Esta é a oitava reportagem da série Viagem ao país do futuro, na qual Isabel Lucas pensa o Brasil a partir da literatura e da realidade que a ficção representa. O trabalho é publicado em parceria com o jornal português Público. Exceto em situações que criem ambiguidade em relação ao português brasileiro, a grafia mantém o original da autora, escrito de acordo com o português de Portugal.
***
Como olhar o outro na imensa cidade que é São Paulo? Como chegar a ele sem o profanar, o excluir, lhe incutir medo? O que é ter um corpo diferente, ser negro, mulher, pobre, refugiado? A histórias de três jovens ficcionadas na São Paulo de 1970 cruza-se com a de um homem real na cidade de hoje num tempo que parece circular e cheio de pistas para o Brasil actual, um país sempre em construção ou sempre em ruína? Talvez uma coisa e outra, como referem Caetano e Fuks.
Quando a vida era normal, Jé, cabelo crespo quase rapado, pele morena quase negra, bigode como o de um malandro, levou a chave à fechadura e abriu a porta da casa onde mora numa condição muito diferente daquela onde cresceu. “Toda a minha vida, até à idade que tenho hoje, vivi em dois cómodos, eu, o meu pai, a minha mãe e o meu irmão, todo o mundo morava num quarto só; era quarto, cozinha e banheiro. Isso aqui é um palácio. Nunca tive um quarto só para mim”, diz aos 37 anos, junto ao prédio de três pisos, um dos mais baixos do quarteirão, e dos poucos sem porteiro nem segurança, mas onde tem agora um quarto, sala, cozinha, casa de banho e um pequeno pátio. Na verdade é um recorte quadrado de onde pode ver a lua quando ela está a pique.
Nos dias da vida confinada pela ameaça de um vírus, esse recorte de céu é o único horizonte, mais a vista da janela que dá para a rua e para outras janelas, troncos de árvores, silhuetas dispersas, carros parados junto aos passeios. Ao telefone, a voz soa prostrada: “Sair na rua faz falta. Andar, correr, arejar, ver o céu, tomar um sol.”
Jê é estudante de Ciências Sociais na USP (Universidade de São Paulo), dramaturgo, actor, encenador, um homem negro de uma favela da periferia há dois anos a viver num dos bairros mais prósperos de São Paulo: Pompeia, na zona norte da cidade. Ali, sente-se muitas vezes um estrangeiro quando caminha na própria rua. “Na favela, querendo ou não, as pessoas são parecidas comigo, dá para ser mais invisível”, diz enquanto aprende a lidar com uma visibilidade que desconhecia, a de ter um corpo negro num lugar de brancos privilegiados. “É. Quando eu passo tem muito contraste.”
Nos dias de vida normal, Jé caminhava como quem dança, passos largos, o tronco oscilante, a cabeça a acompanhar uma espécie de ritmo interior que contamina o corpo todo. Naquele dia específico, a meio de dezembro, levava um guarda-chuva na mão, de vez em quando o indicador ajeita os óculos. A tarde chega ao fim, os pais esperam as crianças à saída das escolas, há um burburinho de fim de semana. nessa “concha” social — expressão de Lorena, personagem de As meninas, de Lygia Fagundes Telles — Jé foi muitas vezes olhado como ameaça. “Há senhoras que se assustam, gente que guarda o celular, que atravessa a rua, muda de calçada, essas coisas. À noite, se um farol dá em mim, sinto medo.”
O medo de Jé Oliveira não é aquele de que se costuma falar sempre que se refere a criminalidade numa metrópole como São Paulo. É um medo novo sentido por quem sempre viveu na margem e é olhado como diferente; ele é um outro temível numa comunidade que o vê como potencial ameaça. “Por ser um negro da favela”, justifica. E como sabem que é da favela? “Pelo meu jeito, o meu modo de ser.” Talvez por isso, quando caminhamos com ele no bairro onde vive parece ouvir-se à volta um coro silencioso de ironia cínica, um eco das palavras dirigidas por Lorena às amigas “Perdão pela ordem, pela limpeza, perdão pelo requinte e pelo supérfluo, mas aqui reside uma cidadã civilizada da mais civilizada cidade do Brasil.”
Lorena idealizou essas palavras para uma placa a assinalar a entrada na sua “concha” social. Não é difícil imaginar as mesmas palavras à entrada no bairro de Jé Oliveira como símbolo da segregação espacial que caracteriza a cidade. A personagem de As meninas, romance de 1973, ironizava da sua condição privilegiada face a Ana Clara, a drogada quase prostituta que sonhava em ser rica, e também perante Lia, a baiana filha de alemão, deslocada, revolucionária. As três são brancas, estudantes universitárias com a matrícula trancada e partilham uma residência dirigida por freiras católicas num período de contestação estudantil à ditadura militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985.
Nesses anos, São Paulo tornava-se cada vez mais urbana, acolhendo gente muito diferente, com expectativas diversas em relação à geografia e ao lugar que cada um pretendia ocupar. Gente do interior do Brasil e muita gente de fora, até formar uma metrópole que no início dos anos 20 do século XXI é composta por habitantes de 196 países. Parece uma cidade em eterna formação, construída e destruída por camadas desde 1554, quando foi criada pelos jesuítas. Lorena, Ana Clara e Lia, as protagonistas, também são mulheres em formação num país em permanente formação. Jé forma-se nesse Brasil, que continua por sua vez a formar-se e a deformar-se entre as suas ruínas. Na mesma cidade de Lorena, Ana Clara e Lia confronta-se diariamente com a estranheza causada pela sua presença e leva essa perplexidade para o seu trabalho artístico.
Conta uma história exemplar: “Vou ali ao mercado comprar as minhas coisas e uma vez percebi que estava sendo seguido. Pensei: ‘Não vou deixar barato!’ Cheguei na caixa, paguei primeiro e pedi para chamar o gerente. Ele veio, branco, e eu falei: ‘Venho aqui quase toda a semana, sou morador, e pela primeira vez percebi um funcionário da segurança me seguindo. Sei que vai dizer que isso é comum, que trabalham pela redução de danos e que ele estava cumprindo o trabalho; só que também sei que não é todo o mundo que é seguido. Se quiserem me seguir, não deixem eu perceber, porque da próxima vez que eu perceber, vou chamar a polícia, porque isso é discriminação. Exijo um pedido de desculpas.’ Ele pediu. Porque é que eles só seguem algumas pessoas? Isso é discriminação. E isso é a minha vida toda, na periferia também, porque lá as pessoas roubam mesmo.”
Quando anda pela sua rua, a única coisa que Jé Oliveira não tem de seu é o bigode de Jasão, personagem de Gota d’água, o musical de Chico Buarque e Paulo Fontes, que ele adaptou para o Coletivo Negro, o grupo que ajudou a fundar e que “tenta entender a trajectória das pessoas negras dentro do teatro, no Brasil e no mundo, e como formular aí as nossas questões”, explica. Chamou à peça Gota d’água [preta], modo de enegrecer um trabalho de um artista branco, reconhecido, fortalecido. Por isso, há quem critique a opção de Jé em adaptar a peça de Buarque. “Muitos vêem nisso um contrassenso; se a gente está falando tanto de se fortalecer o negro, para que é que vai pegar um autor branco que já é fortalecido em todas as instâncias? Fomos. Porque politicamente ele é um cara coerente com as nossas questões; não de raça, porque não é essa a bandeira dele, mas quanto a posicionamento político é um dos mais legítimos, não foge da luta, não se furta de se posicionar e sofrer as consequências. Depois porque no Gota d’Água trata de questões que são nossas, da nossa vivência e sem arrogância. O professor Salloma Salomão [especialista em História da África e em cultura afro-brasileira] falou que a gente está a fazer um favor para o Chico em enegrecer a obra dele; que ele tentou e, pelas limitações raciais, não conseguiu.”
Gota d’água é a história, em verso, de Joana, uma mulher pobre, lavadeira, e de Jasão, compositor de sambas, o homem que ama e a abandona para casar com a filha de um homem rico. É uma alegoria à tragédia do povo brasileiro a partir de Medeia, de Eurípedes. A acção decorre numa favela do Rio de Janeiro e centra-se no quotidiano dos habitantes da Vila do Meio-Dia. Sozinha, sem meios de subsistir e vingando o desprezo de Jasão, Joana mata os dois filhos e suicida-se. Os corpos estão aos pés de Jasão, no dia em que vai casar com Alma, filha de Creonte. Na encenação de Jé Oliveira, o chão onde tudo se passa é uma bandeira do Brasil ensanguentada, “metáfora para o Brasil actual”, diz. Depois entram as palavras de Chico na canção: “Já lhe dei meu corpo, minha alegria/ Já estanquei meu sangue quando fervia / Olha a voz que me resta/ Olha a veia que salta/ Olha a gota que falta pro desfecho da festa/ Por favor/ Deixe em paz meu coração/ Que ele é um pote até aqui de mágoa/ E qualquer desatenção, faça não/ Pode ser a gota d’água”.
Na introdução à Gota d’água, os autores contextualizam a urgência da palavra, que a peça se propõe ajudar a restabelecer — então numa altura de conformismo. “A partir da década de 1950 um contingente cada vez maior da intelectualidade foi percebendo que a classe média de um país como o nosso — colonizado, desviado do controle sobre seu próprio destino — vive dilacerada, sem identidade, não se reconhece no que produz, no que faz e no que diz. Ela só tem chance de sair da perplexidade quando se descobre ligada à vida concreta do povo, quando faz das aspirações do povo um projeto que dê sentido à sua vida. Isso porque o povo, mesmo expropriado de seus instrumentos de afirmação, ocupa o centro da realidade — tem aspirações, passado, tem história, tem experiência, concretude, tem sentido. É, por conseguinte, a única fonte de identidade nacional. Qualquer projeto nacional legítimo tem que sair dele. Pouco mais de quinze anos de democracia foram capazes de gerar o processo de intercomunicação entre as classes sociais não comprometidas com a expropriação da riqueza nacional, e um setor cada vez mais amplo da classe média se unia às camadas populares para formar um perfil do povo brasileiro ideologicamente mais complexo. Povo deixava de ser, assim, o rebanho de marginalizados; politicamente, povo brasileiro era todo indivíduo, grupo ou classe social naturalmente identificados com os interesses nacionais. Em contato direto com as classes subalternas, a intelectualidade, raquítica e litorânea, ia percebendo que era, também, povo, isto é, que tinha uma história a fazer, uma realidade para transformar à sua feição, tinha responsabilidades, aliados, tinha, enfim, sentido.”
O original é de 1975 e passou na censura depois de negociados alguns cortes. A adaptação de Jé Oliveira é de 2019. “A presença feminina no Gota d’água é muito forte e me soava muito propício esse momento fortalecer a figura feminina preta como a base da sociedade e a Joana representa tudo isso, e tem um cuidado feminino entre elas na peça muito bonito. Isso já é do texto, não inventei. Agora, quando coloco isso na boca de corpos pretos, ganha outra dimensão”, afirma Jé, que se reconhece no contexto, e fala a palavra tantas vezes interdita. Preto. Quem pode? Quando se pode? Pode? “Acho que pode se se criar uma empatia, se tiver um pouco mais de afecto é aceitável, mas numa relação formal não é bem visto. O movimento negro lutou muito tempo para trazer a palavra negro como oposição ao jeito pejorativo com que se chamava alguém de preto. Então, também entre a gente, a gente traz o ‘preto’ para ressignificar um jeito mais afectuoso. Tem mais a ver com carinho. ‘Ah minha preta! Meu preto! Precisa de uma certa intimidade. Politicamente, ‘negro’ é mais higiénico.”
Jé Oliveira fala sentado no sofá, de frente para a estante, ao lado do móvel onde passa parte dos dias a ler e a escrever. O ruído de fora entra pelo vidro, é um rés-do-chão que deixa ver quem passa, fantasiar acerca dos pedaços de conversas que se escutam, palavras soltas, sílabas que se cruzam com o universo interior do dramaturgo e o contaminam, naturalmente. Há um copo de água fresca na mesa. Os olhos vão pousando nele enquanto a conversa decorre. Está na cidade a cheirar a pêssego fantasiada por Lorena, a menina do livro de Lygia Fagundes Telles com ambição de ser escritora que A mesma cidade parece conter toda a angústia, contradição e avidez de outra personagem de As meninas, Ana Clara, a quem as amigas chamam “Turva”. E também a sua perdição ao sair da casa do amante. “Apanhou o cigarro queimado do cinzeiro, fechou no peito a gola do casaco e saiu devagar pisando em ziguezague mas aprumada, a cabeça erguida. Na rua, acelerava-se o movimento sob a garoa engrossando o chuvisco. Ela apertou os olhos contra o céu tumultuado. ‘Merda de noite. Merda de cidade — resmungou esboçando um gesto na direção dos carros que passavam com a velocidade da mão única, os faróis altos, as buzinas atropelando os mais vagarosos. Acenou para um táxi que não parou. Acenou mais vivamente para um segundo, protegendo com a bolsa os olhos ofuscados.”
É fácil perder a percepção do que é real no meio da cidade gigante. Os prédios avistados do alto da colina pareciam esboços numa página de arquitecto, traços para dar profundidade, e acentuam a pergunta: o que é real? “Na realidade a miséria é abstrata. No auge ela é abstrata. Sabe aquele abstrato no estômago?”. Ana Clara sabe do que fala. Ela veio da miséria, ao contrário de Lorena, e vive na numa Grande São Paulo onde, em 2018, a pobreza cresceu 35%. São Paulo é a sexta cidade no mundo em número de bilionários, com 10% da população a viver abaixo do limiar da pobreza e três milhões sem acesso a habitação formal ou a viver em casas precárias. Todos os números são gigantes na cidade mais populosa da América Latina, quase 13 milhões de pessoas e mais de 21 milhões, se contabilizada a área metropolitana. Se fosse um país, São Paulo seria a 36.ª economia do mundo, à frente de Portugal. A cidade onde os pobres sempre foram chegando, sobretudo do Nordeste, massa de gente sem qualificação, para as fábricas, para trabalho doméstico. Lia, a revolucionária de As meninas, a comunista, era quem trazia o assunto, e Lorena ironizava quase sempre o discurso da amiga. “O vinho ela aceita. Também aceita a lagosta, fala lagostim. Mas precisa lembrar a estatística das criancinhas morrendo de fome no Nordeste, esse assunto de Nordeste às vezes exorbita. Não sei até quando a gente vai ter de carregar esse povo nas costas, horrível pensar isso mas agora já pensei e estou pensando ainda que se Deus não está lá é porque deve ter as suas razões.”
CAMINHAR CONTRA A NORMA
Se até Deus abandonou o Nordeste, porque é que a má consciência de uma certa classe continua a ter o Nordeste tão presente, nem que seja para incomodar, parece perguntar Lygia Fagundes Telles, de uma forma tão ardilosa que escapou à censura com um dos romances mais críticos ao sistema. Era o terceiro romance da escritora de 97 anos, que se notabilizou pelos seus contos, entre eles Antes do baile verde, de 1970. A sua literatura incide sobre a classe média branca, aquela onde Lygia nasceu, em 1923, no bairro de Santa Cecília, centro de São Paulo, e na qual cresceu e foi educada. Estudou Direito e Educação Física, numa altura em que poucas mulheres escapavam às funções domésticas, quis ser escritora, casou-se, separou-se, voltou a casar — ou a juntar-se —, provocando escândalo, quando não exista divórcio o Brasil. Fez parte do grupo que assinou o Manifesto dos intelectuais em 1977 contra o regime militar, foi grande amiga de Hilda Hilst e de Carlos Drummond de Andrade. Quando criou Lorena, Lia e Ana Clara foi capaz de fazer uma síntese do paradoxo da opressão e do privilégio que continua a ser um dos temas a suscitar debate apaixonado na sociedade brasileira, questionando, com elas, um regime violento.
Sublinhe-se: a censura deixou passar. Ela brincou com isso em entrevistas. Contava que o censor leu o livro até a página 70 e se aborreceu. Abandonou-o sem dar conta da sua complexidade nem saber o que iria perder, pelo menos aos olhos de um censor: matéria suculenta. Três jovens narram-se e às suas hesitações civilizacionais durante uma greve de estudantes que punham em causa esse mesmo regime. E entre as meninas a voz de um narrador impessoal. Diz Lia à Madre Alix, a responsável pelo pensionato: “O Bezerro de Ouro está instalado na praça e a senhora me fala em espiritualidade. Os adoradores não são espirituais porque são adoradores, entende? O povo não é espiritual porque o povo quer fazer parte da adoração e não pode nem chegar perto, está desesperado, aquele brilho, aquele exemplo de conforto, gozo. Esses desastres, esses crimes, tudo isso é desespero, o povo está sem esperança e nem sabe. Então fica subindo nos postes, dando tiro à toa, bebendo querosene e gasolina de aflição. Medo. Eu estava assim desorientada. Agora sei o que fazer”.
Lia responde à interpelação da madre acerca da violência que vai nas ruas, fala de um povo brasileiro dividido. A mesma argumentação que surge na voz de Jé Oliveira quando sai de casa, caminha pelo bairro, as ruas ladeadas de árvores. “Bairro que tem uma certa estrutura é bairro que tem árvore, se não tem árvore é porque o bairro já é mais pobre. Isso é muito louco”, comenta, já no topo de uma colina. Dali parece que se abarca a cidade toda. Grande ilusão. A cidade toda é um milhão e quinhentos mil metros quadrados de chão, subterrâneos que incluem 69,7 quilómetros de metropolitano com mais de mil milhões de passageiros por ano, cada um com a sua história, o seu olhar sobre a cidade, a sua ilusão de cidade. A sua diferença. Cada pessoa com quem os cruzamos nessa cidade cumpre um papel nesse jogo da polifonia ensaiado por Lygia Fagundes Telles. As suas vozes vão entrando nos referentes de quem com elas se cruza, interferindo nos seus pensamentos, sem licença, um distúrbio. Bom ou mau, não importa. É mais uma vez a existência do outro. Incómoda, surpreendente, humana. Como acontece a cada uma das meninas na complexa rede de vozes em que se elas articulam e que serviu à escritora para mostrar a complexidade do seu mundo naquele tempo.
Bem ao fundo, depois do que parece uma miragem formada pelas torres do centro, intuem-se favelas. Jé confirma. Ele veio de lá. Compara-as com as do Rio de Janeiro. São diferentes no linguajar, mas parecidas na forma como vivem a racialidade. A maioria dos habitantes é negra. Outra diferença é a configuração. “Em São Paulo não tem tanta favela de morro, por causa da geografia. Onde eu nasci são morros mesmo, num lugar chamado Zaira 2, um complexo de favelas que vai até ao Zaira 6. Barracos de madeira, chão de terra. No Rio há a proximidade com a praia, com o centro. Se quer olhar o Cristo Rei tem de enfrentar a favela; as pessoas pelo menos estão unidas no mesmo ar, estão no centro. Em são Paulo, se não tiver muita intenção de se deslocar, não vê uma boa parte da cidade, uma boa parte da pobreza da cidade. Acho isso aqui mais cruel, esse véu invisível, muito potente, de segregação. Só não é apartheid mesmo porque não é institucionalizado.”
Conta que a criminalidade diminuiu nesses lugares, principalmente os homicídios, por conta do PCC, sigla de Primeiro Comando da Capital, uma facção criminosa ligada ao tráfico de droga, rapto, homicídio, que surgiu dentro das prisões estaduais de São Paulo. “Intelectualmente são muito articulados, criaram algumas instâncias institucionais dentro da facção de julgamento de crime”, espécie de milícias. “Só que não subjugam tanto a população quanto a milícia. O negócio deles é o poder armado para agir. Nada revolucionário. Mas é uma busca por justiça dentro do sistema carcerário e eliminar a presença da polícia para fazer o acerto.” Ou seja? “Não se mata mais à toa. Para matar uma pessoa dentro de uma favela de São Paulo hoje, tem um julgamento antes; todo o mundo senta, pergunta porque quer matar, todo o mundo ouve e tem um juiz que decide se vai matar ou não. Isso fez com que os homicídios caíssem.” Uma tebdência Uma tendência desde 2000. A maior queda ocorreu entre 2000 e 2010: menos 78% de homicídios. Dados que continuam a pôr São Paulo no quarto lugar entre as capitais mais violentas do Brasil. Jé termina: “O estupro também não é bem visto, nunca foi. Curioso, né? Mas é a lei do cão.” Para ilustrar o que tenta retratar, refere a série televisiva Sintonia. “Ela tem muitos problemas, mas é sobre o fascínio do Funk, em São Paulo. Assente em três pilares: a Igreja, sobretudo a Evangélica, o tráfico de droga e a música. É como se aquelas pessoas tivessem esses três caminhos. E tem testemunhos de ex-presidiários, conhecimentos dos ritos. Dá para entender como funciona.”
É um mundo distante do olhar de quem vive entre os Jardins, Pompeia, Higienópolis, Vila Mariana, Lapa ou Pinheiros, os bairros de classe média alta de São Paulo. Dos museus, dos restaurantes, das lojas. Dois milhões de pessoas vivem nas favelas de São Paulo, cerca de onze por cento da população da grande cidade que tem mais de vinte milhões de habitantes. É também a cidade do Brasil com maior número de favelas. A maior é Paraisópolis, na zona Sul de São Paulo, nome de telenovela, lugar onde em dezembro de 2019 nove pessoas morreram e ao menos 20 ficaram feridas na sequência de intervenção de militares num baile funk.
Em 1973, Lygia Fagundes Telles levava a precariedade habitacional à ficção pela voz de uma das meninas, Lia, quando se dirigia a Pedro, aspirante a jornalista. “Falar em subdesenvolvimento não é só falar nas crianças, depois dou o número exacto das que morrem por dia. Tem o analfabetismo. A multiplicação das favelas. Os retirantes, dê um passeio pelas rodoviárias, escute o que essa gente fala. Vendedores ambulantes com pentes, lápis, giletes. O lixo estourando nas ruas, como se chamam essas bocas que se abrem entupidas nas calçadas? A sujeira dos cafés, restaurantes, privadas, a sujeira apoteótica dessas privadas, a começar pelas da Faculdade, ô, Pedro! Dê uma ligeira volta por aí e o artigo se faz sozinho no acessório e no principal, como diz a minha amiga em latim (...).”
A descrição parece ter atravessado o tempo e assentar nessa cidade das margens que entra pelo centro todos os dias. Lá estão os vendedores de pensos, de gilete, de meias, de quase tudo. E de droga, negócios que só na Cracolândia — onde moram milhares de viciados em drogas — rende R$ 9,7 milhões por mês, segundo artigo da Folha de S. Paulo. Continuamos com As meninas. Ainda é Lia, agora para Lorena: “Nossos índios se sifilizando, os meninos todos caindo de drogados, favelados e ratos, multiplicação de putas e diminuição de pães”. Tudo acontece a uma escala gigantesca diante dos olhos escondido dos olhares, ali, na maior cidade da América do Sul, símbolo de um país que não desata. Palavra de Jé, favelado que anda agora por Pompeia.
Tudo acontece a uma escala gigantesca diante dos olhos ou escondido dos olhares, ali, na maior cidade da América do Sul, junto à bacia poluída do rio Tieté, 1.100 quilómetros entre a Serra do Mar e o Rio Paraná. É a cidade-referência de um país que não desata. Palavra de Jé, favelado que anda agora por Pompeia. “Aqui não vê criança na rua, tem muito carro, é muito movimentado, tem muita grade. As crianças não interagem entre elas. Não vejo criança jogando bola, brincando na calçada, uma coisa que para mim é comum. No lugar onde eu cresci há o tempo todo. No verão todo o mundo coloca a cadeira na calçada e senta e interage do portão para fora. Isso aqui nunca vi. Estranho muito isso, é como se a vida estivesse presa, não tem interacção com a diferença. As pessoas têm medo. Além da falta de tempo. As pessoas só trabalham. Olha o tamanho da varanda! O princípio da varanda é esse, um pouco do privado indo para o público. Isso forma o bairro.” Sorri, o tom é sempre calmo. Saúda um segurança. “É, quando chego de madrugada, fico apreensivo. É fácil eu ser visto como um não morador.” Desde os anos 1970 de Lygia e de Chico o tempo parece circular. A conversa também. O corpo que não cabe na norma. Aqui, na norma de Pompeia. “Tem a ver com a cor, o modo de se vestir o jeito de andar.” Tudo em Jé parece uma linguagem estrangeira neste lugar.
A HISTÓRIA
Sempre a pé, é tempo de descer a colina que dá para a Vila Anglo Brasileira, conhecida simplesmente por Vila Anglo, já na zona oeste, entre Pompeia e Vila Madalena, um bairro mais popular de casas garridas, gente sentada junto às portas, nos botecos; conversam uns, outros grelham carne em grelhadores de rua, o fumo a estender-se para o céu quando a meia lua brilhante já se distingue no cinzento das nuvens. Um carro quer passar, a curva é apertada no local onde uma laranjeira deixou cair frutos no chão, os pássaros num cantar desenfreado. Parece que uma aldeia foi esquecida nas traseiras da grande cidade. Nesse percurso entre a casa onde vive e a residência artística onde trabalharam Gota d’água [Preta], como Lorena, Lia ou Ana Clara, Jé é o narrador dele mesmo. Conta a sua história como se abrisse aspas.
“A minha mãe é mineira, toda a família da minha mãe é mineira. Uma tia minha veio para São Paulo e engravidou e a minha mãe veio para ajudar. Ela tinha 16 anos, vinha bem do interior de Minas, da roça, de um lugar chamado chamada Teófilo Otoni, cidade bem pequenininha, com bastante área rural, pouca área urbana, bem simples; é quase Bahía, já. Fui uma vez. Tem só uma tia lá, de resto veio todo o mundo. Eles saem de uma realidade de roça, de pobreza, e chegam aqui e viram favelados, que é outra configuração. E toda aquela riqueza que eles nem sabiam que tinham, de criação (de animais), é mal vista quando chegam na favela; é o que tem de desprezível, criar galinha em São Paulo! A minha mãe falava disso e de que a coisa mais marcante foi o frio. Ela chegou no início da década de 1970. Ela nasceu em 1954, vai fazer 65 anos. O Brasil [no início da década de 1970] era tricampeão. Estava começando a urbanidade, tinha muito emprego nessa época nas metalúrgicas, as fábricas estavam começando.”
Instalou-se na região conhecida como a Grande ABC, ou ABCD, já que congrega as cidades de Santo André, São Bernardo do Campo (onde vive Lula da Silva) e São Caetano do Sul, e ainda Diadema. Originalmente católica, é uma área com mais de dois milhões e meio de habitantes que integra ainda Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra. Foi o primeiro grande centro da indústria do automóvel do Brasil e núcleo do movimento sindical. É aí, a uns 25 quilômetros de Pompeia, ou do centro de São Paulo, que a família de Jê Oliveira se instalou.
“A minha mãe conhece o meu pai quando vai para lá. O meu pai era da região de Santo André, ele é mais velho do que a cidade; se conhecem dentro do trem indo trabalhar nessas metalúrgicas. Os dois eram metalúrgicos. A minha mãe já era mãe solteira de um filho de um mineiro, um cara branco que engravidou uma mulher negra e sumiu, meteu o pé. É o meu irmão mais velho, tem cinco anos mais do que eu. Nunca conheceu o pai. O cara só registrou. Muito típico por aqui, o cara branco. O caso da minha mãe é exemplar.”
A mãe de Jé, e Lorena, Lia e Maria Clara, de As meninas, como a Joana de Gota d’água, são contemporâneas, reais e ficcionais, num Brasil autoritário, que como todos os autoritarismos, em todas as latitudes, põem a nu a fragilidade dos corpos. Os das mulheres e também o de Jé, no Brasil actual. A comparação entre os dois tempos, o contemporâneo e o da década de 1970, tem vindo a ser feita desde que o Brasil se polarizou nos últimos anos, os discursos e as políticas se radicalizaram. “A interseccionalidade entre o feminismo e a questão racial é muito grande. O medo de morrer, a vulnerabilidade do corpo. No caso das mulheres essa vulnerabilidade é ainda é sexual, e nas negras mais ainda. [O dramaturgo] Heiner Muller dizia que a mulher é o negro do mundo. E Angela Davis sublinhou no Mulheres, raça e classe [original de 1983] que as escravizadas ainda tinham essa função, sexual.”
Em 1970, 1973, 1975, os anos da mãe de Jé, de Lorena, Lia e Maria Clara, de Joana, mulheres que dificilmente se teriam cruzado, havia uma revolta contra a norma, mais ruidosa ou mais camuflada ou conformada, se é que isso existe, revolta conformada. Uma metalúrgica negra do interior de Minas na periferia de São Paulo, três universitárias de classes sociais e aspirações tão distintas, uma lavadeira de uma favela do Rio de Janeiro, e uma escritora, Lygia Fagundes Telles que criou três delas de forma a fazer ouvir a diferença num momento em que, como em qualquer momento autoritário, a tentação é calar a diferença. “As meninas é um aviso sobre o valor de pensarmos em conjunto mesmo diante dos pactos frágeis entre pessoas diferentes”, escreveu Ana Rüsche no número do Suplemento Pernambuco que celebrou os 45 anos do romance daquela que é considerada a grande escritora viva do Brasil. Dizia ainda: “Há livros que parecem feitos sob medida para momentos históricos. As meninas alcança-nos hoje com exatidão. Diante de mais um momento tenso na história do Brasil, quando direitos assegurados há décadas podem se alterar a qualquer momento, o romance de Lygia Fagundes Telles é preciso. Ler As meninas é receber, por um túnel do tempo, uma correspondência íntima do outrora ao agora. Com o carimbo estampado: ‘urgência’.”
Na mesma edição, o editor e tradutor norte-americano Eric Becker tecia uma comparação entre o momento do livro de Telles e as tensões políticas e sociais vividas actualmente no Brasil e nos Estados Unidos. “Mais do que a afinidade pela força bruta, o que aproxima os discursos opressores do passado e do presente é a tentativa de nos vender uma visão nacionalista amparada na ideia de uma sociedade homogênea — ’um povo só’ — que não permite a dissonância ou a diferença e, por isso, em nada corresponde à diversidade constitutiva do mundo humano”, afirmava, sublinhando o registo polifónico do livro que quis fazer uma ruptura com o chamado romances de mulheres. Aquelas mulheres eram a diversidade do Brasil e a sua autora uma inconformada com o estado das coisas. Diz ainda Becker: “O grande paradoxo do romance é a coexistência de um desafio às atitudes da época e da reiterada decepção que o leitor sente, por outro lado, ao ver as três meninas repetirem comportamentos e pontos de vista que reforçam os preconceitos de então. Nesse jogo de contraposições, está parte da genialidade do romance de Telles.”
Quando se aborreceu com o livro e o abandonou, o censor não chegou a um dos momentos mais contundentes do romance. É aquele depois de Lia falar à madre das frustrações do povo e da violência nas ruas. Lê-lhe o testemunho de um torturado, um botânico que distribuiu panfletos numa fábrica. A seguir foi preso. Conta ele, na voz de Lia: “Ali interrogaram-me durante vinte e cinco horas enquanto gritavam, traidor da pátria, traidor! Nada me foi dado para comer ou beber durante esse tempo. Carregaram-me em seguida para a chamada capela: a câmara de torturas. Iniciou-se ali um cerimonial frequentemente repetido e que durava três a seis horas cada sessão. Primeiro me perguntaram se eu pertencia a algum grupo político. Neguei. Enrolaram-me então alguns fios em redor dos meus dedos, iniciando-se a tortura elétrica: deram-me choques inicialmente fracos que foram se tornando cada vez mais fortes.”
“Depois, obrigaram-me a tirar a roupa, fiquei nu e desprotegido. Primeiro me bateram com as mãos e em seguida com cassetetes, principalmente nas mãos. Molharam-me todo, para que os choques elétricos tivessem mais efeito. Pensei que fosse então morrer. Mas resisti e resisti também às surras que me abriram um talho findo em meu cotovelo. Na ferida o sargento Simões e o cabo Passos enfiaram um fio. Obrigaram-me então a aplicar choques em mim mesmo e em meus amigos. Para que eu não gritasse enfiaram um sapato dentro da minha boca. Outras vezes, panos fétidos. Após algumas horas, a cerimônia atingiu seu ápice. Penduraram-me no pau-de-arara: amarraram minhas mãos diante dos joelhos, atrás dos quais enfiaram uma vara, cujas pontas eram colocadas em mesas. Fiquei pairando no ar. Enfiaram-me então um fio no reto e fixaram outros fios na boca, nas orelhas e mãos. Nos dias seguintes o processo se repetiu com maior duração e violência. Os tapas que me davam eram tão fortes que julguei que tivessem me rompido os tímpanos, mal ouvia. Meus punhos estavam ralados devido às algemas, minhas mãos e partes genitais completamente enegrecidas devido às queimaduras elétricas (...)”
Em entrevistas, Lygia Fagundes Telles referiu que esta é a única cena baseada em factos reais. Foi uma carta que um torturado lhe enviou e ela quis que estivesse em As meninas.
Era no tempo da grande explosão demográfica de São Paulo, o início do consumo massivo de drogas, o despertar para os direitos das mulheres, a consciência de que havia opressão, classe. As origens de Jé Oliveira estão aí.
“Depois de dois anos de casada com o meu pai, eu nasci. Antes da minha mãe ser metalúrgica, foi empregada doméstica. Ela saiu da metalúrgica para me ter, depois voltou a ser empregada doméstica quando eu cresci um pouco. O meu pai continuou metalúrgico a vida toda, se aposentou depois de muito custo e antes do Bolsonaro, e a minha mãe foi empregada doméstica durante muito tempo. Eu venho dessa realidade, do ABC, da metalurgia.”
Jé fala de si como de um colectivo; a sua história é a de muita gente que continua a viver em Mauá. “Antes de fazer teatro fiz o Senai, uma escola para ser operário. Era a minha perspectiva, o sonho do meu pai, o que ele não conseguiu ser. Ele não conseguiu estudar, foi aprendendo a fazer. O Lula fez o Senai, no Ipiranga, perto de onde eu fiz. Quando eu passei no Senai, para o meu pai... nossa! Foi o máximo a que eu podia chegar. Quando eu estava no ensino médio, a faculdade para mim era como se não existisse, porque ninguém de onde eu vinha achava que era coisa para nós. Nem os professores. Acho que eles subestimavam tanto a gente que esse imaginário não era fomentado. Na minha família sou o primeiro a entrar numa faculdade pública, ainda mais a USP. Quando eu digo para o meu pai que passei na USP ele diz: ‘Meu filho, parabéns!’, mas ele não tem a dimensão. Do Senai ele tem. Quando eu comecei a fazer teatro lembro a minha mãe dizer que, se era o que eu gostava, achava bonito. ‘Se dedica, faz, mas você tem profissão.’, dizia. Agora já não fala isso. Ela viu as coisas acontecerem.”
Jé Oliveira começou a fazer teatro mais a sério em 2008, quando integrou o Colectivo Negro. Em 2016 escreveu e encenou Farinha com açúcar ou sobre a sustança de meninos e homens, uma homenagem ao Racionais MC’s, o grupo rap brasileiro fundado em 1989 por Mano Brown. “Se eu não os tivesse escutado não teria sido artista”, diz. Publicado em livro, é um texto sobre a questão racial nas grandes cidades brasileiras, que quis pensar como o corpo negro se movimenta na urbe. Estão lá medo, a violência, o preconceito, as frustrações. A crítica foi muito elogiosa. E em 2019 trabalhou na adaptação de Gota d’água. Com turnês em alguns dos principais teatros do Brasil, Jé ganhou uma visibilidade antes impensável para alguém com as suas origens. “O acesso à universidade mudou muito, e o acesso ao conhecimento abre muitas possibilidades, o debate fica mais maduro. Tudo isso fez que surgissem muitas mais pessoas. Todos somos formados. Se compararmos com a história do Teatro Experimental do Negro, que surgiu em 1944, no Rio de Janeiro, as pessoas que queriam fazer aquilo não sabiam nem ler. Tinham de ser alfabetizadas, eram empregadas domésticas, operários. Hoje a gente já está numa outra condição. Já avançou muito nesse sentido por mais que a necessidade de ainda se ter um colectivo negro seja a mesma deles em 1944, o que é muito triste.”
O CLAMOR
“Sozinho na multidão/ Boa noite, São Paulo”, cantou Mano Brown. A cidade acende e apaga consoante é noite ou dia, mas tem um rugido a mostrar que está sempre viva mesmo nas horas de sono. Existe entre os passos acelerados de quem sai do metrô em direção a um escritório, ou da letargia dos que se encostam numa parede, se deitam num banco de jardim, ficam no chão. Têm todas as idades, desde a Sé, o bairro no centro onde a criminalidade atinge o pico, até à periferia. Parece um corredor de mazelas civilizacionais incuráveis dentro de uma normalidade tantas vezes escrita por contraste. Existe. Até existe no sonho dos que querem ir para lá. Tudo normal, como se lê, por exemplo, no conto de abertura de A cidade dorme, livro de Luiz Ruffato. “Agora que estou terminando o primário, meu pai avisou que vai me inscrever no Senai, para eu aprender uma profissão. Ele quer que eu seja torneiro-mecânico que nem meu irmão, e sonha um dia ir para São Paulo trabalhar nas fábricas de carro, que é onde está o futuro, ele diz.” Ele é um rapaz do Nordeste, do interior, como Rufatto, como a mãe de Jé, como Lula, como milhões de migrantes que se instalaram numa altura em que se deu o chamado boom da verticalização de São Paulo. Os anos 1970. Bairros como Pinheiros, Liberdade, Avenida Paulista, Pompeia ou Santa Cecília exibem essa explosão demográfica na sua arquitectura. Lygia conhecia essa realidade. Ela nasceu precisamente em Santa Cecília, mas em 1923. Em 1973, tinha 50 anos e transportou esse clamor urbano para o seu terceiro romance. “Aqui também chegou a praga dos apartamentos”, dizia o pai de Lia numa carta, desde a Bahia. “Nosso bairro está sendo invadido mas resistiremos. Quando você chegar e encontrar uma única casa em toda a cidade, pode entrar que é a nossa.”
E o clamor de quem se refugia e forma a grande urbe do presente? Como olhá-lo sem ser com o olhar estrangeiro, como os de Pompeia, por exemplo, olham Jé, ou os da favela olham os do centro? Julián Fuks, 39 anos, escritor, brasileiro natural de São Paulo, tratou o encontro com a alteridade da cidade onde vive no seu último romance, um livro nascido da urgência de pensar o presente do Brasil. Chama-se A ocupação e passa-se num edifício que já foi muito sumptuoso, um hotel de luxo nos anos 1950 e 1960 do século XX. O Hotel Cambridge.
O livro nasceu de um convite para fazer ali uma residência artística. Fuks estava a pensar num romance que aludia a Os olhos dos pobres, poema em prosa de Baudelaire, e iria chamar-se Os olhos dos outros. “Foi em 2016, achei que aquela experiência, de convívio e permanência naquele lugar se relacionava bem com o que eu ia construindo em Os olhos dos outros, ajudava a compor. Não era um olhar baseado nos encontros rápidos, fortuitos casuais pelas ruas, mas uma imersão naquele espaço. Um velho hotel, luxuoso e depois abandonado e que entretanto foi ocupado por moradores sem tecto. Essa ocupação foi-se oficializando, o espaço foi-se transformando e tornou-se uma ocupação bem instituída”, refere Fuks sobre a génese do seu livro no mesmo local onde foi feito um filme, Era o Hotel Cambridge (2016). “A noção que tive daquele espaço e daquelas pessoas foi-se transformando. Minha atenção fixou-se no presente daquele espaço. Era uma premência, saber da colectividade. O outro já não era individual, mas um colectivo, a formação de um colectivo na contemporaneidade e de como nesse colectivo o desalento individual deste tempo se desfaz um pouco e torna-se resistência.”
Lá, o narrador escuta que todos ali são refugiados, “refugiados em país próprio ou estrangeiro”, precisa um dos moradores. “Eles nos querem vagabundos, nos querem bandidos, maltrapilhos, indigentes. Quem que nos falte tudo, país, terra, casa para viver, chão para morrer. Esse é o erro deles: não sabem que somos todos refugiados, não sabem com que força os refugiados se fincam na pedra, como chega fundo à raiz do desterro.”
O que é que esse espaço no centro histórico de São Paulo diz desta cidade? “Muito. Você chega num espaço completamente deteriorado no centro de São Paulo e o contraste entre riqueza e pobreza, entre permanência e deterioração é muito evidente. A riqueza do passado se enxerga ali, e a do presente também. O contraste é o que mais chama a atenção”, afirma Julián Fuks sobre um prédio de 12 andares, “imagem do destroço do centro da cidade de São Paulo. Aquela ocupação parecia muito teatral, o acto de ocupar aquele espaço; me parecia que nunca poderia ser transformado numa moradia de pessoas. Foi. E era como uma inversão da sentença de Caetano Veloso na canção Fora da ordem”. Referindo-se ao Brasil, Caetano cantou: “Aqui tudo parece/ Que era ainda construção/ E já é ruína”. Naquele caso, já era construção. Mas a metáfora de Caetano serve também a São Paulo. Parece construção e já é ruína, já é ruína mas parece construção. As duas coisas existem em simultâneo. “Uma cidade produz a outra. A quantidade absurda de prédios abandonados é fruto da especulação imobiliária”, salienta Fuks.
O que se passa no livro é também a história da transformação de um homem que existe numa espécie de mantra: “Todo o homem é a ruína de um homem”. Escrito numa linguagem que não quer ser a de um estrangeiro que olha. Esse parece ser sempre o desafio da coexistência — quando se lê Lygia, se ouve Chico, se escuta Jé, quando somos leitores de As meninas, quando se espera que Arnaldo Antunes chegue ao lugar da ocupação para animar um almoço de domingo, entre moradores, convidados, gente que dança de cerveja na mão. Ninguém parece estrangeiro ali, entre cartazes que reclamam o direito à moradia, num núcleo de um grupo que ocupou dez edifícios que pareciam a manifestação extrema da ruína e parecem ir-se transformando em mais do que retrocesso civilizacional.
No tempo da escrita deste texto, que não é o tempo dos dias normais de Jé nas ruas de Pompeia, nem de Fuks na ocupação, as pessoas não se juntam. “Fui a semana passada lá no bairro dos meus pais, muito rápido, para arrumar uma questão que estava acontecendo com a tê-vê deles, e está todo o mundo muito assustado.” Na Zaira, como noutras favelas do Brasil, vive-se a apreensão dos mais vulneráveis, como canta MV Bill, o rapper nascido na Cidade de Deus, célebre favela do Rio. “Na favela, pra nós a covid é diferente/ As casas não são grande e geralmente muita gente/ Aglomeração inevitável/ Alguns lugares ainda não tem água potável/ Se cuida aí/ Ih, que vai faltar espaço na UTI/ Se a gente não fizer o certo pra se prevenir/ Lavando bem as mãos evitando toque na mucosa/ O bagulho é sério não tem cura milagrosa/ Pois bem não tem plano de contingência/ Alguns vão se contaminar por conta dessa negligência/ Outros vão pegar por conta da ignorância/ Liderança que se perde se acha na arrogância.” A faixa chama-se Quarentena, foi composta numa urgência semelhante ao livro de Fuks, a representação do presente. Tem eco na narrativa verbal de Jé sobre o imediato. “Lá não há ajudas, nem nada acontecendo nesse sentido. É cada um por si, uns levando ainda com menos seriedade. Parece que enquanto não morrer alguém próximo as pessoas não acordam. A impressão que dá é essa — só quando morrer alguém próximo é que as pessoas vão levar a sério. Diante disse vírus não tem mais branco, não tem mais preto. Todo o mundo é perecível.” Como é que isso se vai reflectir no discurso artístico? Ainda não sabe, “mas vai”, garante.
O espanto de Jé é o espanto do mundo diante de uma realidade nova e contém nele um espanto já atenuado sobre o Brasil de hoje. “Gente da minha família, filho de empregada doméstica que nem eu, apoia Bolsonaro. Bolsonaro tem uma coisa que chega nas pessoas de um modo muito forte, que é muito parecida com o Lula. O que é que é o Lula? O Lula é um cara comum, que dentro de uma realidade social que nem essa você encontra no bar, na esquina, pode ser o seu tio. Bolsonaro também. Na loucura dele, é o tio. O tio que fala merda com quem todo o mundo dá risada e não leva muito a sério. Isso aproximou as pessoas. O mesmo processo que aconteceu com Trump nos Estados Unidos. E no Brasil tem essa coisa terrível: o pobre quer ser rico, a classe média quer ser rica. Não estou falando que as pessoas não têm que melhorar de vida. A pobreza não é boa para ninguém.”
Ana Clara também fugia mais do que de tudo da pobreza. Ela que deixou de sentir o amor, a paixão, travada os sentimentos. Era pobre, mas Lygia não fez dela um exotismo, como era comum na época. Chico também não fez isso com Joana. “Comadre Joana já saiu ilesa/ De muito inferno, muita tempestade”, diz Corina, depois de ouvir que “Joana é fogo”, que “Joana é o diacho”. Chico Buarque e Paulo Pontes queriam que a peça contribuísse para enriquecer a linguagem teatral, aprofundar o pensamento, permitir que essa linguagem fosse capaz de abarcar a complexidade do Brasil. Na introdução a Gota d’água escreveram: “Sejam quais forem os resultados artísticos desse trabalho — e temos consciência das suas limitações —, gostaríamos que ele fosse entendido, apenas, como mais uma tentativa, entre tantas que começam a surgir, de reaproximação do teatro brasileiro com o povo brasileiro.”
Jé, que também é Jasão e pode ser muitos outros, diz mais ou menos o mesmo, 45 anos depois. “O país não é de confiança, mas a gente tá aqui tentando.”