Esta é a sétima reportagem da série Viagem ao país do futuro, na qual Isabel Lucas pensa o Brasil a partir da literatura e da realidade que a ficção representa. O trabalho é publicado em parceria com o jornal português Público. Exceto em situações que criem ambiguidade em relação ao português brasileiro, a grafia mantém o original da autora, escrito de acordo com o português de Portugal.
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Numa caligrafia bem desenhada, Milton Hatoum faz uma lista de lugares de Manaus e é como se ali, no papel, a cidade ganhasse finalmente um contorno definido depois do primeiro vislumbre, a partir do céu. Um imenso plano desfocado entre duas linhas de água barrenta, uma ponte e a vastidão do verde. Da janela do avião, a imagem é quase monstruosa, excessiva, deformada pelo caudal de gotas que escorre pelos vidros, olhos míopes só capazes de adivinhar silhuetas. Lá fora os trovões, a chuva, o vento, o cinzento quase preto da atmosfera são uma maneira de dizer ao viajante caloiro naquele atlas que aquele lugar não encaixa nos padrões normais, espécie de cidade sitiada, ou “ilhada” — como lhe chamou o escritor —, onde um há único adjectivo que se ajusta à dimensão do que se vai sentir e ver. A abundância, a pobreza, o calor, a humidade, o assombro, o silêncio e o ruído, a decadência e a opulência, o medo, a devastação, os contrastes ou a medida daquelas tempestades. Tudo será amazónico, que é outra maneira de dizer colossal.
Os dedos do escritor deslizam pela folha branca traçando uma rota. A Praça da Polícia, actual Praça Heliodoro Balbi, o Colégio D. Pedro II, que é o colégio estadual do Amazonas, a área do porto com a Praça de Nossa Senhora dos Remédios, antigo lugar dos imigrantes sírios e libaneses, a Rua dos Barés, o Mercado Adolpho Lisboa. A geometria do desenho que vai surgindo, com nomes de ruas, de praças, de edifícios, dos igarapés — em tupi, "caminho estreito de água", de pouca profundidade, embora navegável — que atravessam a cidade, os Rios Negro e Solimões, tudo a remeter tanto para uma linha do tempo onde se pode ler a evolução da cidade como para uma ideia de criação. Um dia a cidade nasceu para albergar a ambição desmedida dos homens que perceberam a grandeza daquele território longínquo, um fim de mundo, ou, como escreveu Euclides da Cunha, uma região “à margem da história”. Afirmações como esta ignoravam que desde há muitos séculos viviam ali vários povos indígenas, entre eles os manaós e os barés. E a “história” a que o autor de Os sertões se referia não era mais do que a do homem branco que começou a ocupar aquela terra apenas no século XVI. Primeiro os holandeses e os ingleses, depois os portugueses que chegaram um século mais tarde e fundaram a cidade de Belém, no Pará. Como Belém, Manaus nasceu de uma fortificação na margem do Rio Negro porque era preciso controlar a entrada de invasores estrangeiros na fronteira noroeste do país. A cidade de Manaós, nome da tribo que mais resistiu ao ímpeto esclavagista dos portugueses naquela região, seria a capital do estado do Amazonas, criado em 1889. Nessa altura, a cidade era um porto para escoar borracha para a indústria em expansão em todo o mundo e um centro onde afluíam migrantes de todo o Brasil e negociantes estrangeiros. Nascia uma das cidades mais cosmopolitas do país, construída segundo o ideal das grandes urbes da Europa. “A era da borracha foi curta, terminou nos anos 1910, mas deixou pegada, e Manaus converteu-se na capital do norte, as suas ruas, teatro e costumes se aburguesaram, e o estado enriqueceu da noite para o dia”, lê-se em Brasil, uma biografia, de Lilia Schwarcz e Heloisa Starling.
Entre os que chegaram a Manaus estavam os antepassados de Milton Hatoum. Vieram de uma aldeia do Líbano quatro gerações antes sem poderem imaginar que, muitos anos depois, esse filho e neto faria de todas essas histórias a grande potência da sua literatura. “As palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras verdadeiras”, diz o narrador de Dois irmãos, o seu romance mais premiado, mais conhecido, adaptado a série de televisão por Luiz Fernando Carvalho, o mesmo que adaptou Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, e a banda desenhada pelos gémeos Fábio Moon e Gabriel Bá. E é como se a fala desse narrador resumisse o tempo da espera inerente à escrita de Hatoum, paciente, lenta para tentar chegar mais perto de uma essência de verdade, feita da experiência pessoal, território vivido, cruzamento de referências literárias, culturais, enquadramento social e político, um olhar demorado sobre o outro, alimentada por uma permanente inquietação em relação ao mundo e, em particular, ao país.
Em Dois irmãos estamos em Manaus desde a febre da borracha na casa do libanês Halim e de Zana, também filha de um árabe. Um e outro pertencem a gerações diferentes de imigrantes que saíram na crise do Império Otomano em direção à América. O Brasil recebeu 107 mil pessoas vindas do Oriente Médio de 1884 a 1939. Halim e Zana partilham uma paixão um pelo outro e desse amor impetuoso nascem os gémeos Yakub e Omar. São iguais por fora, mas totalmente diferentes no modo de ser. O silêncio de Yakub contrasta com o ímpeto de Omar, o preferido da mãe. Na adolescência lutam pelo amor da mesma menina e Omar marca para sempre o rosto de Yakub. A cicatriz em forma de meia lua era para sempre e parece mais vincada depois do regresso de Yakub do Líbano. Os pais decidiram mandá-lo durante uma temporada para o lugar original da família, e ele voltou cinco anos mais tarde com outra língua, mais silêncio, a mesma disputa pelo amor da mãe. Eles serão o centro de uma rede de relações complexas que incluem traição, incesto, rancor. Seguimo-los enquanto a cidade e a família entram em decadência. Um sai, outro permanece enredado no vício. Noel, filho de Domingas, a fiel empregada da casa, uma indígena resgatada a um orfanato da cidade para onde foi levada depois da morte do pai na sua aldeia natal, é o observador discreto, um filho bastardo a tentar saber do seu próprio segredo. Ele será o narrador de uma história marcada pela vingança.
Yakub e Omar são a metáfora da cidade, dois opostos que carregam uma existência inconciliável. Como o rosto de Yakub, que cicatrizes misteriosas guarda Manaus? Que paralelos podem existir entre essa ferida e as feridas abertas desta espécie de “grande camelódromo” em que a cidade se transformou — palavras de Milton —, onde se vende tudo para compor orçamentos escassos, numa paisagem de abundância sobrevoada por abutres e gente, muita gente, que compra e vende entre muito ruído, um caos de trânsito e pregões num quase mercado árabe a céu aberto junto ao maior porto flutuante do mundo, num rio onde a imundície é um grito amazónico de socorro pelo ambiente. O rio onde existiu a Cidade Flutuante, um bairro habitado sobretudo por gente vinda do interior do estado, que se destacou na década de 1950, perto da chamada Feira da Manaus Moderna, com casas, restaurantes, comércio, consultórios médicos, oficinas de automóveis, bares, uma “certa libertinagem”, como lhe chamou Otoni Mesquita. Foi demolida em 1966. Tinha quase 2 mil casas e mais de 11 mil habitantes. Um governador local chamou-lhe “vergonha para a civilização de Manaus”.
Halim, pai de Yakub e Omar, assistiu à demolição. “Os moradores xingavam os demolidores, não queriam morar longe do pequeno porto, longe do rio. Halim balançava a cabeça, revoltado, vendo todas aquelas casinhas serem derrubadas. Erguia a bengala e soltava uns palavrões, gritava: ‘Por que estão fazendo isso? Não vamos deixar, não vamos, mas os policiais impediam a entrada no bairro. Ele ficou engasgado, e começou a chorar quando viu as tabernas e o seu bar predileto, A Sereia do Rio, serem desmantelados a golpes de machado. Chorou muito enquanto arrancavam os tabiques, cortavam as amarras dos troncos flutuantes, golpeavam brutalmente os finos pilares de madeira. Os telhados desabavam, caibros e ripas caíam na água e se distanciavam na margem do Negro. Tudo se desfez num só dia, o bairro todo desapareceu. Os troncos ficaram flutuando, até serem engolidos pela noite.”
Na cidade de Yakub e Omar coabitam a natureza excessiva e o desperdício ultrajante, a ostentação e a miséria, e à volta da Rua de Frei José dos Inocentes, na zona mais antiga da cidade, há sinais de outra luta: a das prostitutas e a dos evangélicos. É um duelo escrito na pedra, em fachadas abandonadas, ruínas, muros. “Para as Damas da Noite. Tu me sondas Senhor, em tudo me conheces.” A cidade do “pecado” está ao lado da fé dos evangélicos, misturada com a dos que migram à procura do futuro, dos que namoram na Praça de S. Sebastião, dos que enchem salas e praças para ouvir um escritor. Como podem coexistir tantos contrastes? Talvez dois irmãos desavindos numa discórdia bíblica possam mesmo ser a metáfora desse lugar.
Milton Hatoum desenha a geografia de Dois irmãos na Banca do Largo, mais conhecida como Banca do Joaquim, um velho ponto de venda de jornais transformado no epicentro da cultura manauara. Fica num dos cantos da Praça de S. Sebastião, junto ao Teatro Amazonas. É uma construção de ferro verde, minúscula, de menos de 30 metros quadrados, um contraste com a opulência de um dos maiores teatros do Brasil. Joaquim Rodrigues Melo comprou-a em 2006 e fez dela a livraria com a oferta mais extensa de literatura de e sobre a Amazónia. É sábado de manhã, ouve Miles Davis, não há clientes a chegar. Na noite anterior, o espaço em frente da banca, protegido por duas grandes mangueiras, encheu para ouvir Ailton Krenak, o activista e líder indígena natural de Minas Gerais que ali foi lançar o seu Iivro Ideias para adiar o fim do mundo. “Saímos daqui a uma e meia da manhã, estivemos conversando e batendo foto”, conta Joaquim numa voz calma, quase sumida. No dia antes de Krenak, Milton lançara ali Pontos de fuga, segundo volume da trilogia inaugurada em 2017 com A noite da espera, e nessa noite será a vez da jornalista Eliane Brum com Brasil, construtor de ruínas: Um olhar sobre o país de Lula a Bolsonaro. Meses antes, Brum afirmara que a Amazónia era o centro do mundo. “Manaus é tanto uma floresta em ruínas como as ruínas de uma ideia de país. Manaus pode ser vista como a escultura viva de um conflito iniciado em 1500, com a invasão europeia que causou a morte de centenas de milhares de homens e mulheres indígenas e a extinção de dezenas de povos. Neste momento, em 2019, testemunhamos o início de um novo e desastroso capítulo”, disse a jornalista no primeiro encontro do Rain Forest Journalist Fund, lembrando que o Brasil detém 60% da floresta amazônica e isso lhe traz responsabilidades acrescidas em matéria ambiental e um olhar necessariamente novo sobre a sua história. “O fato de a Amazônia ainda ser vista como um longe e também — ou principalmente — como uma periferia dá a dimensão da estupidez da cultura ocidental branca, de matriz primeiro europeia e depois norte-americana, essa estupidez que molda e dá forma às elites políticas e econômicas do mundo e também do Brasil. E, em parte, também às elites intelectuais do Brasil e do planeta. Acreditar que a Amazônia é longe e que a Amazônia é periferia, quando qualquer possibilidade de controle do aquecimento global só é possível com a floresta viva, é uma ignorância de proporções continentais. A floresta é o perto mais perto que todos nós aqui temos. E o fato de muitos de nós nos sentirmos longe quando aqui estamos só mostra o quanto o nosso olhar está contaminado, formatado e distorcido. Colonizado.”
Joaquim nasceu há 60 anos nessa floresta, nesse perto de que fala Brum, na cidade de Tefé, interior do Amazonas, nas margens do Solimões, o rio que se junta com o Negro junto a Manaus para formar o Amazonas numa zona conhecida como o Encontro dos Rios”. Quando Joaquim tinha 11 anos, o pai encontrou emprego no aeroporto de Manaus e mudou-se com a mulher e os seus filhos para a cidade. Ali, estudou química, engenharia e filosofia, mas não concluiu nenhum curso. Trabalhou num banco e viveu em vários lugares do país até voltar em 2000, altura em que fez um mestrado em história na Universidade Federal do Amazonas com uma dissertação sobre a política indigenista em Manaus. A dificuldade em encontrar material de estudo semeou a vontade de ter uma livraria especializada em cultura da Amazónia. Tornou-se um catador de colecções e de raridades sobre o tema e, em 2006, a Banca do Largo passou a ser o centro dessas trocas. São mais de 3 mil títulos entre as prateleiras visitadas por gente de todo o mundo e a casa onde vive, bem perto, que lhe serve de armazém para o acervo.
Vai contando tudo isto em frases curtas, sem esconder o orgulho, e trazendo à conversa expressões, uma ou outra informação sobre a cultura local que vão provocando a curiosidade do interlocutor. “Cê já ouviu falar do X caboquinho? Posso te apresentar um?”, e a apresentação vem de imediato. “É um pão com tucumã, queijo e banana e se quiser ainda põe um ovo frito. E aí, com um suco de cupuaçu... dá sono.” Fecha os olhos sem desmanchar o sorriso irónico. Gosta de intercalar leitura e gastronomia, convida para um café, uma água, uma tapioquinha com tucumã e queijo coalho, promete um tacacá, sopa típica da Amazónia, receita indígena feita de tucupi, jambu, goma de tapioca e camarão seco, e conta histórias da terra; em caso de necessidade sabe onde estão os pajés, curandeiros indígenas donos de poderes ocultos, acena a quem passa, todos o conhecem no centro de Manaus. Não lhe são estranhos títulos e como Poranduba amazonense, livro de 1890 de Barbosa Rodrigues, que inclui as primeiras narrativas indígenas da Amazónia, A lenda de Jurupari, de Ermanno Stradelli, Lendas em nheengatu e português, de António Brandão de Amorim, A selva, de Ferreira de Castro, com ilustrações de Portinari, Von Roraima zum Orinoco, do explorador alemão Theodor Koch-Grunberg, que inspirou Mário de Andrade no romance Macunaíma, Cobra Norato, de Raul Bopp, e Euclides da Cunha, Alberto Rangel, Inglês de Souza, Dalcídio Jurandir ou Márcio Souza, este com a sátira Galvez, imperador do Acre (1976). Sai por minutos e vem com um volume que ajuda a perceber o contexto destas literaturas que começam por diabolizar a floresta, espécie de inferno capaz de devorar tudo, como esclarece Lúcia Sá no livro Literaturas da floresta. Referindo-se aos livros do fim do século XIX e início do XX, escreve que nessas obras a Amazónia é “palco de injustiças sociais a serem denunciadas. De um lado, está a riqueza extrema dos seringalistas, alimentando excessos e depravações; do outro, a escravização dos seringueiros nordestinos, que migraram para a região na esperança de fazer fortuna, mas terminaram vítimas da exploração, das doenças, da malária.”
Os pais de Joaquim vieram desse Nordeste “atrás de trabalho”, como ele conta. Uma frase curta e olhar directo nos olhos de quem o ouve é suficiente para perceber o resto de uma história que faz parte de um imaginário colectivo amazónico. Angelo tem 22 anos e chegou a Manaus há dois meses vindo de uma aldeia pequena da Venezuela. Atrás de quê? “De trabalho”, diz em portunhol, escudando-se a mais comentários. Arranhou emprego num hotel local situado num velho casarão belle époque totalmente recuperado, onde faz um pouco de tudo. Carrega bagagens, varre o pátio, serve o pequeno-almoço, explica aos hóspedes horários e truques para dar a volta à chave em portas feitas para estarem sempre abertas.
José trabalha com Angelo. Tem 43 anos, corpo seco, sorriso tímido. “Cheguei aqui há dois anos, precisava trabalhar, sustentar a minha família”, conta. Arranjou trabalho na construção. “Custou muito, estava sozinho”. A vida amainou quando encontrou emprego no hotel. “Já tenho cá a minha família”, diz, enquanto prepara uns ovos mexidos e coa o café. Gosta de Manaus? “Sim”, só isso. Nada mais sobre política ou economia brasileira ou venezuelana. “Os meus filhos estão na escola, há comida na mesa, já não trabalho na rua”.
Joaquim não conhece Angelo nem José. São novos na cidade que está sempre a receber gente. “Por que morar em Manaus, esta cidade ilhada, talvez perdida?”, perguntava o narrador do conto A natureza ri da cultura, do livro A cidade ilhada, a um professor bretão. Era o ano de 1959, Manaus já não vivia o esplendor do ciclo da borracha que teve o seu auge entre 1880 e 1910 e a transformou num símbolo do poder da civilização face ao poder da floresta. Todavia, a expansão continuava. Manaus crescia, continuou sempre a crescer. Nas suas ruas, nos seus restaurantes há sotaques de todo o Brasil e línguas de todo o mundo, incluindo as indígenas, dali mesmo, presentes em nomes de alimentos, de hotéis, em placas de lojas, no modo de nomear casas e gente. Mas do céu percebe-se a ilha, betão na floresta a 1,5 mil quilómetros de Brasília e a 3,8 mil quilómetros de São Paulo, quatro horas de avião para chegar à capital estadual com o maior crescimento demográfico das últimas décadas. Eram pouco mais de 300 mil habitantes em 1970. Agora são 2,1 milhões na 37ª cidade mais violenta do mundo e a décima do Brasil, com um índice de criminalidade de 44 homicídios por cem mil habitantes. O recorde é Tijuana, no México, com 138 homicídios e a primeira no Brasil é Natal, com 74.
Morar no centro do mundo ou na margem desse mundo? “Por que morar em Manaus, esta cidade ilhada, talvez perdida?” Sessenta anos depois a pergunta continua válida. Para Joaquim, André, Ângelo, e também para Márcia, Renato, Marcelo, Heleninha, Maria, Otoni Mesquita, o artista e investigador que não nasceu ali, mas é dali. Ele passava pela Banca do Joaquim, cumprimentou Milton com entusiasmo e não resistiu a “dois dedos de conversa”. “Nasci na Beira do Rio, que não era cidade nenhuma, era uma fazenda, mas o meu pai morreu e a minha mãe trouxe os oito filhos, eu era o oitavo. Vivo aqui desde que tinha um ano e meio. É a cidade onde eu abri os olhos.”
A pergunta “por que morar em Manaus?” não vale, contudo, para Milton. Ele já não mora lá, na cidade das contradições em que “o luxo da sedutora metrópole nascente” vive no mesmo espaço da que “fedia e era cheia de ratos”, como ele mesmo escreveu em Cinzas do Norte.
Milton Assi Hatoum nasceu em Manaus em agosto de 1952 e parte do ambiente em que cresceu está recriado em romances como Relato de um certo Oriente (1989), Dois irmãos (2000), Cinzas do Norte (2005), Órfãos do Eldorado (2008) ou no volume de contos A cidade ilhada (2009). “A Manaus de Hatoum é caracterizada pela impermanência humana: imigrantes libaneses, chegados há pouco mais de uma geração, convivem com indígenas desterrados e outros imigrantes. Em vez de ser um espaço de retenção, um settlement, a cidade das obras de Hatoum é habitada por personagens que parecem sempre recém-chegados ou prestes a partir, insatisfeitos com uma vida urbana frequentemente descrita como culturalmente estagnada, ou por relações familiares e sociais opressivas. Grandes casarões do passado aparecem em seus romances roídos por fungos e sendo destruídos, aos poucos, por goteiras, como se a floresta estivesse sempre a ponto de reocupar a cidade”, precisa Lúcia Sá em Literaturas da floresta.
TUMULTO E LESEIRA
“Manaus cresceu assim: no tumulto de quem chega primeiro”, escreveu Milton Hatoum em Dois irmãos, e uma das primeiras impressões diante da frase é a de que essa avidez continua a ser o motor do bem e do mal de que é feita a cidade, agora imensa, que sempre se mutilou enquanto foi crescendo e se tornou na sétima cidade mais populosa do Brasil.
Mutilar e crescer são verbos usados por Hatoum no romance. Descrevem a relação conflituosa entre os homens, a geografia e o tempo — o chronos — que confluem nos bancos do Rio Negro, 2.250 quilómetros de um curso de água escura entre a bacia do Rio Orinoco, na fronteira entre a Venezuela e a Colômbia, e a do Amazonas, junto a Manaus, em plena floresta amazónica, a maior floresta tropical do mundo. Esse triângulo que une homem, espaço e tempo está representado em Relato de um certo Oriente, primeiro romance de Hatoum sobre o regresso da narradora à Manaus da sua infância. A mulher que a adoptou, Emilie, está a morrer e a casa onde cresceu é o retrato da decadência. É, no entanto, repositório de memórias, histórias de família e da cidade e dos territórios de onde vieram todos quantos nela habitaram. Uma cidade entre o Oriente e a Amazónia. “Para mim que nasci e cresci aqui, a natureza sempre foi impenetrável e hostil. Tentava compensar essa impotência diante dela contemplando-a horas a fio, esperando que o olhar decifrasse enigmas, ou que, sem transpor a muralha verde, ela se mostrasse mais indulgente, como uma miragem perpétua e inalcançável. Mais que o rio, uma impossibilidade que vinha de não sei onde detinha-me ao pensar na travessia, na outra margem. Dorner relutava em aceitar meu temor à floresta, e observava que o morador de Manaus sem vínculo com o rio e com a floresta é um hóspede de uma prisão singular: aberta, mas unicamente ela mesma. ‘Sair dessa cidade’, dizia Dorner, ‘significa sair de um espaço, mas sobretudo de um tempo. Já imaginaste o privilégio de alguém que ao deixar o porto de sua cidade pode conviver com outro tempo?’”
Ainda nesse livro há uma carta intitulada “O olhar e o tempo no Amazonas”, e o seu autor “afirmava que o gesto lento e o olhar perdido e descentrado das pessoas buscam o silêncio, e são formas de resistir ao tempo, ou melhor, de ser fora do tempo. Ele procurava contestar um senso comum bastante difundido aqui no norte: o de que as pessoas são alheias a tudo, e que já nascem lerdas e tristes e passivas; seus argumentos apoiavam-se na sua vivência intensa na região, na ‘peregrinação cósmica de Humboldt’, e também na leitura de filósofos que tateiam o que ele nomeava ‘o delicado território do alter’.”
Talvez seja a esse silêncio, o de olhar o tempo, e que é parte da vida amazónica, que ali se chama de “leseira baré” e que tantas vezes se confunde com indolência ou preguiça. Alguém acometido de leseira baré tem como sintoma principal o tal alheamento, ou distracção. Em 2016, o cantor Marcelo Nakamura dedicou-lhe uma canção e intitulou-a isso mesmo, Leseira Baré. “Vem lá do norte essa saudade que aperreia / Da caboquinha do banho na ribanceira / Do sol batendo no rio, a rosa flor que se abriu / Deitado a balançar na minha rede // De manhãzinha meu café com tucumã / E a tapioca peneirada pela cunhantã / Colhendo fruta no pé, numa leseira baré / À toa num banzeiro e cafuné // Leseira baré, leseira baré / É nós à toa num banzeiro e cafuné”
Milton Hatoum ri. “E você, já se sente acometida de uma leseira baré?”. Baré, nome de refrigerante, mas antes de tudo nome de um grupo indígena da região da Amazónia, que actualmente vive ao longo do Rio Xié e na zona mais alta do Rio Negro, noroeste amazônico. Baré também é o nome da língua que falavam, pertencente à família linguística aruak. Actualmente falam uma língua franca, o nheengatu. E se leseira é uma indolência, a indolência baré não é comparável a nenhuma outra por ser também ela amazónica.
Todos os homens e mulheres que olham o rio, que se resguardam do sol à sombra de árvores, de cartões, de guarda-sóis, sentados em bancos de jardim, nas esplanadas da Praça de S. Sebastião, que vendem de tudo em bancas de rua improvisadas parecem olhar esse tempo além do tempo que não se ajusta ao ritmo do da cidade da zona franca, um polo tecnológico e industrial criado em 1967 com uma política de benefícios fiscais destinada a incentivar o desenvolvimento da chamada Amazónia Ocidental. Existem ali cerca de 600 empresas, sobretudo na área de eletroeletrônicos, químicos e motociclísticos, que empregam 85 mil pessoas diretamente e meio milhão indiretamente, e tem uma facturação de cerca de 40 bilhões de reais. É um dos mais pujantes do Brasil, mas os seus críticos acusam a administração do parque de estagnação, falta de investimento em alta tecnologia e sofisticação, com a produção de produtos de baixa qualidade que promovem um tipo de consumo que não se coaduna com as actuais exigências de mercado, qualidade de vida ou ambiente.
São coisas que se leem, se escutam, mas que só ficam mais próximas de um entendimento, com as perplexidades inerentes a esse perambular, quando se percorrem as ruas da cidade. A da ficção e a da realidade, porque a ordem como a cidade chegou foi essa, porque primeiro houve o leitor, só depois o viajante. “No caminho do aeroporto para casa, eu observava os lugares da cidade agora irreconhecível. Quase toda a floresta em torno da área urbana havia degenerado em aglomerações de barracos ou edifícios horrorosos.” As primeiras linhas sublinhadas de Uma estrangeira da nossa rua, conto de A cidade ilhada esperam confirmação ao chegar a Manaus. Sim, há barracos, edifícios altos, prédios de escritórios, torres de habitação, muitas igrejas evangélicas, bombas de gasolina, o cheiro da terra molhada da chuva que acabou de tombar. A água quando cai do céu parece um tombo que fere o chão. Há paragem para refrescar e o encontro casual com Renato. Ele fuma um cigarro, tem curiosidade. “Vem do Sul?”, indaga. E o Sul significa São Paulo ou Rio de Janeiro. “Os do Sul quando chegam perguntam onde estão os índios. Olha para o lado que tu vê, cara. Acham que eles andam nus pela cidade e com pena na cabeça, arco e flecha! Vai tomar banho, pô. E também como se podem ver os macacos. Não entendem nada disso aqui.” Ri. “Quando essa região passa na televisão lá do Sul, só dá rio, selva, animais. É uma visão bem diferente. E num dia assim eles perguntam: hoje é o dia mais quente de vocês, né? Eles acham sempre que não pode ser mais quente.”
Está fresco. 26 graus, mas a sensação é de muito mais. É início de inverno, é Manaus, época de chuvas, muita humidade, céu de chumbo. Junto ao Teatro Amazonas há pouca gente na rua. É hora das escolas funcionarem, de trabalho na indústria. Daí a pouco já se passeia na calçada da Praça de S. Sebastião, 3,5 mil metros quadrados de ondas de granito preto e branco, de tradição portuguesa, inspiradas no cenário do encontro dos Rios Negro e Solimões, que os historiadores apontam como mais velho do que o ondular do calçadão de Copacabana. O de Manaus data de 1901, o de Copacabana, de 1922. Visto de uma ponta da praça, dá a impressão de um movimento, com os passantes como que a flutuar num horizonte de casas coloridas.
É por aí que o passeio começa, paralelo ao Teatro, indo por ruas estreitas na direção do rio, um mapa literário definido pelo escritor na folha em branco, começo de deambulação onde se escuta uma vez mais a voz do narrador de Dois irmãos. “O aguaceiro era tão intenso que a cidade fechou as suas portas e janelas bem antes do anoitecer. Lembro-me de que estava ansioso naquela tarde de meio-céu. Eu acabara de dar a minha primeira aula no liceu onde havia estudado e vim a pé para cá, sob a chuva, observando as valetas que dragavam o lixo, os leprosos amontoados, encolhidos debaixo dos oitizeiros. Olhava com assombro e tristeza a cidade que se mutilava e crescia ao mesmo tempo, afastada do porto e do rio, irreconciliável com o seu passado.”
ASSOMBRO
Numa manhã de sábado do final de 2019, a visão junto ao rio não é muito diferente. Dejectos nas margens, bandos de urubus na maré vazia a voar rente aos barcos e aos carros que esperam no areal, gente a carregar sacos, mochilas, caixotes num sobe e desce permanente pela escadaria do porto; há manchas de plásticos a boiar na água escura; ouvem-se pregões a anunciar a venda de todo o tipo de cangalhada; uma mãe adolescente amamenta o filho bebé à sombra de um chapéu de sol rasgado e já sem cor, uma mulher de pele tisnada pelo sol segura uma abóbora enquanto o cigarro se consome na sua boca. Parece que está ali desde sempre, camisola de alças verde e amarela com a palavra Brasil a desvanecer de tanto uso, tanta lavagem. É uma estátua ao calor, sentada, entre caixotes velhos. Que fará ali? E depois a música, a impedir qualquer conversa, o barulho de motorizadas, as buzinas dos barcos. Cheira a maconha e a urina, mas também a uma espécie de maresia que parece fétida debaixo de um céu mais negro do que o rio a anunciar mais chuva. Podia ser uma ideia de inferno. Não é. Que encanto é aquele que se apreende na linha do horizonte, água sem fim, a dizer a “Amazónia é aqui” e parece transformar tudo num cenário? É um horizonte de rio imenso diferente do contorno entre céu e mar e que por breves momentos é recortado pela figura de um menino que passa a correr, sorrindo com um brinquedo na mão. Há futuro? Para já é assombro, como disse o narrador de Dois irmãos. “Assombro”, “pasmo”, todos os sinónimos que sirvam para descrever uma emoção tão contraditória quanto as que nascem da leitura da Manaus recriada pelo seu maior escritor.
Ele fala de Manaus num Brasil difícil. A Manaus que uma personagem de Relato de um certo Oriente considerava “uma perversão urbana”, acrescentando que a cidade e a floresta são dois cenários, duas mentiras separadas pelo rio.” Ela existe num país que nos livros de Hatoum assume muitas formas, algumas persistindo. É o da ditadura dos anos 1960, o das divisões sociais, da tensão entre poderosos e oprimidos, dos subterrâneos da opulência, dos silenciados versus os das parangonas políticas, dos que se submetem, dos que não se acomodam, dos inquietos; os desajustados domésticos e os das ruas. Isto em todos os momentos da história de uma civilização marcada pelas migrações, pelo autoritarismo, a colonização de outras civilizações e/ou de outros valores em que o outro, o diferente, é votado a um abandono que lhe compromete qualquer ideia de futuro. Ironia não fosse o futuro o slogan de um país que também é o da alegria. Manaus é a cidade do Teatro Amazonas, edifício mais faustoso da cidade, uma casa de ópera coração da floresta, construído à imagem de um grande teatro de ópera europeu em estilo renascentista, espécie de catedral burguesa símbolo da Manaus moderna, inaugurada em 1896, que coexiste com a dos casebres sem esgotos nem água canalizada, a das ruas estreitas com edifícios decadentes atravessadas por ratazanas à luz do dia.
Foi esta Manaus dos contrastes e de uma modorra que se seguiu ao apogeu que assistiu de bem longe à inauguração de Brasília em 1960. Halim e Zana, pai e mãe dos gémeos em Dois irmãos, foram as personagens escolhidas por Hatoum para falar da antítese entre conformismo e ambição também aplicados a um país, a duas cidades. “Halim nunca quis ter mais do que o necessário para comer, e comer bem. Não se azucrinava com as goteiras nem com os morcegos que, aninhados no forro, sob as telhas quebradas, faziam voos rasantes nas muitas noites sem luz. Noites de blecaute no norte, enquanto a nova capital do país estava sendo inaugurada. A euforia, que vinha de um Brasil tão distante, chegava a Manaus como um sopro amornado. E o futuro, ou a ideia de um futuro promissor, dissolvia-se no mormaço amazónico. Estávamos longe da era industrial e mais longe ainda do nosso passado grandioso. Zana, que na sua juventude aproveitara os resquícios desse passado, agora se irritava com a geladeira a querosene, com o fogareiro, com o jipe mais velho de Manaus, que circulava aos sacolejos e fumegava.”
Os ecos da literatura acompanham os passos até aos arredores do antigo meretrício, ainda conhecido como a Praça das Primas, uma zona velha, casario baixo, fachadas coloridas, um antigo cabaré, o cabaré Chinelo que aparece em Cinzas do Norte, agora abandonado, onde conta a lenda que os barões da borracha fumavam com o tabaco enrolado em notas de banco. Resta uma parede erguida, janelas a dar para o céu, musgo à volta de tudo. No ar, os cabos eléctricos e de telefone parecem emaranhados de teias. No chão, Joaquim vai na frente, qual guia.
Entramos na Rua Frei José dos Inocentes. Um homem passa de bicicleta, outro empurra um carrinho de mão cheio de entulho. E mais ninguém, mais nada a mexer. O sol está quase a pique, faltam sombras. Junto a uma oficina de automóveis uma mulher carrega um saco do mercado. Vai lenta, pelo sol. “Essas são ruas que são as mais antigas de Manaus, do começo do século XIX”, explica Milton Hatoum, o escritor que estudou arquitectura e urbanismo e trocou depois pela literatura. Estudou em São Paulo, em Brasília, viveu em Paris, em Barcelona, voltou a Manaus e depois saiu para ficar em São Paulo. O casario segue baixo até ao Igarapé de São Raimundo, à margem do qual estava a antiga fábrica de cerveja alemã. É difícil imaginar que ali houve um rio. “Aqui era um igarapé e transformou num esgoto”, precisa Milton, debaixo de um telheiro, numa rua sem saída. Parece o fim de tudo. É mato, construções de palafitas em ruína. Há lixo, carcaças de barcos, e uma antiga ilha ao fundo, São Vicente, que já não é ilha. Agora é da Marinha.
Digita-se a palavra “igarapé” em qualquer motor de busca na internet e aparecem notícias de poluição, morte, cheias. A sua função é a de ligar fragmentos de floresta, existem ao longo de toda a bacia do Amazonas, mas actualmente são sobretudo canais de esgoto. Dados da Secretaria Municipal de Limpeza Urbana revelaram que entre abril e junho de 2019 foram retiradas por dia, 25 mil toneladas de lixo dos igarapés de Manaus. Joaquim tem estado calado. Encosta-se junto a uma imagem da Virgem Maria em azulejo, gasta pelo tempo. Fala: “Muita coisa mudou, até a fé”. Refere o boom da igreja evangélica em Manaus que terá começado na década de 1980. “Antes disso era tudo crente”, continua, e salienta que o termo crente não tinha necessariamente relação com a fé católica. “Era outra coisa. Aí, com essas religiões pentecostais virou uma praga. A Constituição ajudou, isenta-as de imposto e montar uma igreja tornou-se uma mina, é um grande negócio.”
Não há sinos em pano de fundo, só o barulho de uma betoneira ao longe. Ocorrem passagens de Cinzas do Norte e de Dois irmãos sublinhando sempre vincada a divisão entre ricos e pobres. Os das casas grandes e os dos subterrâneos. “Aos domingos, quando Zana me pedia para comprar miúdos de boi no porto da Catraia, eu folgava um pouco, passeava ao léu pela cidade, atravessava as pontes metálicas, perambulava nas áreas margeadas por igarapés, os bairros que se expandiam àquela época, cercando o centro de Manaus. Via um outro mundo naqueles recantos, a cidade que não vemos, ou não queremos ver. Um mundo escondido, ocultado, cheio de seres que improvisavam tudo para sobreviver, alguns vegetando, feito a cachorrada esquálida que rondava os pilares das palafitas. Via mulheres cujos rostos e gestos lembravam os da minha mãe, via crianças que um dia seriam levadas para o orfanato que Domingas odiava. Depois caminhava pelas praças do centro, ia passear pelos becos e ruelas do bairro da Aparecida e apreciar a travessia das canoas pela manhã. Vendia-se tudo à beira do Igarapé de São Raimundo: frutas, peixes, maxixe, quiabo, brinquedos de latão. O edifício antigo da Cervejaria Alemã cintilava na Colina, lá no outro lado do igarapé. Imenso, todo branco, atraía o meu olhar e parecia achatar os casebres que o cercavam.”
Voltamos a subir a ladeira. Numa janela anuncia-se Coca-Cola geladinha. Viramos à esquerda. Um beco de fachadas amarelas e azuis. Há uma baliza de brincar abandonada, uma poltrona de ferro partida, brinquedos de criança semi-destruídos e, por fim, uma rua cheia de sombra, copas de árvores, uma correnteza de casas recuperadas, o chilrear de pássaros, a descoberta de um novo centro cultural com o nome de Óscar Ramos, um artista de Manaus, pintor, designer, cenografista. Morreu em junho de 2019 e no final desse ano a autarquia dedicou-lhe uma casa, os números 69 e 77 da Rua Bernardo Ramos, onde está exposto o seu espólio. Milton descobre ali o reduto do amigo. “Era uma figura”, diz enquanto olha os cartazes de filmes que ele desenhou, capas de discos de Caetano Veloso, Gal Costa — Gal fatal —, Maria Bethânia. Era do Tropicalismo. “Causou escândalo em Manaus. Era homossexual e ele me contou que muito jovem uma vez saiu de camiseta vermelha em Manaus. Comum sotaque amazonense me disse: ‘Mano, foi um escândalo!’”. Mano é uma expressão muito dali. “Não é o mano paulista. É o mano carinhoso. Maninho, maninha.” À saída, alguém o reconhece. Pedem-lhe para tirar uma fotografia. Acede.
A rua tem o som das cigarras, o coaxar de rãs, na esquina a casa mais antiga de Manaus é um café. Paragem para uma água entre muitos objetos bizarros, entre eles um Homem-Aranha pendurado junto à janela. O barulho do aparelho de ar-condicionado abafa as conversas. O calor por vezes soa assim.
Politicamente, como é Manaus? Conservadora? “Ah, acho que é muito alienada. O populismo aqui é muito forte desde sempre. Esses políticos alternaram no poder e quase todos são populistas. Começou com Gilberto Mestrinho nos anos 1950 e seguiu para uma a alternância de políticos corruptos, e uma miséria enorme. O PT, por exemplo, nunca ganhou aqui. Até no Acre o PT chegou a ganhar. Aqui, nunca, nem o PT nem a esquerda”, salienta. A autarquia é do PSDB, o partido fundado por Fernando Henrique Cardoso e agora liderado por Bruno Araújo. A palavra “alienada” subsiste. Será obediente ao poder? Ele interfere com a vida normal, já se sabe. Por exemplo, o Código de Posturas do município de Manaus, de 1893. Estabeleceu que “as ruas de novo abertas e as que ainda não estão edificadas terão a largura de 30 metros e serão em linha reta quanto possível”. Foi a origem das avenidas largas, da drenagem dos igarapés que foram desaparecendo do centro da cidade. Caso do Igarapé do Espírito Santo, onde foi construída a Avenida Eduardo Ribeiro, com o Teatro Amazonas, o Palácio da Justiça, e muitos cafés e hotéis. Ou do Igarapé do Aterro, que atravessava o centro da cidade e é a actual Avenida Getúlio Vargas. O aterro demorou décadas ao longo das quais muitas campanhas contra a malária e a febre amarela. Transformaram-se em pântanos artificiais, abaixo do nível do Rio Negro. Sempre que o rio subia, as ruas alagavam com frequência e os mosquitos picavam. Um problema também de saúde pública. Tudo parece persistir, miséria e riqueza, insalubridade e desenvolvimento tecnológico e mais subdesenvolvimento nas periferias. E “30% dos edifícios de Manaus não têm acesso à água e 60% não têm esgoto”, diz Hatoum enquanto se chega à Igreja Matriz, a mais um camelódromo e mais obras.
“Isso é muita andança”, diz sobre o trajecto já percorrido, depois de passar o meretrício, a Igreja Matriz, mais um camelódromo. “Que calor! E temos sorte, está nublado”. Vinícius de Moraes tomou uma cervejinha por ali. A música é estridente. Alguém grita: “suco de manga, dois reais, água geladinha”, atenuantes do clima esdrúxulo, e as badaladas da Igreja dos Remédios onde católicos e muçulmanos casavam, muitas vezes uns com os outros. O avô de Milton Hatoum casou ali, os pais também. Um grupo de homens joga cartas em tronco nu, cheira a comida. Faz-se um desvio para o mercado. Bacalhau de manta, camarão de vários calibres, castanha. Milton compra para a tia fazer bombons com chocolate. “É a minha única tia viva, a tia Noha.” Há queijos redondos pendurados a curar, sacos de farinha de mandioca de vários tipos de moagem. “Na minha mesa tem de haver sempre farinha”, conta. E tudo deságua no porto. “Esse é o Rio Negro. Esse, para mim, é o rio mais bonito.” Para defronte da água. O cenário repete-se, o assombro também, a cada dia. Troveja outra vez ao chegar perto do Igarapé dos Educandos, o maior, “um rio mesmo, com a falta de saneamento, virou um esgoto. Na minha juventude era limpo. Há um descaso total, essa miséria toda. O cheiro, o calor é de enlouquecer quando se anda por esse igarapé”.
Deixamos a margem, as ruas são um bazar de alimentos e quinquilharia. Um homem passa, desvia o olhar de Milton Hatoum e grita: “Salve Bolsonaro!”. O escritor finge que não ouve. “É provocação? Nunca aceitar provocação”, uma ratazana atravessa-se no caminho e um cartaz diz: “contra a intolerância, paixão”. Há turistas, lojas de chineses na subida para os Remédios, a praça dos migrantes, perto da Rua dos Barés, onde Halim tinha o armazém. Ainda há casas com nomes árabes, “uma mistura de gente, de origens, trajes e aparências“, lê-se em Dois irmãos. Nem tanto, diria sobre o que está agora à vista. “Quanto ao Brasil eu sou um pessimista radical. Não deu certo, a nossa elite. Daqui a 100 anos talvez, se houver uma revolução burguesa.” A deriva não é só do olhar, dos passos, parece ser também do destino de uma nação quando se lê e se ouve Milton Hatoum. “Ah, a zona franca, se disser mal dela por aqui é linchado, mas ela sublinhou misérias e miséria é diferente de pobreza. Fica encristada, tantas vezes invisível aos outros e se você não entende o sofrimento do outro, você recua na sua humanidade.”
Chegamos ao coreto junto à Igreja de Nossa Senhora da Conceição. Ali será filmada parte da adaptação de Relato de um certo Oriente. A cada passo, Manaus materializa-se como um lugar de enredos. “Lembra do galinheiro dos vândalos, de Dois irmãos? É aquele prédio azul. E esse é o Colégio Estadual do Amazonas onde eu estudei quatro anos e li os livros fundamentais”, conta diante do grande edifício de pedra que domina a praça. Vidas secas e Infância, de Graciliano Ramos, Capitães da areia, de Jorge Amado, Continente, de Érico Veríssimo, A luta, último capítulo d’Os sertões, de Euclides da Cunha. “Esse foi um castigo que levamos do professor. Jogaram uma bomba caseira na escada e o professor Barrela, um advogado, disse que se não delatássemos teríamos de ler Os sertões”. Dá uma gargalhada. “Esses professores liam.” Para diante do edifício. “Vê-se que a educação pública estava no projecto da elite, pelo menos.”
Os pais não eram leitores. “A minha mãe sabia que eu gostava de ler e me deu as obras completas do Machado [de Assis], uma edição de 1957. Foi um grande presente, e eu comecei a ler os contos. Me salvaram, porque o romance para um jovem é muito complexo. Dar Memórias póstumas de Brás Cubas para um aluno de 15 anos! Ele vai odiar o Machado.” Mais passos, a subida continua até ao ponto de partida. “Aqui mora a professora que me alfabetizou, tem 102 anos. Dona Maria Luísa de Freitas Pinto.” É uma casa branca, de um piso, numa rua de outras casas parecidas . “Ela já morreu, Joaquim?”; “Não.”
De repente, uma brisa. “Ah, que ventinho bom.” “É aqui que o vento faz a curva”, diz Joaquim, na esquina da Saldanha Marinho com a Costa Azevedo. Joaquim assobia enquanto sobe a ladeira. Estamos noutro ritmo de cidade, outra vez mais lento, mais silencioso. “Onde a gente pode comer?” Uma mulher aborda-o no passeio. “É o escritor? É o Milton? Posso tirar uma foto?”; “Claro, mas eu tenho uma taxa de 10 reais”, brinca. “Tem troco?”, pergunta ela e tira a foto. “É, eu tenho leitores aqui. Não tenho nenhum ressentimento com essas pessoas. Gosto.”
O restaurante está cheio, há uma banda a tocar bossa-nova no rés-do-chão. Escolhe a varanda no primeiro andar. Dá para o Teatro Amazonas, para a Banca do Joaquim. “As pessoas pensam que esta destruição é recente, mas começou faz tempo, nos anos 1970”. No final de 2019 escreveu n’O Estado de S. Paulo: “Desde a redemocratização do país, nenhum governo refletiu seriamente sobre a diversidade social, econômica, geográfica, cultural e antropológica da Amazônia”, mas dizia que nenhum como o actual foi tão conivente com essa destruição. “Se argumentos científicos não convencem os que professam uma fé fervorosa na irracionalidade, é o caso de perguntar: quais ambições estão ocultas nessa sanha devastadora da Amazônia? Ou: o que há por trás de tantos atos irracionais? Sem dúvida, um alucinado projeto de poder. Mas esse projeto tem aliados poderosos, dentro e fora do Congresso. O empenho do governo federal em perdoar multas ambientais e fragilizar a fiscalização de atividades predadoras é uma carta branca aos grandes grileiros e incendiários. Não se trata de política liberal. O nome disso é barbárie mesmo.”
Pede tambaqui grelhado, farofa na manteiga, baião de dois, uma pimenta, caldo de peixe, e pastel, também de tambaqui. Fala da tradição do bacalhau em Manaus, do cozido e da sopa de couve feita por uma vizinha dos pais. Isso está no romance A noite da espera. Volta à tia. “Ela teve uma filha surda-muda. Eu brincava com ela em casa do meu avô. Num domingo ela saiu correndo, foi atropelada por um ónibus e morreu. A imagem mais forte da minha infância era o choro das pessoas.” Isso aparece em Relato de um certo Oriente.
A trovoada recomeça com a força da trovoada do dia anterior e do dia antes desse. Reabrimos o livro: “A comida foi servida. Nunca comemos tão bem, peixes os mais variados, de sabor incomum, cobriam a mesa; costela de tambaqui na brasa, tucunaré frito, pescada amarela recheada de farofa. O pacu, o matrinxã, o curimã, as postas volumosas e tenras do surubim. Até caldeirada de piranhas, a caju avermelhada e a preta, com molho de pimenta, fumegava sobre a mesa. E também pirão e sopa com sobras de peixe, farinha feita das espinhas e cabeças, bolinhos de pirarucu com salsa e cebola”.
Talvez fosse de estranhar. É que por essa altura, os olhos de Halim já andavam menos acesos, ainda não baços. “Apenas cansados do presente, sem acenar para o futuro, qualquer futuro.” Será esse o olhar presente do Brasil?