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Esta é a quinta reportagem da série Viagem ao país do futuro, na qual Isabel Lucas pensa o Brasil a partir da literatura e da realidade que a ficção representa. O trabalho é publicado em parceria com o jornal português Público. Exceto em situações que criem ambiguidade em relação ao português brasileiro, a grafia mantém o original da autora, escrito de acordo com o português de Portugal.

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Como é o Brasil visto do mundo subterrâneo, interior, de Raduan Nassar? Questiona o corpo como alvo e arma num país que o ex-escritor considera marcado pelo autoritarismo; vê a paixão como um dos grandes patrimónios de uma espécie condenada, a humana. Apaixonou-se várias vezes, a mais forte foi pela literatura. Abandonou-a há 30 anos, após três livros e ser considerado um dos grandes autores de língua portuguesa. Tornou-se agricultor, declarou que não voltaria a falar de literatura e só quebrou o silêncio pela política. Não ganhou. Aos 83 anos, num dia de setembro, abriu-nos a porta, pôs a mesa e deixou a conversa andar.


Como será Pindorama, a terra das palmeiras? “Era cortada por um rio, o Rio São Domingos, e nela havia duas colinas. Uma era ligada a um município e outra a outro município, até que houve uma unificação. Eu estava do lado que se chamava Areia Branca; o outro lado, o mais rico, era pejorativamente chamado de ‘asilo’.” A voz soa à de um narrador a distância de um tempo e de um lugar a que não voltou nos últimos 30 anos. Pindorama, palavra que no idioma tupi-guarani significa “terra das palmeiras”, é o território das primeiras memórias de Raduan Nassar, o escritor que “já não é”, o que se esquiva a falar de si e do que escreveu, que rejeita entrevistas em que o tema seja a literatura, mas que ainda assim cede, escolhendo palavras que aos poucos iluminam uma escuridão densa — a do seu projecto literário ou os motivos que o levaram a abandonar a escrita — e deixam adivinhar contornos, como velas numa assoalhada à noite.

A voz prossegue, suave, melódica, como a de um contador de histórias, sobre Pindorama. “Estávamos a nove quilómetros de Catanduva, onde acabei a fazer o meu curso secundário. Catanduva era bem maior. Às vezes a gente ficava esperando na saída e vinham aqueles camiões com toros, toros imensos, e a gente pegava uma carona. O que cortavam de árvores! Outras vezes fazíamos o caminho a pé. E havia muitos imigrantes. Espanhóis, italianos, árabes, portugueses. Os portugueses tinham chácaras; numa delas você encontrava mangas bourbon, para mim a melhor fruta do mundo. E se pagasse um tanto, podia chupar jabuticaba à vontade. Um desses portugueses era o seu Silva, outro o seu Tristão, e outro morava numa casa que tinha num pequeno hall um Lello Universal. Era um livrão! Depois a gente descia e tinha lá uns pés de pera, e eu me lembro que fui pegar umas peras do chão e o meu irmão, que era muito certinho, me chamou a atenção para eu não pegar. Enquanto eu apanhava as peras quem estava em cima de uma pereira? O português.”

Na memória de Raduan Nassar, o português “não deu bronca”. Mas isso só se sabe perguntando, porque Nassar gosta de deixar quem o ouve, como quem o lê, em suspenso. Não há mais detalhes sobre esse episódio longínquo nem maior contextualização. Só uma gargalhada ao recordar a terra onde nasceu em 1935, sétimo de dez filhos de um casal de imigrantes libaneses, João Nassar e Chafika Cassis, criado entre o fervor do catolicismo, a tradição do Alcorão, uma paisagem de chácaras, verde e água a compor o universo telúrico que o formou e definiu a sua literatura, obra breve, três títulos apenas: Lavoura arcaica, romance, Um copo de cólera, novela, e Menina a caminho, volume de contos. Neles, Pindorama não é nomeada. São narrativas sem referências geográficas e escassas alusões temporais, mas marcadas por esse lugar primeiro, a paisagem inicial, uma pequena cidade, actualmente com 15 mil habitantes, no estado de São Paulo, 380 quilómetros a noroeste da grande metrópole brasileira.

É uma memória feita de disputas de crianças, bailaricos, mulheres à sombra nas janelas de casa, outras que espreitam a rua por detrás de cortinas, missas de Páscoa, lutos, galinhas a bicar sementes, homens atrás do balcão de um armazém, vultos, malícia mais ou menos dissimulada, cruzes ao alto como a abençoar os campos, um ou outro homem a falar sozinho, camiões desengonçados, conversas de barbearia e de café, intriga, homens que batem nas mulheres, homens que “ofendem” as mulheres, retratos de Getúlio Vargas pendurados nas paredes de estabelecimentos ou de salas de jantar, onde o antigo presidente era reverenciado como salvador ou pai, ou temido e odiado como um tirano.

A Pindorama da infância de Raduan Nassar já não existe. Há uma cidade maior com traços de urbanidade. Os dias da Paixão de Cristo já não são vividos com o mesmo fervor. “Pindorama era um imenso teatro na Sexta-Feira da Paixão. Apagavam-se as luzes da cidade e o cortejo silencioso seguia à luz da vela pelas ruas forradas de folhas secas marcando a pisada vagarosa dos que conduziam o Cristo morto. As congregações vestidas de preto engrolavam a ladainha. E em cada altar por onde passava a procissão a Verônica desenrolava aos poucos o sudário, enquanto ecoava em latim o seu canto lamentoso: a voz da carpideira estremecia a noite”, lê-se no segundo volume dos Cadernos de literatura brasileira — publicação do Instituto Moreira Salles — dedicados a Raduan Nassar, numa nota escrita pelo próprio Nassar a um ensaio da autoria da crítica Leyla Perrone-Moisés. A descrição remete para um episódio de Lavoura arcaica, romance que se passa dentro de um quarto e numa fazenda do interior, um mundo privado, para sublinhar o conflito entre razão e paixão que envolve uma família, núcleo da vida social e religiosa. Pindorama está lá, mas a melhor maneira de perceber o que pode ter sido é seguir o percurso da protagonista do conto Menina a caminho. Através dos passos dela, do que vê no seu caminho de iniciação, pressentem-se também como iniciais para o autor os episódios a que ela assiste, os de um quotidiano em que o místico está a par do comezinho mais palpável.

Por exemplo, quando ela entra no armazém de “seu Américo”: “A menina avança alguns passos entre sacos de cereais expostos sobre caixotes de querosene e não vê ninguém. Arregala os olhos quando descobre a barrica de manjubas secas, sente a boca vazia e perdida ao vislumbrar um compartimento cheinho de torrões de açúcar redondo. Afunda logo a mão na barrica em busca de manjubas, come muitas, sofregamente. Lambe o sal que lhe pica a pele ao redor da boca e estala a língua. Pega depois um torrão de açúcar redondo, em seguida outro, mais outro, os mais graúdos que repousam na superfície. A barriga estufa, a voracidade do começo desaparece e a menina, de espaço a espaço, sem vontade, continua lambendo o torrão enorme que tem na mão, enquanto passeia livre pelo armazém sem ninguém”.

Menina a caminho foi a primeira ficção que Raduan Nassar escreveu. Foi publicada em 1997 com outros contos, muito depois de Lavoura arcaica, em 1975, e de Um copo de cólera, em 1978. Anos depois, numa entrevista para o número dois dos Cadernos de literatura, Nassar revelou a origem desse conto. Foi uma das raras vezes em que falou tão claramente da génese de um livro. Para isso, o jornalista António Fernando De Franceschi encontrou-se dez vezes com ele, e das perguntas — a algumas escapando com tangentes — saíram preciosidades. “Eu tinha sete ou oito anos e estava no alto de um pé de laranja, no fundo do nosso quintal, quando ouvi gritos de uma mulher que estava sendo surrada no quintal do vizinho, talvez junto ao fundo da casa dela. Eu ouvia o estalo das chicotadas, mas não conseguia ver nada devido aos pés de mamona que se interpunham, do lado do vizinho. O fato de eu não conseguir ver a cena, nem identificar as pessoas, deve ter me traumatizado mais fundo. Eram só gritos e chicotadas. Eu não sabia naquela idade o que era angústia, mas foi, com certeza, angústia o que senti, pois desci da laranjeira, entrei em casa e me joguei na cama a tarde inteira.”

Estará aí a semente de uma escrita marcada por silhuetas, sombras, em que cada palavra é medida, em que o corpo é alvo e arma, libertação e prisão, em que o mal não pode ser expiado e mexe com emoções e actos essenciais? “Sacanagem, inveja, generosidade, amor, violência, ódio, sensualidade, interesse, mesquinhez, bondade, egoísmo, fé, angústia, medo, ambição, ciúme, prepotência, humilhação, insegurança, mentira e por aí afora, mas sobretudo passionalidade, além do eterno espanto com a existência”, enumera Raduan Nassar nessa entrevista o que designa como “património da espécie”. Foi essa a matéria literária de uma escrita que, por isso, vive em qualquer tempo, qualquer geografia, é universal. Como ele também disse, uma escrita que segue “caminho de todo o mundo”, seja o caminho de um santo ou de um “capeta”.

Com Raduan Nassar estamos sempre diante de um labirinto, segundo definição do escritor Estevão Azevedo em O corpo erótico das palavras: um estudo sobre Raduan Nassar. “O facto de a poética de Raduan Nassar esforçar-se em ocultar o referente textual e fazer o leitor perder-se em seu labirinto textual de pistas falsas ou bem guardadas (...) não significa, é claro, que sua obra esteja desconectada de seu tempo. Indica apenas a opção por um caminho mais subterrâneo, sinuoso e indireto entre a realidade e a ficção. Um caminho que leva em conta o fato de todas as questões humanas trazerem, sob a máscara da linguagem e o disfarce do cinismo, um componente fundamental de luta pelo poder e de controle de corpos.”

Depois de ler Nassar, de ler também o que sobre ele se tem escrito, como olhar o homem que puxa uma carroça com os braços numa rua movimentada de São Paulo? O que primeiro chama a atenção é a sombra que projecta no asfalto. Recolhe lixo reciclável das ruas da cidade. A carroça vai cheia de papelão. O homem é um dos dois mil e cem catadores de lixo de São Paulo, número crescente que se explica sobretudo pelo aumento do desemprego, situado nos 16% na grande cidade. Esse homem a puxar a carroça faz parte dos números. Chama-se Leandro, tem 56 anos, vive no Capão Redondo, bairro no sudoeste da cidade, a 16 quilómetros do centro. “Ando nessa vida faz oito meses, antes era mecânico de automóveis. Não tinha mais trabalho, vim pro lixo.” Conta que tem meses em que leva mil reais para casa, outros pouco mais de 500 ao fim do mês. É pouco.” O rendimento médio é de R$ 2200. No Capão é de R$ 1450. Em Pinheiros, onde puxa a carroça, é de sete mil reais.

“São Paulo é uma das cidades mais capitalistas do mundo. Aqui só se pensa em dinheiro”, diz Raduan, sem saber que história conta o corpo de Leandro, ele que escreveu sobre os corpos de André e de Ana em Lavoura arcaica, o romance de inspiração bíblica, da literatura da Antiguidade Clássica, mas sobretudo do Olhão, como Nassar chama ao modo de olhar o mundo, olho com letra grande em direcção ao Livrão, também a maiúscula, agora para designar a vida fora dos livros. Leandro não vem nos livros, está no Livrão. E o corpo de Leandro é um corpo político, subjugado, com um lugar na sociedade que não consegue desafiar, como André desafiou o seu à mesa do pai, na casa da família, no mundo.

E o corpo de Raduan? Na fala, como no texto, Raduan Nassar deixa apenas um vislumbre de si. Seja no presente da conversa, seja no passado literário em que produziu uma obra marcada pelo questionamento do corpo diante da autoridade: paternal, matrimonial, de Estado. O corpo que apenas se cumpre na sua liberdade quando transgride, se deixa corromper, desafia a norma. Moral, religiosa, social, cultural. Pode ser a menina que sacia a fome e a transforma em gula às escondidas, num armazém; o jovem que, em nome da paixão, comete incesto, o mais atroz dos pecados familiares, em Lavoura arcaica, romance sempre apresentado como a obra-prima de Nassar, o vencedor do Prémio Camões em 2016 que não escreve desde 1984 e nunca mais quis falar mais do assunto. De outras coisas, talvez.


À REFEIÇÃO

O ex-escritor preparou um lanche. Torta recheada com doce de goiaba, sanduíches de queijo e fiambre, sumo de laranjas acabadas de espremer, café bem forte. Diante da mesa posta na sala, o bule, as xícaras, os pratos, os talheres no tabuleiro, um conjunto de lápis, ocorre uma das imagens inaugurais — e uma das mais simbólicas — de Lavoura arcaica, o filme de 2001 de Luiz Fernando Carvalho que adapta o romance de Raduan. “Eram esses os nossos lugares à mesa na hora das refeições, ou na hora dos sermões: o pai à cabeceira; à sua direita, por ordem de idade, vinha primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika e Huda; à sua esquerda, vinha a mãe, em seguida eu, Ana e Lula, o caçula. O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as raízes; já o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz, como se a mãe, que era por onde começava o segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância mórbida, um enxerto junto ao tronco talvez funesto, pela carga de afeto; podia-se quem sabe dizer que a distribuição dos lugares na mesa (eram caprichos do tempo) definia as duas linhas da família.”

No filme, ao contrário do romance, a cena vem perto do fim. É contada por André, na primeira pessoa. E se no filme ela é prenúncio da tragédia familiar, no livro simboliza o regresso ao seu lugar do filho pródigo, o tresmalhado, “o desgarrado” que volta, na que é uma releitura bíblica feita por Raduan Nassar. O livro começa com Pedro a tentar resgatar André para a família. André, o irmão em sofrimento que fugiu, Pedro ainda não sabe, da paixão por Ana, a irmã mais nova. Os dois conversam, André conta a Pedro o seu “pecado”; assistimos ao horror de Pedro, ao desespero e ao delírio de André, “o filho nocturno” — “Tinha contundência o meu silêncio! Tinha textura a minha raiva!” —, à dissolução de uma família que cresceu seguindo os valores morais rígidos do pai. “Meu pai sempre dizia que o sofrimento melhora o homem, desenvolvendo seu espírito e aprimorando sua sensibilidade”, lembrava André. “Era preciso conhecer o corpo da família inteira”, continuava. “Era o pai que dizia sempre é preciso começar pela verdade e terminar do mesmo modo.” Conhecer os corpos que sofriam para lavrar a terra, amassar o pão, estender a roupa branca ao sol, pastar os animais, pôr o pão na mesa. Tudo seria sacrificial.

A mesa de Raduan está posta. Ele tem um sorriso quase permanente nos olhos. Quando repousa o queixo nas mãos unidas, dedos entrelaçados, ou olha pela janela do apartamento em São Paulo onde vive desde 2003, dividindo-se entre a morada paulistana e a da fazenda. Na sala, entra uma luz duplamente filtrada. Pelas nuvens de uma tarde chuvosa de inverno e pelas cortinas brancas. Não se vê a rua, só algumas sombras. Há prédios ao lado, moradias baixas em frente, uma praça cheia de árvores logo abaixo, orquídeas a sair de troncos grossos nas palmeiras dos jardins vizinhos, gritos de crianças à saída de uma escola. É tarde de sexta-feira em Vila Madalena, o bairro boémio de São Paulo que guarda um dos seus habitantes mais privados e silenciosos.

As traseiras do quinto andar onde vive dão para uma das ruas mais movimentadas da noite de São Paulo. Está quieta, vazia ainda. Os empregados à porta dos bares e dos restaurantes, as cadeiras dispostas em redor de mesas, as esplanadas recolhidas por causa da chuva miudinha que vai caindo. É a calma que anuncia a multidão que há de chegar. O homem que gosta do campo, o recluso, o da escrita subterrânea, vive ao lado da boémia. “Agora parece que estão controlando, mas era um barulho terrível. Eu fico muito por casa, tenho alguma dificuldade de locomoção. Estou cheio de defeitos, viu?” E vem o sorriso, o olhar fixo sobre quem tem à sua frente. Atrás, há uma fotografia a preto e branco. Nela vê-se um homem sentado e, junto a ele, uma mulher. “São meus pais, que estão aqui. Ele estava com câncer e está meio inchado. Vieram do Líbano. Passaram momentos muito difíceis durante a ocupação otomana no Líbano. Por isso saíram. O meu pai vivia fugido. Contava episódios terríveis, comer casca de batata e coisas do tipo, até que conseguiram sair do Líbano. Mas meu pai era de origem síria... Aqui entre nós, essa espécie humana não tem conserto. Destruíram o Iraque, destruíram a Líbia, destruíram a Síria, vão destruindo um país atrás do outro.”

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O pai abriu uma loja de tecidos em Pindorama. Raduan conta que em casa se falava português e os pais falavam árabe entre si. “Tentei aprender árabe quando vim para São Paulo, mas era preciso ir para um bairro distante e desisti porque era muito complicado. Mas gostaria muito saber.” A família mudou-se quando os filhos começaram a ir para a universidade. Foram para muito perto de Vila Madalena, para Pinheiros, onde o pai abriu outro armazém, Bazar 13. Raduan passou a trabalhar lá e estudava à noite. Primeiro Letras, depois Direito, a seguir Filosofia, o curso que finalmente terminou. Rosa, a mais velha, era professora de português. “Fui aluno da minha irmã, da Rosa. Aprendi muito com ela, quando ela estava corrigindo provas eu ficava do lado e dava até palpites.” Foi ela que o ensinou a depurar a língua, a pensar cada palavra. “Eu gostava muito de palavras”, diz. Aos Cadernos afirmara: “Dei conta de repente de que gostava de palavras, de que queria mexer com palavras. Não só com a casca delas, mas com a gema também. Acabava que isso bastava”. Agora diz apenas: “Acho que foi aí que a paixão começou. Pela literatura. Fui picado pelo bicho da literatura.” Menciona os abandonos anteriores. “Nunca soube bem porquê, veja só, talvez decepcionado.” Primeiro o curso de Letras, depois o Direito, a ideia de uma carreira académica em 1963, quando decidiu viajar para a Alemanha para aprender a língua. Voltaria ao Brasil, para ajudar o pai, fez criação de coelhos no campo, fundou um jornal com os irmãos, em Pinheiros, o Jornal do Bairro. Foi o director. A publicação vendia 130 mil exemplares. Lá diz que aprendeu a ver a diferença entre a palavra escrita no papel e depois quando posta nas laudas. Como parecia ganhar outro corpo, outro sentido. Era a confirmação da paixão. “Tive até oportunidade de fazer uma carreira universitária e não quis, porque achei que isso podia interferir no meu projecto literário.”

No jornal estava cercado “por gente do métier”. Hamilton Trevisan, Paulo Emílio Salles Gomes, Paul Singer, José Arthur Giannotti, Walter Barelli, Augusto Nunes. “Saíamos todas as noites. Íamos para um salão de snooker (sinuca) e ficávamos até madrugada.” Isso aconteceu desde que era estudante. De manhã tinha de ir para a loja. Conta que o pai falava muito de política, desde que era criança. “Tínhamos um rádio na loja, um rádio enorme, e à noite ele ficava ouvindo o noticiário internacional, o que se passava na terra dele. Tudo apagado. E depois comentava com a gente.”

Nessa altura começou a escrever. Primeiro o conto Menina a caminho, depois Um copo de cólera. Conta-se que a novela lhe saiu em 15 dias. Ele diz que ela já estava na sua cabeça quando a passou para o papel. Passou meses a revê-la. “Na época escrevia à máquina. Não existia computador. Eu rebatia muito, gostava de rebater, inclusive com as margens certinhas, manias, e na medida em que rebatia, sempre fazia alguma pequena alteração. Chega um momento em que se diz: agora vai.”

Nessa altura, já tinha lido há muito teorias sobre o feminismo, leu sobre o marxismo, percebeu as contradições, nunca deixou, no entanto, de se sentir de esquerda. Foi essa convicção que recentemente o fez sair e falar. Apenas por razões políticas. Encolhe os ombros, fez o que achou que devia fazer. “Não como escritor, como cidadão”, sublinha. E um escritor como pode intervir? “Se eles se satisfizerem a mexer com as palavras já é uma grande coisa. Quanto ao alcance disso, não aposto muito.” Olha para o guardanapo que tem nas mãos. É na política que se refugia quando sente que está a contar de mais sobre si e os seus livros, sempre que acha que pode desvelar o que não quer. Na entrevista aos Cadernos, em 1996, perguntaram-lhe acerca das razões ter desistido da literatura e ele foi-se socorrendo das palavras de outros para se desviar do que para muitos continua sem explicação. Assim: “E segura essa: ‘Desisti de escrever porque há um excesso de verdade no mundo’, uma afirmação do Otto Ranke, que o (José Carlos) Abbate me deu de presente quando abandonei a literatura”. Frase de efeito, sugeriu o entrevistador. “Frases de efeito também fazem literatura, ou não?”, continuou Nassar, que pouco depois deu o assunto por terminado: “Minha cabeça hoje não está mais aí, que achem que quiserem, se me ne frego. Aliás, com esse papo você está é me fazendo um coveiro de mim mesmo, o coveiro que desenterra a própria ossada, estou até me sentindo mal falando dessas coisas”.

Passaram 23 anos desde essa entrevista e um ano desde a eleição de Bolsonaro, que Raduan Nassar tentou impedir como pôde. Não voltou a falar, nem de literatura nem de política. Aceita conversar. Sobre o quê depois logo se vê.

Vem a pergunta nada original:

Porque decidiu deixar de escrever?
Nem sei.

Diz-se muitas vezes que um escritor nunca deixa de ser escritor...
Mas eu deixei. Também gosta de café forte?

Não sente saudades?
(Pausa) Não sei porquê, mas houve um momento em que joguei tudo para o espaço. Eu estudava Direito, desisti no quarto ano, depois passei a fazer Filosofia noutra faculdade. Desculpe falar, mas eu era dos primeiros alunos. Abandonei tudo porque estava absolutamente tomado pela paixão pela literatura. Veja só!

E a paixão acabou?
Eu acho que sim.

Mas lê.
Eu lia mais. Agora tenho um problema visual. Às vezes tento ler e preciso recorrer a uma lupa para me ajudar na leitura. Já não leio como lia. Não quer mais café? Abandonei a literatura, mas só senti não ter escrito uma coisa que eu gostaria: As três batalhas.

Como é? 
Contei para o Luiz Fernando Carvalho (realizador). Quando ele leu o Lavoura, se entusiasmou e fez o filme. Longo... Viu? Aqui, quando passava no cinema o pessoal aplaudia no final. E eu falei: Luiz, só lamento não ter escrito uma coisa, uma narrativa que eu achava razoavelmente boa, e não escrevi. Ele conversou comigo sobre o que seria e está encaminhando, baseado o meu relato oral, vai fazer um filme. Ele é talentosíssimo.

A sua história pela escrita de alguém.
É.

Que história é essa?


Há um silêncio longo, muda de tom, parece mais solene, focado num lugar que só ele vê. E começa: “As três batalhas — nem sei falar sobre o livro — é um menino que é muito ofendido na escola por outro menino, de um estrato social mais elevado; ele apanha, e acho que uma segunda vez, e apanha de novo. Aqui no Brasil era assim: quando duas crianças saíam das aulas e iam brigar faziam uma roda com os dois contendores no meio; um negócio terrível. Eu apanhei muito também. Mas o que acontece? Ele sai da escola e se refugia na casa da mãe, uma mulher trabalhadora, que, por sinal, era amante do pai desse menino. Como não ia à escola, fica no telhado da casa, um telhado sem forro, de telha vã, e um dia vê o amante da mãe chegar. Depois disso foge e se refugia na casa de um hortelão. Esse hortelão é um homem já de uns oitenta anos, mas vigoroso, e que passa não só a dar uma alimentação melhor para ele, mas também um tratamento militar. Além de passar certos valores éticos. O menino vai fazer esse treino, até que é preparado e, finalmente, vai para a terceira batalha. Mas aí a gente suspende a história”. Ri. “Eu achava que era uma narrativa razoável. Mas ficou só na cabeça.”

Raduan pergunta a Rita pelo café. “Rita toma conta de mim. Vem duas vezes por semana, sem ela não sou já nada”, diz a sorrir para a mulher que aparece com o café. “Tá forte?”, indaga Raduan. “Não cabia mais pó no coador”, descansa-o Rita, na mesma ironia dele. “Rita é da Bahia e ela sabe como a vida lá mudou com Lula. Na época do Lula ela podia visitar a mãe de avião.” E agora? “Uma vez fui de ónibus. São três dias”, responde Rita. “Ficou muito caro o avião”, conclui. Nasceu numa cidade chamada Santo Estêvão, a duas horas de carro de Salvador, para o interior do estado. “Lula conhecia o Nordeste. Era de lá”, continua Nassar, e, virando-se para Rita. “Rita, diz que o Lula só comeu pão aos seis anos de idade.”

A conversa passa a ser entre os dois, Rita e Raduan. Ela: “Mas deve ser mesmo. Eu acho que quando fui comer pão já 'tava' com 15 anos. Eu nem sabia nem o que era. Naquele tempo comia batata cozida de manhã, mandioca, milho, farinha com carne”. Ele: “A mandioca de lá, a macaxeira, é maravilhosa. Mas no Nordeste de manhã é um almoço pesado”. Ela: “E vim saber o que era televisão com 20 anos e eu tinha vergonha de olhar para a tevê porque achava que o pessoal lá 'tava' me vendo. Agora já não, com o Lula, o pessoal que mora em sítio, que mora em roça, fez poço em todas as casas, luz eléctrica. Ele fez muita coisa. Fez um milhão e 200 mil cisternas. E pôs água encanada de uma casa para a outra”. Rita e Raduan estão de acordo. Parecem esquecer-se que há mais alguém ali. Fazem da surpresa e da indignação de um a surpresa e a indignação do outro. Estão do mesmo lado de um país dividido, embora pertençam a classes sociais diferentes, tenham origens diferentes e ela goste do café um pouco mais fraco. Riem ambos, uma gargalhada cúmplice, interior, sem som. Rita fez o rocambole e ele conta-lhe o que acabou de saber, que em Portugal se chama torta. “E tem goiaba em Portugal?”, pergunta Rita. “Aqui tem a rosa e a branca, e a rosa é muito melhor”, diz Raduan. “Mas é que nem tem comparação”, concorda Rita.
Raduan Nassar podia passar horas assim. A falar de comida, de plantas, do dia a dia, a fazer perguntas a quem está com ele. Rita já não está. “Sou meio caipira, não sou muito paulistano. Nunca fui um homem da cidade grande; sou mesmo um interiorano”, justifica. Por que diz isso? “Se vou a um shopping, por exemplo, estranho demais a coisa, fico literalmente perdido.”

Quando abandonou a escrita, em 1984, comprou uma fazenda no sul do estado de São Paulo, a Lagoa do Sino, no município de Buri, a 250 quilómetros da cidade. Começou a criar animais, depois cultivou arroz, soja, milho, feijão. Conta que a terra era fraca, foi preciso trabalhar muito para a tornar produtiva. Em 2012 os 640 hectares de terreno produziram 1500 toneladas de milho e mil toneladas de soja. Nesse ano, doou-a à Universidade Federal de São Carlos, com a finalidade de ser um centro virado para o estudo das necessidades rurais da região, com foco nos pequenos produtores. A contrapartida: ter cursos públicos e gratuitos ligados à agricultura e protecção da natureza. Isso agora parece em causa. “O ensino sempre foi público e gratuito. Agora estão querendo privatizar as universidades! Não é possível! Doei. E agora o que querem fazer com ela? Estão querendo arrendar, porque a reitora de lá é bolsonarista. Se acontecer isso, vai ter uma briga... se eu estiver ainda com vida.”

Os momentos calados de Raduan só acontecem na iminência da conversa se desviar para a literatura. Ele desvia antes. “Nos últimos tempos me meti de mais na política.” Refere as entrevistas, alguns artigos em jornais, desde o anúncio do impeachment de Dilma Rousseff, a prisão de Lula da Silva, as eleições que levaram Jair Bolsonaro à presidência. Voltou ao silêncio. Vai fazer 84 anos, a 27 de novembro, já viveu muitos momentos políticos. “Mas nunca um como esse. É inacreditável o que está acontecendo.” Esta é uma das expressões que mais irá repetir nas três horas seguintes sempre que o tema for o Brasil actual. Entre tristeza e desalento, o tom por vezes endurece. Pior do que o da ditadura militar? “O caso da ditadura militar foi gravíssimo, mas aqueles militares de 1964 eram muito nacionalistas, e os militares que estão aí não entendo qual é a cabeça deles. Eles não estão tomando posições e o Brasil está indo à bancarrota. Muito triste. Não sei aonde vamos chegar. Estamos sendo governados por um idiota que tem sempre uma posição de arma. E veja o Witzel (governador do Rio de Janeiro)... matar pessoas hoje no Brasil virou uma coisa normalíssima. Sobretudo a população negra, das favelas. É inacreditável o que está acontecendo.”

Todos os dias lê os jornais no computador e se exaspera. “Estive com o ex-presidente Lula no dia 8 de agosto. Foi muito bom. Ele fez café, conversamos. Aí eu falei para ele: ‘Presidente’ — trato ele por 'presidente' — ‘tem de contar com o imponderável’, aquelas coisas que acontecem e a gente não imaginava que pudessem ter acontecido. Isso do Intercept é uma coisa extraordinária, é o imponderável que está acontecendo e desmantelando essa figura terrível que é o ministro da Justiça, o Moro. Quem desgraçou o Brasil — o que está acontecendo com o Brasil é uma desgraça — foi um juizeco que se chama Moro. Fez de tudo de uma forma supercalculista. Mas tem havido movimentos de rua, acho que isso se vai intensificar. Não vou dizer que estou optimista, mas acho que vai haver uma virada. Os estudantes, especialmente, têm-se manifestado pela universidade pública”.

Nada disto é novo. “O Brasil tem um perfil autoritário bem anterior à ditadura”, diz, repetindo uma ideia que não é nova no seu discurso, nem no discurso de outros ilustres brasileiros. Lima Barreto disse isso de outra forma em Transatlantismo: “Nós, os brasileiros, somos como Robinsons: estamos sempre à espera do navio que nos venha buscar da ilha a que um naufrágio nos atirou”. As configurações vão-se alterando, parecem dizer os gestos do Raduan Nassar silencioso. E ocorre a parábola do faminto que o pai contava para mostrar o valor da partilha em Lavoura arcaica junto com a imagem de Leandro a puxar a carroça. (“Como podia o homem que tem o pão na mesa, o sal para salgar, a carne e o vinho, contar a história de um faminto?”, questionava André.) A inquietação dele vale para todos os homens em todos os tempos. A produção literária de Raduan ocorreu em tempo de autoridade e não tinha como não reflectir sobre ele. “Vivemos tempos de polarização extrema, como os da ditadura civil-militar, durante os quais Raduan produziu. A dificuldade de se chegar à verdade num mundo em que há um excesso de informação e em que todos produzem conteúdo o tempo todo, a disputa de narrativas, a verdade, a pós-verdade, as fake news, o lugar de fala, todos esses temas estão no centro da obra de Raduan, ainda que muitos desses termos nem existissem à época em que ela foi produzida. As disputas entre o chacareiro e a jornalista em Um copo de cólera e entre André e o pai em Lavoura arcaica, a despeito de suas diferenças, têm relação com tudo isso e com algo central em tempos de Trump e Bolsonaro: a linguagem é maleável e as palavras são portadoras de verdades provisórias e alguns frágeis. A obra de Raduan encena algo que ficou evidente com as redes sociais: se tudo pode ser dito, se tudo tem o mesmo peso, se é possível afirmar algo e o seu oposto, nada precisa de ser dito, nada deve ser dito, não há sentido em dizê-lo. Para demonstrá-lo, porém, é necessário dizer sempre mais, como se na fragilidade da palavra residisse sua necessidade. Esse movimento acaba por gerar um ruído ensurdecedor e paralisante, que quem frequenta o Facebook, o Instagram ou o Twitter conhece muito bem.”

A interpretação é de Estevão Azevedo que naquela tarde de setembro se juntou ao lanche de Raduan Nassar. Estevão é de São Paulo, autor dos romances Nunca o nome do menino (2008) e Tempo de espalhar pedras (2014, publicado em Portugal em 2017 pela Cotovia), mestre em Literatura Brasileira com o trabalho sobre Raduan. Estudou como poucos a obra do autor de Lavoura arcaica. Não se ateve a um só livro, mas à obra completa, “muito fininha”, ironiza Raduan. “Raduan é um dos notáveis estilistas da prosa em língua portuguesa, de uma singularidade impressionante. De forma engenhosa, Raduan se definiu certa vez como um ‘paralelepípedo lírico’. Além de precisa, a definição é preciosa e cómica, se pensarmos que a pergunta do entrevistador versava sobre a relação (para Raduan, inexistente) com a obra dos poetas concretistas. O peso e a densidade de seus textos, a energia concentrada em cada frase, a solidez na escolha de cada vocábulo e da sintaxe, tudo isso que vem em grande medida de um trabalho de linguagem nas fronteiras da poesia e de um hermetismo barroco torna essa autodefinição brilhante. Raduan não é dos autores que se pode facilmente encaixar numa linhagem, saber de quais descende ou quais lhe seguiram, e só isso, esse carácter de ponto fora da curva na ficção brasileira, já o torna motivo de grande interesse. Além disso, não são muitas as (boas) obras de carácter tão onívoro como a de Raduan: em uma camada na maior parte das vezes subterrânea, convivem referências à mitologia grega, a autores de distintas correntes da filosofia ocidental, aos textos sagrados das grandes religiões monoteístas, aos conhecimentos da tradição hermético-alquímica, às origens ibéricas de personagens, ao contexto histórico, estético, político, social e cultural de sua produção, a escritores de diferentes épocas, literaturas e géneros etc.”

Raduan não escutou isto. Teria sorrido, no mínimo. Foi um aparte fora da casa de Vila Madalena. À mesa, o ex-escritor tinha mudado a conversa sobre literatura para a política, e depois traçara um perfil sumário do Brasil enquanto país de pendor autoritário, até gesticular para dizer que não adianta “esquentar a cabeça” para tentar perceber o Brasil. Que relação tem com o Brasil?, pergunto. “A minha relação com o Brasil é uma relação de amor. Não com o Brasil que está aí. Sempre me senti muito brasileiro.” E não há um “apesar” nessa declaração. Apesar de pertencer à primeira geração de brasileiros, por exemplo. “Fui à aldeia dos meus pais no Líbano. Duas vezes. Num momento foi bom. Noutro estava ocupada por Israel. E pensei que meu pai se viraria no túmulo se eu fosse. Não cheguei a ir.” Voltaria com o realizador Luiz Fernando Carvalho. A marca dessas origens mediterrânicas está no seu trabalho, na sua vida, no gosto pelos paladares árabes. A família de Lavoura arcaica tem as mesmas raízes. Nem uma vez isso é referido, mas há palavras a indiciá-lo. O pai de André chama-se Iohána e os lamentos da mãe saem na “sua própria língua”, “um lamento milenar que corre ainda hoje a costa pobre do Mediterrâneo”, lê-se nesse livro que cita outros textos, clássicos, evangelhos... e A paixão, romance de 1965 de Almeida Faria, o primeiro da Trilogia lusitana: “Eram também coisas do direito divino, coisas santas os muros e as portas da cidade”. É uma citação sem aspas, apropriação de palavras que ganham novos sentidos, como outros no livro, de outros livros. “Recordo a surpresa da visita não anunciada de um jovem casal, ele e a namorada, Heidrun, que nos bateram à porta na primavera ou no verão de 1976. Curt Meyer-Clason, tradutor d’ A paixão, tinha-lhes dado o endereço. O mais poético desse encontro foi a espontaneidade de Raduan. Apareceu simplesmente e disse ao que vinha. Tocou-me sobretudo o seu gesto generoso, pouco frequente entre escritores”, conta Almeida Faria sobre um encontro que os juntou até hoje, amigos, mais de 40 anos depois. “Foi a única vez que estive em Portugal”, refere Raduan. “Andei pelo país e em Lisboa bati à porta do Almeida Faria para lhe agradecer o livro dele e oferecer-lhe um exemplar do Lavoura.”

Os dois livros passam-se “em ambiente rural, pagão e religioso”, como sublinha o escritor português, que lembra uma frase de Raduan: “Ao ler A paixão, de Almeida Faria no início dos anos 1970, entrei em imediata comunhão com essa obra-prima, a ponto de colar ao Lavoura arcaica, sem qualquer pudor, certas imagens e metáforas daquele poema prosa”. Parece haver muito em comum no mundo telúrico. Conta como, há muitos anos, o impressionou uma viagem ao interior nordestino. “Parecia que estava no interior de São Paulo. Havia coisas iguais.” O mesmo terá conhecido no Mediterrâneo. A primeira viagem ao Líbano foi em meados de 1960. A aldeia dos pais. Como eles, ele nasceu e cresceu no campo, sabia como os sinos podiam ser a grande distracção, como, longe dali, eram as chamadas para a oração. Andou na igreja, aprendeu a não desafiar a paciência e sobre a virtude que havia na espera; aprendeu também a ouvir a terra.

Isso está em Lavoura arcaica, mas em vez de uma ode ao corpo santo o centro é o corpo erótico, “elemento de analogias universais”, defende Estevão Azevedo na sua dissertação, sublinhando um jogo em todos os livros de Raduan: a tentativa de despistar o leitor que vai sempre encontrando camadas e significado a cada leitura e a linguagem mascarada que serve politicamente. Mais uma vez através do controlo dos corpos. “Exemplo disso é a erotização da política ou a politização do erotismo”, escreve Estevão acerca de Um copo de cólera. E cita o ensaio de Leyla Perrone-Moisés, Da cólera ao silêncio, contido nos Cadernos de literatura brasileira, quando me escreve que na novela se revelam “todos os antagonismos: machão contra feminista, anarquista contra reformista, individualista contra populista etc. (...) Atolados nos lugares-comuns de discursos irremediavelmente gastos, homem e mulher se veem reduzidos à hostilidade fundamental da diferença sexual, ao silêncio dos corpos que se atraem e se repelem”.

Não há redenção nem epifania, repete-se. Uma vertigem e o acentuar da ambiguidade, dos tais antagonismos; a grande contradição humana que não se vê a olho nu, mas na intimidade, no privado, nas sombras.

Raduan volta a encher a xícara de café. Serve mais duas. Fala em Chico Buarque, em Folhetim, canção que integra a Ópera do malandro, de 1979. “Conhece? Aquela letra é uma obra-prima”, afirma. “Se acaso me quiseres / Sou dessas mulheres / Que só dizem sim / Por uma coisa à toa / Uma noitada boa / Um cinema, um botequim // E, se tiveres renda / Aceito uma prenda / Qualquer coisa assim / Como uma pedra falsa / Um sonho de valsa / Ou um corte de cetim // E eu te farei as vontades / Direi meias verdades / Sempre à meia-luz / E te farei, vaidoso, supor / Que és o maior e que me possuis // Mas na manhã seguinte / Não conta até vinte / Te afasta de mim / Pois já não vales nada / És página virada / Descartada do meu folhetim.”

À luz da obra de Raduan Nassar, a canção soa a uma prece pela emancipação do corpo feminino, aquele que se insurge contra a tirania masculina. Declara-se contente por Chico Buarque ter vencido o Prémio Camões. “Ele fez uma declaração tão boa para mim. Falou que se sentia muito feliz e honrado por seguir os passos do Raduan Nassar. Bom, né? Para mim é um génio.”

E como não lembrar em Lavoura arcaica a dança desafiante de Ana, a paixão de Ana? “Ana (que todos julgavam sempre na capela) surgiu impaciente numa só lufada, os cabelos soltos apanhados num dos lados por um coalho de sangue (que assimetria mais provocadora!), toda ela ostentando um deboche exuberante, uma borra gordurosa no lugar da boca, uma pinta de carvão acima do queixo, a gargantilha de veludo roxo apertando-lhe o pescoço, um pano murcho caindo feito flor da fresta escancarada dos seios, pulseiras nos braços, anéis nos dedos, outros aros nos tornozelos, foi assim que Ana, coberta com as quinquilharias mundanas da minha caixa, tomou de assalto a minha festa, varando com a peste no corpo o círculo que dançava, introduzindo com segurança, ali no centro, sua petulante decadência...”

Acha Lavoura arcaica o seu grande livro? “Isso é com quem lê. Eu não tenho dessas coisas.” E não diz mais. Parece que não vai dizer mais. “Lembro que quando escrevi tinha lá uma nota sobre o título, que devia ser qualquer coisa a ver com uma lavoura arcaica. Um amigo viu e disse: é esse o título, Lavoura arcaica. Às vezes os outros sabem mais das nossas coisas.”