Norões JoaquimCardozo VitoLima.junho.23

 

 

Escrever de Joaquim Cardozo
só pode quem conhece
aquela luz Velásquez
de onde nasceu e de que escreve.

A luz que das várzeas da Várzea
onde nasceu, redonda,
vem até o ex-cais de Santa Rita
que viveu: luz redoma,

luz espaço, luz que se veste,
leve como uma rede,
e clara, até quando preside
o cemitério e a sede

(A luz em Joaquim Cardozo, de João Cabral de Melo Neto)

 

Com o escritor Marco Lucchesi, em casa.

Marco atende ao telefone. É Sebastião Lacerda, da editora Nova Aguilar, perguntando-lhe se poderia organizar a obra completa de Joaquim Cardozo. Marco responde que gostaria, dada a admiração pelo engenheiro/poeta, não fossem compromissos assumidos. Diz que estava em Recife e, coincidência, falávamos sobre o autor de A nuvem Carolina, texto que velava à mesa de cabeceira de Carlos Drummond de Andrade. Para o poeta mineiro, aquele poema era uma espécie de companhia de vida. Sebastião e Marco decidem, então: caberia a mim a tarefa. Não se tratava de convite. Uma quase intimação.

(No desdobrar da conversa, resgato a imagem de Signo estrelado, editado pela Livros de Portugal, o primeiro livro de poemas que li ao desembarcar no Recife, estudante vindo do interior.)

 

Viagem para o Rio de Janeiro.

Encontro marcado na sede da Nova Aguilar. Sebastião conta da insistência de João Cabral de Melo Neto pela edição da obra de Joaquim Cardozo. Tal sua dimensão, precisava ser conhecida. Reconhecida. Numa de suas entrevistas, João Cabral confessa que o autor de O congresso internacional dos ventos havia sido a universidade que frequentara nos seus tempos de Recife.

 

A tarefa merecia ser coletiva. Era importante visitar pessoas que tiveram envolvimento com o poeta. Algumas delas conviveram com Joaquim Cardozo, outras guardaram histórias ou documentos ou escreveram sobre ele. Foram vários os encontros com o teatrólogo João Denys de Araújo Leite, o arquiteto Geraldo Santana, a poeta Maria da Paz Ribeiro Dantas, o poeta José Mário Rodrigues, a bibliotecária Maria do Carmo Lyra… Também o médico Paulo Cardozo, sobrinho do poeta. Todos engajados na tarefa de fazer sair do prelo a edição da obra completa. Para arrematar, telefonei ao arquiteto Oscar Niemeyer, pedindo que comentasse sua convivência com aquele cujos cálculos ergueram projetos importantes, incluindo os principais edifícios de Brasília. Algo que poderia ser imaginado como um enlace entre a poesia da arquitetura e a arquitetura do poema. Niemeyer fala do apoio ao poeta na doença e de outros assuntos de caráter pessoal. Despedi-me para que não se prolongasse a conversa.

Se vivo fosse, recorreria ainda a outro calculista e escritor de gênio, colega de trabalho de Joaquim Cardozo: Samuel Rawet. Quase desconhecido no Brasil, recentemente publicado com destaque nos Estados Unidos. Morreu louco e sozinho num apartamento da Brasília que ajudou a construir.

 

O tempo passa. Decidiu-se pela obra quase completa: não estariam contemplados os textos para teatro. A vida, mais uma vez, pregando suas peças a um dos maiores poetas da língua portuguesa.

 

Trabalho entregue.

Descendo a Serra das Russas rumo ao Recife, o celular toca.

Estaciono o automóvel à beira da estrada. É Fernando Lyra, político de destaque na luta contra a ditadura militar, ex-ministro da Justiça. Na ocasião, presidente da Fundação Joaquim Nabuco.

Estranho a chamada. Mais curioso ainda ao observar o painel do automóvel. Chamo a atenção de Sônia, minha companheira: relógio e odômetro marcando números idênticos. A lembrar conhecido ditado espanhol: No creo en brujas, pero que las hay, las hay! Dou-me conta de que, apesar de descrente, a vida havia me aprontado algumas peças do gênero. Para confirmar o ditado.

Fernando Lyra fala do contrato firmado entre a Fundação Joaquim Nabuco e a editora Nova Aguilar. A Fundação que dirigia tinha a seu encargo a impressão do livro. Estava sendo alertado, porém, de que haviam sido acrescentadas ao projeto original informações incorretas. Até o nome do organizador fora excluído. Alterações que desconfiguravam o trabalho cuidadoso da Nova Aguilar.

Atendo ao chamado de Fernando Lyra e na manhã seguinte desembarco no seu gabinete. Preocupado, pede opinião, disposto a qualquer solução. A resposta: manter o projeto original da Nova Aguilar, editora conhecida pelo esmero de suas publicações, textos bem revisados, diagramação requintada, capa dura com inscrições douradas, sobrecapa com foto do autor, acondicionada em caixa exclusiva. Fazer outra impressão. Descartar a tiragem que continha erros.

A Fundação Joaquim Nabuco se recompôs. Não hesitou em anotar as falhas e contabilizar o prejuízo financeiro. Antes da impressão final, enviou exemplares para que olhares atentos não permitissem mutilações na obra concebida para divulgar a grandeza de Joaquim Cardozo. Há informações de que mais percalços existiram até que o livro fosse entregue à editora do Rio de Janeiro na versão correta.

Circulam na internet teses universitárias em torno de Joaquim Cardozo. Algumas delas, percebe-se pelas citações, têm como fonte exemplares cuja tiragem teve a circulação condenada.

Erros e negligências intelectuais não costumam se perpetuar. Importa que as novas gerações terão conhecimento dos textos do grande poeta, calculista, filósofo. E será sempre contemporâneo seu extraordinário poema A escultura folheada, que motivou o trabalho A forma-formante do escritor Manoel Ricardo de Lima. No poema, Joaquim Cardozo trata dos furos deixados por traças no interior de um livro, compondo rara forma de escultura, por ele denominada “escultura do nada”.

Furos feitos por seres que “evoluíam sob o sol de uma lâmpada”. Furos que compõem linhas e formam desenhos susceptíveis de provocar inveja “aos mais sábios artistas”.

Poema quase parábola. Sintetiza a modéstia do homem e a grandeza de pensamento de um dos criadores mais destacados da literatura em língua portuguesa.