dera! E, claro, as placas azuis da rua Marielle Franco, replicadas e hasteadas por milhares de braços no ar. Imagens-amuleto, cada um tem as suas. 

E por falar em ar, na Espanha, anos atrás, houve um assombroso e pirotécnico (e com certeza muito caro) protesto fantasma; os manifestantes eram todos projeções de hologramas no ar marchando contra a Lei da Mordaça, infelizmente depois aprovada. Outras vezes, porém, a arte se contenta em macaquear o ativismo nu e cru, e dá a maior zebra. 

No que toca à arte como forma de denúncia, foram muito divertidas e audaciosas as ações espetaculares que o grupo Solvognen (baseado no então reduto hippie de Christiania) realizou em Copenhague às vésperas do Natal de 1974. Solvognen significa “carruagem do sol”; era um grande grupo de teatro que usava estratégias anarquistas em performances públicas de alto risco que escancararam a hipocrisia da sociedade dinamarquesa. Naquela véspera de Natal, quando as famílias faziam compras de última hora, um exército de papais noéis entrou na maior loja de departamentos da cidade e começou a distribuir os produtos. Os clientes ficaram perplexos, maravilhados com aquele arroubo de bondade. De repente a magia do Natal virava realidade no mundo movido pelo consumo. O sistema de segurança era menos eficiente que o atual, dava tempo de muita coisa acontecer antes da chegada da polícia ávida por descer o pau e dar umas belas gravatas nos bons velhinhos. As imagens desse dia são formidáveis, dê uma pesquisada em Santa Claus Army. As crianças, claro, ficaram assustadas, os menores aos berros, mães, tias e avós sem saber o que fazer. A estratégia do Solvognen mirava situações das quais se pudessem desentranhar imagens que traduzissem claramente a hipocrisia social. 

Finalmente, a rosa. Era dela que eu queria falar. Foi no meio de um filme que ela surgiu para mim. Claro, eu já a conhecia. Rosa é uma música composta por Pixinguinha em 1917, mas a letra é um mistério. Alguns dizem que foi escrita por Cândido das Neves, o Índio; outros, que o autor foi Otávio de Souza, mecânico falecido na juventude. Gosto de pensar que foi Otávio. Essa rosa comparece inusitada em sua divinal beleza numa cena breve de Linha de montagem, filme de Renato Tapajós sobre o movimento grevista dos anos setenta, com todas aquelas cenas impressionantes das multidões dos operários do ABC. O pessoal ali na raça e no gogó convencendo os colegas a não furar a greve, tudo isso sob a mira indisfarçada de policiais truculentos (sempre eles). 

E de repente surge o Show de Maio, iniciativa dos metalúrgicos com o fim de arrecadar dinheiro para o fundo de greve. O evento aconteceu no Pavilhão Vera Cruz, em São Bernardo, no dia 7 de maio de 1979. Mário Masetti assinava a direção; 40 artistas, entre eles Dominguinhos, Beth Carvalho, Fagner e Gonzaguinha, apresentaram-se para 5 mil espectadores. A certa altura, Lula chama ao palco seu companheiro de sindicato Djalma Bom. Os dois se abraçam, emocionados. Djalma naquele momento era tesoureiro do sindicato e vice-diretor do fundo de greve. Nervoso mas decidido, ele começa a cantar, e a canção, meio antiquada, destoa do que se ouvia na época e também naquele evento. O tom, a linguagem parnasianesca (“o arfante peito teu”) abrem um outro espaço emocional. Isso mobiliza muita coisa; num flash, provavelmente muitos dos metalúrgicos presentes se lembraram de suas mães ou pais cantando Rosa

Posso estar fantasiando, mas o que sei é que naquele momento havia uma energia irrecusável circulando entre plateia e palco. Quase me arrisco a dizer epifania, mas me contento em constatar que o lirismo em sua versão mais pura e crua se encontrou ali com os corações em luta. Ao lado de Djalma, dá para ver, ao violão, o jovem Jards Macalé. Que dupla insólita! Djalma Bom canta com a força expressiva que só um amador alcança, interpretando à maneira de quem amou de verdade a voz de Orlando Silva, o cantor das multidões suspirantes, que gravou a música de Pixinguinha em 1937. 

Há nessa cena algo importante sobre as alianças possíveis e inesperadas entre militância e romantismo, mas é preciso sentir. O que termina apenas começou. A luta política e a poesia são modos de enfrentar os piores cenários, o da perda da dignidade humana, o da perda do objeto de amor. Eu estava no meio de uma aula, e a rosa esculturada, divina e graciosa, lanceou meu coração. Demorei tanto a dizer qualquer coisa que uma aluna sugeriu uma pausa pro café. 

 

Copenhague, 2020