De manhã cedo não há sol no passeio largo, só uma sombra grande que apaga as sombras mais pequenas dos que passam. Casas e gente diluem-se invisíveis naquela penumbra, apagados pela única luz que chega dourada e se vai esbatendo com a rotação da cabeça até ficar quase branca já no mar que dimana num paralelo à parede de edifícios. As janelas dão para a água em ondas e a água para o seu próprio reflexo entrecortado, em contramão com os vidros das janelas, o cimento dos edifícios, as palmeiras que contornam o bairro. E, no meio, o areal, ainda em alvoroço. É um quadro de sombra, luz e silêncio, onde há um homem a correr com um cão pela trela no que parece ser a fronteira entre claridade e penumbra.
Sem olhar para a rua, António varre a esplanada do restaurante em frente à praia. Trabalha ali há 26 anos, quase desde que chegou de Serra Talhada, cidade de interior do estado de Pernambuco, a mais de 400 quilómetros da capital, Recife. “Nunca vi essa cidade assim não”, diz, sem levantar os olhos do que está a fazer. “Não tem turistas, tudo meio quieto, meio infeliz. Quando cheguei cá era muita gente, muita alegria, e esse mar que era uma beleza.” Foi mesmo no fim dos anos 1980, depois do fim da ditadura militar. Tinha 22 anos e queria sair da pobreza em que vivia. “Uma casa com muita gente. Eu era o mais velho de sete, todo o mundo tinha que trabalhar, que ajudar, mas a comida era pouca e só via terra sem dar nada. As perspectivas eram más. Vim sozinho. Bati a muitas portas, fiz o que tinha para fazer, um pouco de tudo e uma vez, uns quatro ou cinco anos depois de ter chegado no Rio, me responderam daqui. Eu tinha perguntado se era preciso.” Aprendeu a servir à mesa, primeiro a olhar os outros de trás do balcão, depois imitando-os como atendiam aos clientes. “Gosto, a gente conhece muita gente”, diz, o sotaque de Pernambuco ainda vincado a contrastar com o jeito carioca. Os “esses” não se arrastam como os do Rio, o “tu” sai muitas vezes ao longo das frases, e no fim um requebre, quase cantado, a entoar as palavras, quase uma cerimónia no modo de tratar os outros, sobretudo quando são clientes.
António é um dos protagonistas de um êxodo, o do Nordeste para outras zonas do Brasil. Começou mais ou menos de forma massiva no final do século XIX, como chamado “ciclo da borracha”, na Amazónia, e prolongou-se com a industrialização, mais acentuadamente para as grandes cidades do Centro-Sul, como São Paulo e Rio de Janeiro. Só abrandou a partir do início da década de 1990, com o desenvolvimento de muitas cidades do Nordeste. Era uma migração de gente pobre, com baixa ou nenhuma escolaridade, sujeita a preconceito de classe e raça — a maioria era cabocla ou mulata, como António, que se apresenta como “meio índio, meio português, meio negro. Parece que corre sangue muito diferente debaixo da minha pele”, ri. “A gente meio que é uma mistura.” Os recém-chegados do Nordeste habitavam os bairros mais periféricos e marginais das cidades, tinham os trabalhos que mais ninguém queria ter, condições precárias, salários baixos. No auge da migração, esse êxodo rural provocou desequilíbrios urbanos, com as cidades a crescerem sem qualquer espécie de planejamento. Foi a época da chamada “favelização”, a partir dos anos 1920 e até à década de 1950. António não foi excepção. Quando chegou foi morar no Morro do Cantagalo, entre Ipanema e Copacabana. Ficou lá nove anos. Agora vive em Niterói, cidade do outro lado da Baía de Guanabara, 30 quilómetros de distância do emprego, pela ponte, e nunca se sabe bem a quanto tempo. “O trânsito é que manda. A gente obedece.” A vida melhorou para António, mas há um estigma que se mantém. “Eles costumam brincar, dizem que a gente não sabe falar, que gosta de olhar pro nada. Não é isso não. Eu não ligo não. Mas aqui é bem diferente, aqui no Leme então é muita gente fina, outra maneira de ser.” Conversa com vontade. Há tempo e pouco serviço. A esplanada ainda não abriu, a manhã está bonita, apesar do inverno, da chuva do dia anterior, o mar tem ondas. “Agora já sinto que tou em casa. Tenho mulher e filhos daqui, o meu trabalho, as minhas coisas. Só sinto falta de uma boa carne seca, mas a gente sempre dá um jeito.”
A conversa com António no Leme parece improvável. Não pertence ao postal do Rio de Janeiro, nem aquela paisagem quase sem gente, quase fria. A pedra branca dos edifícios e da calçada, o cinzento da luz onde ela ocorre, remete para uma dimensão fílmica. Jacques Tati talvez tivesse gostado. Não há homens de gravata nem gabardine, nem mulheres de saia-casaco. Há solidão. Talvez por ser cedo e as pessoas estarem a olhar desde dentro, por detrás das vidraças de uma daquelas torres num dos bairros mais exclusivos do Rio de Janeiro, depois de Ipanema, depois de Copacabana, no sítio em que a Pedra do Leme faz desviar a praia num contorno que vai dar a outra praia e a outro passeio, também largo, na mesma cidade, então com a Urca ao fundo e o Cristo Rei no alto.
“O apartamento me reflete. É no último andar, o que é considerado uma elegância. Pessoas de meu ambiente procuram morar na chamada ‘cobertura’. É bem mais que uma elegância. É um verdadeiro prazer: de lá domina-se uma cidade. Quando essa elegância se vulgarizar, eu, sem sequer saber por que, me mudarei para outra elegância? Talvez. Como eu, o apartamento tem penumbras e luzes úmidas, nada aqui é brusco: um aposento precede e promete o outro. Da minha sala de jantar eu via as misturas de sombras que preludiavam o living. Tudo aqui é réplica elegante, irônica e espirituosa de uma vida que nunca existiu em parte alguma: minha casa é uma criação apenas artística.” É um décimo terceiro andar imaginário, o último de uma torre que replica modos de vida aparentemente iguais. Nele vive G.H., uma mulher, protagonista de um romance interior que convoca o mundo a partir do quarto da empregada — assoalhada que faz parte desse modo de vida. A escritora que inventou G.H., e o quarto da empregada, e o apartamento e o edifício – só não inventou o mundo — vivia num lugar assim, na rua de trás, paralela ao passeio onde António varre a esplanada. Como ele, ela também chegou ao Rio de Janeiro vinda de Pernambuco, na década de 1930. Tinha 14 anos e foi morar no bairro de São Cristóvão com o pai e as duas irmãs, Pedro, Elisa e Tânia. Ia do Recife e não de uma cidade interior, mas, como António, tinha um sotaque diferente: o modo meio francês de dizer os érres. Chamava-se Clarice Lispector, vinha de outro êxodo, o dos judeus, em fuga aos pogroms russos do início do século XX. A família, como muitas, procurou a América como uma alternativa à Europa. Podia ter ido para os Estados Unidos; escolheu o Brasil, onde já estavam alguns parentes. Começava aí uma itinerância que permaneceu em Clarice até ao fim, a par com um sentido de não pertença e de busca de identidade.
“A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho”, escreveu em 1968 numa das crónicas que assinou no Jornal do Brasil. Ao referir as origens — nasceu em 10 de dezembro de 1920, na cidade de Tchetchelnik, Ucrânia —, confessava que se sentia brasileira, do Nordeste, mas sobretudo pertencente à literatura brasileira e à língua portuguesa. “Sou brasileira naturalizada, quando, por uma questão de meses, poderia ser brasileira nata. Fiz da língua portuguesa a minha vida interior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de amor. Comecei a escrever pequenos contos logo que me alfabetizaram, e escrevi-os em português, é claro. Criei-me em Recife, e acho que viver no Nordeste ou Norte do Brasil é viver mais intensamente e de perto a verdadeira vida brasileira que lá, no interior, não recebe influência de costumes de outros países. Minhas crendices foram aprendidas em Pernambuco, as comidas que mais gosto são pernambucanas. E através de empregadas, aprendi o rico folclore de lá.”
MACABÉA, NOME DE PERDIÇÃO
Dessa vivência meio nómada — a que acresce o facto de ter sido casada com um diplomata e ter vivido muitos anos fora do Brasil — fez a sua literatura. Romances, novelas, contos, crónicas atravessados por um modo de olhar o mundo feito do aprofundar da intimidade desde a publicação de Perto do coração selvagem, em 1943, tinha 23 anos, até ao derradeiro A hora da estrela, no ano em que morreu — 1977 — um dia antes de fazer 57 anos. Nesta novela cria Macabéa, uma nordestina de Alagoas, de 19 anos, virgem, que gosta da Coca-Cola, e chega ao Rio de Janeiro como muitas nordestinas então, para escapar da miséria, sem imaginar que embarcava num território de perdição ou, como refere o narrador, Rodrigo..., sem saber que aquela cidade era “toda feita contra ela”, que estava “à toa na cidade inconquistável”.
“Este livro é um silêncio”, diz Rodrigo, “é uma pergunta”, e essa indagação uma das marcas da escrita de Clarice Lispector — “quem se indaga é incompleto”, lê-se no livro — a partir da sua experiência de vida onde, apesar de não conter a miséria factual de Macabéa, também conheceu a fome ou a pobreza. Clarice, Macabéa e Rodrigo partilham o sentido de incompletude e é com ele que existem, sempre atrás da pertença, mesmo que Macabéa não saiba o que seja isso. “A pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham”, avisa Rodrigo no início de A hora da estrela, e o leitor sabe desde logo o território de Macabéa é também o da invisibilidade, a materialização ficcional de um retrato mais alargado, onde entram todos quantos moram nos bastidores da sociedade e, por exemplo, sobem até a Feira de São Cristóvão, conhecida como a feira dos nordestinos.
Acontece todos os dias excepto à segunda-feira no Centro Luiz Gonzaga — muito diferente de quando Clarice a visitava —, no Campo de São Cristóvão, num bairro popular com o mesmo nome na zona norte da cidade. Já foi residência imperial, lugar onde está a famosa Quinta da Boa Vista e os piqueniques de fim de semana. Ali, os nordestinos encontram-se para ouvir música tradicional, comer carne seca com aipim ou baião de dois. Ali, Clarice Lispector encontrou uma mulher que a inspirou a construir Macabéa, uma reação a um real que a fez recuar até à infância no Recife e à sua condição de nordestina. Muitos leram o livro como uma crítica social, retrato de um país cheio de disparidades a partir de personagens mais autobiográficas como Macabéa, a nordestina que partilha um quarto esconso com mais quatro mulheres na Rua do Acre, perto da Praça Mauá, e o escritor Rodrigo, “um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome”, o que, escreve, “faz de mim de algum modo desonesto”; é uma panorâmica social ancorada em dois territórios primordiais: o Nordeste e o Rio de Janeiro. Deste ponto de vista, seria, entre todos os livros de Lispector, o mais factual, ou seja, o mais comprometido com uma realidade exterior, onde se pode ler um ou vários “Brasis” e que, com a restante obra, ajuda a completar o grande painel universal que é a escrita de Clarice Lispector, na qual prevalece o escrutínio da parte de dentro do ser. Com isso, apesar da aparente contradição, ambiciona ter o alcance, por exemplo, de um acto de justiça social, como salienta no volume de crónicas Para não esquecer (1978).
“Desde que me conheço o fato social tem em mim importância maior que qualquer outro: em Recife os mocambos foram a primeira verdade em mim. Muito antes de sentir ‘arte’, senti a beleza profunda da luta. Mas é que tenho um modo simplório de me aproximar do fato social: eu queria era ‘fazer’ alguma coisa, como se escrever não fosse fazer. O que não consigo é usar escrever para isso, por mais que a incapacidade me doa e me humilhe. O problema de justiça é em mim um sentimento tão óbvio e tão básico que não consigo me surpreender com ele — e, sem me surpreender, não consigo escrever. E também porque para mim escrever é procurar. O sentimento de justiça nunca foi procura em mim, nunca chegou a ser descoberta, e o que me espanta é que ele não seja igualmente óbvio em todos.”
Estamos diante de uma permanência temática que muitas vezes não é evidente a quem lê Clarice Lispector, mas que está no quarto de G.H., está no quarto partilhado e meio imundo de Macabéa, e nas ruas por onde Macabéa vagueia, no banho que ela não toma. Está nas prostitutas que então fumavam encostadas às paredes dos prédios da Praça Mauá, está no homem que tocava violoncelo numa pracinha no Recife. Fora dos livros, existe nas memórias dos banhos de mar de madrugada em Olinda, quando era criança, mas também nas descrições de Nápoles, Berna, Washington, de todas as cidades onde viveu longe do Brasil, e a partir das quais olhava o Brasil, um território de paixão, de medo, de injustiça, de criação e, segundo ela, para a criação verdadeira não existe explicação. A criação é um mistério novo, tal como a sua literatura seria um mistério novo. A melhor maneira de definir essa ideia, esse espanto novo que advém da criação, talvez esteja numa das suas crónicas mais brilhantes, Brasília. “Brasília é construída na linha do horizonte. — Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados em primeiro lugar, e depois o mundo deformado às nossas necessidades. Brasília ainda não tem o homem de Brasília. — Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas se digo que Brasília é a imagem de minha insônia, veem nisso uma acusação; mas a minha insônia não é bonita nem feia — minha insônia sou eu, é vívida, é o meu espanto. Os dois arquitetos [Lúcio Costa e Oscar Niemeyer] não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado. A criação não é compreensão, é um novo mistério.”
Quando Clarice escreve, como nordestina, brasileira, está a escrever o quê, que Nordeste, que Brasil? Ou, de outra forma: que Brasil se pode ver na literatura de Clarice Lispector? “Ela não tem uma militância explícita, mas tem uma força militante, mais no plano da retórica, da imagística, que é surpreendentemente forte”, esclarece-nos Nádia Battella Gotlib, especialista na obra de Clarice Lispector, autora de Clarice, fotobiografia. “São vários brasis, dependendo da obra que lemos”, alerta a investigadora. Esse Brasil diverso está na infância de Joana de Perto do coração selvagem (1943); na relação incestuosa de Virginia e Daniel em O lustre (1946); no subúrbio de São Geraldo de A cidade sitiada (1949); em Martim, o homem que foge de um crime em A maçã no escuro (1961); no amor entre Lóri e Ulisses de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969); no monólogo feminino de Água viva (1973); nos diários do Autor e de Ângela do romance póstumo Um sopro de vida (1978); e está em todos os contos e crónicas. “É uma coisa entre o dentro de casa e o fora de casa. E o fora de casa compreende a cidade e o mundo. Aí é que vem a largueza; a partir de certos territórios mais delimitados ela vem aprofundando e transforma aquilo num mundo. Isso é que eu acho bonito, como ela consegue ver o Brasil no mundo”, sintetiza Nádia Gotlib.
A caminhada pelo passeio largo do Leme faz uma curva à direita, já com o sol mais alto, a sombra diminuta, entra na Avenida Princesa Isabel, contorna outra vez à direita, na primeira, a Rua Gustavo Sampaio, mais estreita, edifícios mais antigos, árvores, pequeno comércio, gente apressada àquela hora a andar com um intuito preciso, o emprego, a escola. Há mendigos, não muitos. Um homem grita, leva um saco na mão cheio de tralha, está sujo. É um grito sem palavras. E depois há um quarteirão, outro, sempre outro, uma recta que termina numa ilusão de verde e o prédio, sem também indistinto, varandas castanhas, marquises, cortinas, umas corridas outras cerradas. Clarice morou ali entre 1965 e 1977, os últimos 12 anos da vida depois de se separar do marido. Há fotografias dela na sala com o cão, Ulisses, os quadros, o monte de papéis, o fumo dos cigarros, o seu espaço ínfimo a partir do qual gerou outros, num bairro de classe média alta do Rio de Janeiro, sem monumentos, agora com a sua estátua com Ulisses aos pés, no ponto onde a praia dá a curva junto à Pedra do Leme. Era dali que ela via o mundo, como referiu Nádia Gotlib, dali que criou Macabéa e o quarto de Macabéa.
“Ela trabalha com o de dentro”, sublinha Eliane Robert Moraes — professora de Literatura na Universidade de São Paulo (USP) autora da Antologia da poesia érótica brasileira —, e a partir de dentro, do singular, do corpo ou do quarto, metafóricos também, filtra tudo o que vem de fora. Do quarto da mulher de classe média alta ao quarto da Macabéa. “O quarto é de facto um aposento muito clariceano, mais hermético, um filtro para as coisas do mundo, que acciona a reverberação do mundo no corpo. E aí entra o viés do feminino muito forte”, salienta, enquanto refere o fascínio que a literatura de Clarice exerce nas suas alunas. Por que sobretudo nelas? “Clarice fala muito com as mulheres e fala muito de mulheres. A Clarice tem um olhar para o mundo feminino — seja o que for esse mundo, até interrogando o que é isso —, um olhar tão potente que a gente não pode escapar dessa questão do feminino quando fala da Clarice.” E falará para as mulheres de todas as classes, de todas as idades, a partir do tal “de dentro”.
É um universo singular, irrepetível em autores que se seguiram ou que a antecederam, que olha o outro e procura nele o que há de comum em todos. Eliane destaca um conto, A menor mulher do mundo, como exemplar. É a história de um explorador europeu que chega até uma tribo de pigmeus no centro de África. Diz Eliane: “A Clarice trabalha muito com o pequeno; ela tem um olho para o pequeno, para o insignificante. Por vezes esse pequeno, esse insignificante, pode ser uma água-viva, uma geleia, uma placenta, pode ser algo que simplesmente tem uma pulsação interna, uma pulsação elementar de vida. Ela tem muito interesse por essa coisa mínima, algo que não tem nem nome. Quando vai nomear esse ser humano que é o menor do mundo e que, dentro de si ainda carrega um serzinho que é o menor mesmo, porque a menor mulher do mundo está grávida, ela [Clarice] está voltando para essa matéria recorrente na sua obra, pode ser o ovo ou a barata, a coisa mínima que carrega o máximo de expressividade.” Ou seja, “quando ela vai pegar em específico a história dessa pigmeia, faz isso cruzar com uma questão política, social absolutamente contemporânea, que é o preconceito do grande explorador europeu que vai para a profundeza da África e encontra esse ser; imediatamente ele classifica esse ser, mas esse ser dá uma série de evidências de que há ali muito mais do que aquilo que ele [o explorador] consegue captar. Ela vai mexer no etnocentrismo, há uma crítica ao discurso supostamente científico. É isso que ela vai pôr à prova a partir dessa pulsação elementar desse ser que na verdade está em todos nós, mas que está maquilhado pelas ideologias.”
“EU TAMBÉM”
É falsa a ideia, tanto na perspectiva de Nádia Gotlib, como na de Eliane Robert Moraes, que a obra de Clarice Lispector seja totalmente voltada para o interior e, por isso, desatenta do que se chama de real. Pelo contrário, é a partir do interior que ela é capaz de captar a realidade. “Mesmo os [autores] mais sensíveis não conseguem chegar no nível da densidade de Clarice e da capacidade que ela tem de perceber — não sei até que ponto instintivamente — essa perspicácia em relação ao mecanismo da mente humana. Ela entra no personagem e caminha ali dentro como se tivesse vivendo ali certas experiências tão da intimidade, das profundezas, e aquilo emerge com uma força e um vigor impressionantes”, diz Nádia. E Eliane: “Ela está, sim, olhando para a sociedade. E está olhando profundamente.” Cita outro exemplo, a crónica Mineirinho, que Nádia Gotlib aponta como um dos pontos mais altos da escrita de Lispector. Começa assim: “É, suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes.”
É um exemplo do convite quase permanente em Clarice, um convite ao “eu também”, como sublinha Eliane Robert Moraes. “Entra no quarto da G.H. e tem a massa daquela barata e tudo o que a gente diz ‘não tem nada a ver comigo’ e ela te chama para o ‘eu também’, para essa partilha.” Daí o incómodo que os crimes do Mineirinho suscitam a quem se interroga sobre as razões, sobre a justiça, sobre nós a sabermos, a vermos. As palavras de Clarice em Mineirinho são, por isso, de uma clareza insuportável. “[...] há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.”
Cada pessoa que passa, à luz destas palavras, torna-se mais e mais visível. Não passa muita gente, porque voltou a chover e ali não é um centro da cidade. O Rio de inverno, em dias conturbados, um Rio que parece ter sido alvo de uma violação, o Rio que numa semana só parece saber chover. “Você também só sabe é mesmo chover!”, como lhe disse Olímpico, o namorado, também nordestino, quando passeavam sem saber bem como passear, como conversar. “As poucas conversas entre os namorados versavam sobre farinha, carne de sol, carne-seca, rapadura, melado. Pois esse era o passado de ambos e eles esqueciam o amargor da infância porque esta, já que passou, é sempre acre-doce e dá até nostalgia.”
Do Leme à Rua do Acre não é longe. Do Leme à Rua do Acre neste início do século XXI há uma distância social que para muitos é intransponível. Dez quilómetros, três autocarros até a Candelária, caminhadas intermédias entre eles, em direcção norte. Um caminho solitário, marcado pelo estranhamento, o sentimento muito sublinhado sempre que se fala de Clarice, a que estranhava e se estranhava, que não encaixava em escolas literárias, não se fechava num género, que nasceu fora do Brasil, mas se sentia nele, que viveu fora e construiu também um Brasil metafórico, a que cresceu no Nordeste e apareceu com uma literatura que rompia com o romance nordestino ainda muito em voga quando se estreou com Perto do coração selvagem. O Brasil de Clarice é extraterritorial, com têm notado alguns críticos e como também sublinha Carlos Mendes de Sousa, professor de Literatura na Universidade do Minho, especialista na obra de Clarice Lispector. “A questão social está presente desde o início da obra, embora isso só seja evidente em A hora da estrela, a história da nordestina na grande cidade, mas já na [Clarice que foi] estudante na universidade de Direito. Ela escrevia sobre o direito de punir, a questão da injustiça aparece muitas vezes, até num livro que é fora de tudo, A paixão segundo G.H., onde tudo se passa no quarto da empregada.” O quarto que ficava, escreve a narradora e protagonista, no bas-fond da casa e guardava o preconceito da patroa face à serviçal. “Esperava encontrar escuridões, preparara-me para ter que abrir escancaradamente a janela e limpar com ar fresco o escuro mofado. Não contara é que aquela empregada, sem me dizer nada, tivesse arrumado o quarto à sua maneira, e numa ousadia de proprietária o tivesse espoliado de sua função de depósito.” A empregada foi embora e deixou o quarto limpo. Esse era o inusitado, e nele, escancarava-se uma barata.
“Naquele quarto acontece uma revolução social; é um outro jeito de ver o Brasil, do ponto de vista político, do ponto de vista social; ela vê as mazelas do Brasil ali dentro. Aquele quarto vai-se multiplicando em outros territórios. Ali, ela procura o tesouro da cidade”, salienta Nádia Gotlib, que fala da influência de todos os lugares por onde Clarice passou naquilo que foi escrevendo e no olhar que construiu sobre o Brasil. Estranha, estrangeira, palavras dúplices que outra autora, de outra geração, também ausente do Rio de Janeiro, do Brasil, refere, descrevendo o modo como ela apreende o país de fora, como reage a esse país ele literariamente.
Tatiana Salem Levy, escritora, conhece esse sentimento, o da ausência em relação ao lugar a que se acredita pertencer, ou a que se descobre pertencer estando fora, e como é que literariamente se responde ou reage a este afastamento. “A experiência de ser estrangeira é bem diferente daquele sentimento de ‘estrangeiridade’ que costumamos ligar à escrita. O desconforto da escrita, da inaptidão ao mundo, é muito mais idílico do que a situação cotidiana dos estrangeiros. Tem mais a ver com o estranhamento, com o não se sentir à vontade com o mundo tal como ele é, onde quer que se esteja. É um estranhamento produtivo, digamos assim. Um incómodo que desperta o desejo da escrita, o desejo de criar algum sentido para tantas perguntas. Mas o ser estrangeira é outra coisa”, diz a autora de A chave da casa, actualmente a viver em Portugal, e na cidade onde nasceu, Lisboa.
“Quando cheguei aqui me dei conta de que não sou nem nunca serei portuguesa, não adianta ter nascido aqui nem ter os documentos, porque para a cultura portuguesa só é português/a um tipo de pessoa (branca, com determinado sotaque, com origens que remetem há séculos de ocupação da terra). Aqui, todo mundo me olha como brasileira, e vai ser sempre assim, então eu acabo assumindo ainda mais esse papel. No Brasil, eu podia ser uma brasileira meio portuguesa, meio judia, meio turca... Aqui, não. Aqui, sou só brasileira — muito mais do que era, antes de vir para cá”, continua, referindo então os reflexos desse modo de ser estrangeira ou intrusa, meio qualquer coisa, uma incompletude que contamina necessariamente a escrita no que ela tem sempre de autobiográfico. “Uma vez, falando sobre o meu trabalho, eu me dei conta de que os personagens dos meus livros que nunca saíam do Rio ou adoeciam ou enlouqueciam. O Rio era sempre um lugar de partida e de chegada. Acho que sempre senti essa necessidade de sair do Rio e voltar para ele. É uma cidade muito autocentrada, e se você não sai um pouco você enlouquece. Ou adoece. Como escritora, vou sempre voltar à minha cidade. Sempre voltar ao Brasil. Não me vejo escrevendo um romance que se passe todo em Portugal. Até hoje, não tive esse desejo.”
Como muitas mulheres brasileiras escritoras da sua geração, das gerações que se seguiram a Clarice Lispector, Tatiana Salem Levy viu-se comparada no estilo à autora de A maçã no escuro. O facto despertou-lhe sentimento ambíguos. Se tinha venerado Clarice na adolescência, passara a odiá-la mais tarde, depois da literatura ser o seu modo de vida. Em 2015 escreveu-lhe uma carta a reatar a relação, vem publicada no volume de crónicas O mundo não vai acabar. Foi depois do reconhecimento mundial, que veio com a publicação de Benjamin Moser, Clarice, uma biografia, e da tradução da sua obra para inglês, com todos os seus livros nas montas das livrarias de Nova York e nas mãos dos passageiros de metrô. Clarice deixara de ser um “segredo” bem guardado. Nesse momento, sentiu-se a partilhar um espanto, que descreveu assim: “O espanto de quem assiste, não ao fim do mundo, mas ao princípio de tudo, aquele instante em que uma molécula diz sim a outra molécula e nasce a vida.”
O REGRESSO
O espanto da criação nova? O da conversa continuada em que se indaga? O “eu também” de que falava Eliane Robert Moraes? O de um pulsar comum, com palavras a ganharem novos sentidos. O que é estar longe, ser o outro, o que é o ínfimo, a ausência, o medo, a paixão, a viagem e até mesmo o regresso a qualquer coisa porque é possível regressar quando se detecta uma origem. Não é na Rússia nem na Ucrânia, mas no Nordeste, onde aprendeu a ler e a escrever e decidiu que queria ser escritora porque os livros não nasciam na natureza, como chegou a pensar. Alguém os fazia e ela podia e queria ser esse criador. Aconteceu no Recife onde foi morar com a família em 1925, tinha ela quatro anos, ficou até aos 14.
Em Quanto duram as coisas viaja até esse passado. “Depois minha lembrança é a de — no andar ainda vazio de móveis — olhar pela varanda da Praça Maciel Pinheiro, em Recife, e ter medo de cair: achei tudo alto demais. A casa se acabou? Mas o nome da praça continua o mesmo, segundo me informaram. É capaz do hotel localizar-se no lugar onde era a minha casa. Que acabou, acabou, acabou. Era pintada de cor-de-rosa. Uma cor se acaba? Se desvanece no ar, meu Deus.” A casa está lá, na praça cheia de carros e de pombos, de pessoas sem-abrigo, um segundo andar no centro da cidade, no meio de um corrupio de gente, lojas de produtos baratos, perto de uma Igreja Matriz, a uma rua de distância do Hotel Central que ainda guarda marcas de opulência. Há cozido para almoço, com charque, costela de boi, couve, batata-doce e jerimum, com arroz e pirão. No calor. Na toalha de plástico há o brilho deixado pelo pano húmido da empregada de mesa, uma mestiça que fala e canta no mesmo tom. Em frente, um homem dorme no passeio, debaixo de uma árvore. Não é um sem-abrigo, é alguém que decidiu fazer uma sesta e se levanta, compondo a roupa, para entrar no serviço.
Não há possibilidade de silêncio e, qualquer cor, se se gastou, foi entretanto retocada. Tudo é garrido naquele bairro, perto do Rio Capibaribe, na cidade que gosta se orgulha de ser “a mais rica do Nordeste”, com mais de um milhão e meio de habitantes — metade dos quais registados como “pardos” — cidade cada vez mais vertical, com um centro histórico decadente, a viver sobretudo de comércio e serviços. Dali, Clarice apanhava o autocarro de madrugada e ia até Olinda, a cidade Património da Humanidade, do lado norte do Recife. “Meu pai acreditava que todos os anos se devia fazer uma cura de banhos de mar. E nunca fui tão feliz quanto naquelas temporadas de banhos de Olinda, Recife. Meu pai também acreditava que o banho de mar salutar era tomado antes do sol nascer. Como explicar o que sentia de presente inaudito em sair de casa de madrugada e pegar o bonde vazio que nos levaria para Olinda ainda na escuridão?”, lê-se em na crónica de Banhos de mar, onde apreendemos um quotidiano e o modo como ele a atingia. Há descrição sobre a livraria na esquina de outra rua onde viveu depois da morte da mãe, quando ela tinha 11 anos. Ficava numa das margens do Capibaribe, o rio que atravessa a cidade. Lá, descobriu Monteiro Lobato, o escritor, diria, que mais a influenciou na infância, e actualmente no centro de uma polémica, com a sua literatura a ser considerada de teor racista.
Percorre-se a cidade à procura de sinais, de um contágio evidente entre território e literatura no caso de Clarice, mas ele não é evidente. Talvez um modo ser, um respiro, muito diferente do que está contido na poesia do amigo do Recife, João Cabral de Melo Neto. Chegaram a corresponder-se sobre um modo de ser pernambucano. Que modo será esse? Talvez seja melhor dizer nordestino, corrige um Sidney Rocha, escritor do Ceará, a viver o Recife desde 1983, tinha 17 anos, a cidade que, segundo ele “não se decide entre ser moderna e ser arcaica” e, nisso “é uma réplica do Brasil”, e defende que mais do que falar de literatura nordestina se deve falar de uma “estética” nordestina, que tem a ver com um modo e menos com uma temática referente a uma região ou ao monóculo que devolve a imagem do que se vê da janela, da varanda .
Sidney Rocha vive na Rua Amélia, artéria longa que vai dar a uma das pontes que atravessam o rio e liga o bairro das Graças à Madalena. É uma das ruas mais arborizadas do Recife, a cidade de poucas árvores, onde o sol, quando está alto, queima a pele. “Já viu os nomes? A Rua Amélia, no bairro das Graças, que fica ao lado do bairro dos Aflitos; depois há os Afogados... É uma cidade ao mesmo tempo dramática e trágica. Só não há nada épico.” Ri. “Não ponho o enfoque na paisagem que vejo da minha janela porque a minha janela eu sonho mais do que vejo. Se vejo, dou com prédios falsamente brancos, com uma arquitectura muito dura. O Recife criou para si uma imagem ‘maiamizada’ [de Miami] e, com isso, pratica uma espécie de assassinato, porque a sua arquitectura não tem nada a ver com o seu clima. Os seus prédios querem imitar Miami, São Paulo, é uma cidade caricata. Nos anos 1980 escrevi que o Recife é uma cidade que não se decide entre ser moderna e ser arcaica, aliás, à imagem do Brasil.”
Vencedor do Prémio Jabuti, autor de romance, crónica, contos e poesia, entre eles A estética da indiferença, sobre o “homem mais faminto do mundo”, refere, salientando o que Nádia Gotlib também defende: que o Brasil para Clarice é a língua portuguesa. E essa aprendeu-a no Nordeste. “Clarice morou aqui na infância e se diz do Recife. Isso traz afinidades poéticas, literárias”, referências romantizadas sobre uma região. “O Nordeste antes era uma coisa só. Não há muita distinção entre Pernambuco, Ceará ou Paraíba, essas coisas foram meio que inventadas. Digamos que são tribos diferentes. O homem do sul do Ceará, da tribo dos cariris, de onde descendemos — pelo menos romanticamente, [pois] por aqui há outros tipos de índios. É a isso que se chama Nordeste. Não acho que haja muita distinção entre o homem do Maranhão que cultiva arroz na beira do rio, e o da Paraíba que planta feijão junto a outro rio. Somos todos irmãos no sentido da precariedade num país desigual por igual, que se pasteurizou, deixando de cultivar as diferenças culturais. Pasteurizou-se pela sua misoginia, pela sua homofobia, pelos seus radicalismos, sobretudo se radicalizou em relação às diferenças religiosas. Essa pasteurização deixou o Brasil mais raso.” Pede desculpa se deixa passar alguma amargura e volta à linguagem também como a sua grande paixão, o seu modo de ser e de se ver enquanto escritor. “O que mais me move em relação à linguagem não é nada a não ser a tentativa de elucidar a paixão humana, de traduzir a paixão humana num manejo cuidadoso que tem a ver com a memória e com a imaginação.” E outro paralelismo com Clarice, embora não assumido nesta conversa, um modo de ser pouco engajado. “Não acho que a minha literatura deva alguma coisa à Sociologia ou ao Jornalismo. Não ando preocupado com isso. O que me preocupa é imaginação e linguagem, sem concessões. Há quem encontre relações políticas entre os meus livros e a realidade. Não sei. Eu escrevo sobre o mundo de hoje, o mundo de ontem, o mundo de amanhã. O mundo é uma invenção muito velha e não muda muito. O mundo será sempre esse e o escritor envolvido com a linguagem tem que estar envolvido sobretudo com o mundo, com as suas paixões, no sentido da palavra pathos, de sofrimento.”
A paisagem não ilumina propriamente a literatura de um nem de outro escritor nem de Clarice nem de Sidney, diferentes, num mundo que, apesar de dar a ilusão, não muda no essencial, no pulsar, como referia Eliane Robert Moraes.
“Ela aparece num Brasil marcado pelo romance regionalista e o trajecto dela é absolutamente singular”, destaca Carlos Mendes de Sousa. “Ela diz várias vezes: ‘eu não faço concessões’. E aparece com o primeiro livro, Perto do coração selvagem, um livro completamente ao contrário de tudo o que se fazia. Ela aparece com uma coisa que não é Brasil.” É um espaço extraterritorial, onde alguns lugares assumem uma dimensão alegórica. “Mas nos anos 1970 assistimos a uma espécie de regresso a um lugar mítico, o da sua infância, que se materializa em A hora da estrela. Ela vivia numa esfera muito dentro dela, não estando desatenta. Isso explica tanta coisa, incluindo o modo como parece escapar sempre, deixando sempre coisas por descobrir.”
Já adulta, encontrou uma justificação para nenhum dos contos que escreveu na adolescência e que enviava para o Diario de Pernambuco ter sido publicado: não narrava “fatos”, mas “sensações”, como lembra Nádia Gotlib na fotobiografia. Não começavam por “era uma vez”, salienta Carlos Mendes de Sousa, recordando um dos fragmentos de Para não esquecer.
No dia em que Clarice apanhou o barco para a levar do Recife para o Rio de Janeiro não podia saber que o seu laboratório nunca seria, que essa viagem seria determinante sem que nunca se apontasse o motivo exacto. Era mais um deslocamento, cuja medida não eram os 2,5 mil quilómetros a separar as duas cidades, dois dias e meio de navegação. O Brasil dela seria o do Nordeste, mas também um Brasil interior; seria o Rio de Janeiro e o Leme. “Seus personagens não são apenas do Rio, são de certas ruas, de certos bairros, e trazem a marca disso: no ajantarado de Copacabana ‘a nora de Olaria apareceu de azul-marinho, com enfeite de paetês e um drapeado disfarçando a barriga sem cinta’ [do conto Feliz aniversário]; e ela permanece o tempo todo como que bloqueada em seu reduto espiritual de Olaria, fitando com desafio a sua concunhada de Ipanema”, escreveu Rubem Braga em 1965. E dizia: “A portuguesita preguiçosa e lúbrica só poderia viver na Rua do Riachuelo e jantar com vinho verde na Praça Tiradentes. A senhora da Imitação da Rosa [conto], essa moça ‘castanha como obscuramente achava que uma esposa devia ser’, é basicamente Moça da Tijuca. E o Rio vive nesse livro, com seu jardim botânico e seu jardim zoológico, seus antigos bondes, seu calor, suas noitinhas, seu jardinzinho de São Cristóvão, suas moscas, seus sábados e famílias”, ironizando que a “ucrano-pernambucana”, era, afinal uma “grande contista carioca”.
De frente para a janela do apartamento do Leme, imaginamos Clarice ali. Era uma vez Clarice ali. O que é que esse “era uma vez” implicaria no desenrolar da história que podia começar nesse olhar para a casa onde escreveu os últimos livros? Pode-se contar o Brasil começando por “era uma vez”? Ela parodiou essa possibilidade que, no seu caso, se revelou uma impossibilidade no texto a que chamou Era uma vez. “Respondi que gostaria de poder um dia afinal escrever uma história que começasse assim: ‘era uma vez...’. Para crianças, perguntaram. Não, para adultos mesmo, respondi já distraída [...]”. Lembra as tentativas falhadas em criança, a evolução, e conclui: “Mas desde então eu havia mudado tanto, quem sabe eu agora já estava pronta para o verdadeiro ‘era uma vez’. Perguntei-me em seguida: e por que não começo? agora mesmo? Seria simples, senti eu. E comecei. Ao ter escrito a primeira frase, vi imediatamente que ainda me era impossível. Eu havia escrito: ‘Era uma vez um pássaro, meu Deus.’”