EverardoNorões LauraMorgado

Nordestino. Secundário completo. Domador de profissão.

Moacir, nas horas vagas, aprecia ler sobre o mundo das feras. Por conta desse hábito, aportou no escritor Honoré de Balzac, depois da conversa com um francês que havia conhecido numa das temporadas do circo no interior de São Paulo. Michel ofereceu-lhe a tradução do Uma paixão no deserto, um dos livros que compõem o clássico A comédia humana. Comentou ter achado aquela narrativa um tanto curiosa: um encontro fatal entre um homem e uma pantera.

É o drama de Martin, soldado francês. Feito prisioneiro durante a campanha de Napoleão Bonaparte no Egito, ele consegue fugir deserto afora. Desgarrado da tropa, acaba perdido entre as dunas. Sozinho, esfomeado, sob calor sufocante, busca abrigo seguro. Encontra uma gruta que lhe oferece proteção. Tenta reunir forças para sobreviver naquele horizonte de areia, sol e sede.

E adormece.

Ao despertar é tomado pela sensação de que havia sido invadido por um estranho “sonho” ao avistar a seu lado uma pantera. Certamente deve ter tocado no próprio corpo para constatar se aquela cena era real.

Confrontado a um “inimigo” tão próximo, seus apetrechos de guerra lhe pareceram fora de propósito. Que outra saída teria além de tentar cativar o felino com ardis mais sofisticados do que os aprendidos em treinamentos militares? Resolve se aproximar da fera. No entanto, embora os dois tenham “simpatizado” no pouco tempo que estiveram juntos, um gesto da “companheira” o leva a suspeitar que está prestes a ser atacado. E ela é abatida por Martin.

Ao ser resgatado pelos soldados de Napoleão, nervos à flor da pele, ele é tomado pela emoção e arrepende-se de ter matado a pantera com a qual conviveu sob o céu de Alá.

Encerrada sua temporada militar, Martin regressa à França. A experiência traumatizante o induz, ajudado pelos meandros do subconsciente, a se tornar domador. Desenvolve técnicas de adestramento que o tornariam famoso. E imprime sua marca na história como o primeiro homem a ter entrado na jaula de um animal selvagem, tornando-se uma das principais referências no mundo do circo.

O fato é que após a leitura de Balzac, Moacir resolve dar ao “seu” leão, com o qual conviveria alguns anos, o apelido de “Martin”.

Um amigo conta ter conhecido Moacir, o domador, numa de suas noitadas de folga. O circo, armado para uma temporada de alguns meses, dava-lhe a possibilidade de se familiarizar com a vida noturna da cidade.

Após os espetáculos, marcava ponto entre boêmios do bairro de São José. Com a ajuda de algumas cervejas, era visto contando “causos” entre parceiros. Simpático e cortejador, tinha o costume de chamar “minha leoa” a garçonete de turno. De vez em quando as presenteava com bilhetes gratuitos para os espetáculos do domingo. Elas acompanhavam o entusiasmo do público diante dos salamaleques de Moacir. Sobretudo no desfecho da apresentação, quando o leão Martin era despedido pela porta dos fundos da grande jaula montada no centro do picadeiro. Aplausos. E o domador a desfrutar de mais um de seus dias de glória.

Para um bom frequentador de circo, era evidente: a juba escurecida do leão atestava sua entrada nos anos, além de certa lentidão perceptível no ritual típico do espetáculo. Aquele instante em que o domador move o chicote com a mão direita, enquanto segura com a esquerda o tamborete de proteção. Mas, para o grande público pouco informado sobre técnicas circenses, o desempenho e a simpatia de Moacir salvavam o espetáculo.

Após tantos anos de convívio com as feras, o domador tinha sua filosofia. Repetia nas conversas o quanto bicho e gente eram parecidos. Prova disso, a cicatriz de quase quinze centímetros no braço utilizado para defesa. Em seguida, fazia um gesto com a mão como se estivesse tentando surrupiar algo do bolso do interlocutor. Ocasião em que contava que sua carteira havia sido levada por um de seus ajudantes. Arrematava com uma observação que gostava de repetir: “Tanto pra bicho como pra gente, dar o bote é apenas uma questão de oportunidade”.

 

Até que a jaula deixada aberta por um dos cuidadores, numa madrugada de uma segunda-feira, oferece ao animal o caminho do livre-arbítrio, que principia em alguma rua da periferia do Recife. É dia de folga. Moacir está posto em sossego em lugar não sabido. O dono do circo, hospedado num hotel das proximidades, é prevenido. Decide. O jeito é alertar as autoridades. Preferível uma multa à responsabilidade por um eventual acidente provocado pela fera solta no meio do mundo.

Consta que Moacir desapareceu após a evasão de Martin.

 

As chamadas “estruturas administrativas” foram mobilizadas para detectar o paradeiro do leão. Seus rastros iam sendo monitorados com relativa competência por um grupo designado pelas “instâncias superiores”. Seu suposto percurso passou a ser anotado dia a dia, hora a hora. Mesmo sem ter sido avistado, a imprensa ia sendo informada pelos tecnocratas do governo acerca de fatos denominados “eventos lógicos”: esqueletos recentes de animais mortos nas veredas da caatinga, movimentos estranhos de pedras em passagens conhecidas, rastros de bicho de maior porte em leito de rio seco.

Num grande mapa, afixado na parede da principal sala da Administração, alfinetes coloridos assinalavam o “trajeto” de Martin. Uma grande linha vermelha indicava que ele havia seguido a direção Leste/Oeste, com ligeiras oscilações.

O cruzamento dos dados acabou por confirmar que a fera não mais se encontrava nos limites geográficos de Pernambuco. O gabinete de emergência não teria mais com que se preocupar. Relatório final entregue, os funcionários envolvidos poderiam dar por finda a missão.

{Um comentário irônico, feito por um dos políticos da oposição, julgado “indevido” por alguns, logo foi reproduzido em manchete num dos jornais:

O trajeto da burocracia é mais importante do que a tênue linha de fronteira cruzada por Martin, um idoso leão de circo.}