A leitura e a própria feitura do livro Beat,[nota1] do escritor Luís Filipe Sarmento, fazem lembrar uma pequena e instigante nau portuguesa. Como se ao ritmar das páginas ela navegasse levando a bordo alguns duendes literários inspirados pelo Bateau ivre de um certo Arthur Rimbaud.
Embora tenham bebido água da mesma fonte, no livro de Filipe os “companheiros” são oito autores norte-americanos. Seus nomes batizam os oito capítulos do livro. Sete são ícones literários da chamada geração Beat. O oitavo é dedicado a um escritor que faz carreira solo: Carlos. Ou WCW. O poeta William Carlos Williams.
Penso que há sempre dois tipos de escritores. De um lado, os que buscam seguir os cansados corredores da Literatura. Do outro, aqueles que partem ao encalço da subversão de línguas e gramáticas. E findam por transformar a escrita naquilo que João Cabral apelida faca só lâmina. Aquela que perfura o corpo da literatura para tentar resgatar o sumo vermelho do poema.
Daí, é fácil pensar que outro “companheiro” do autor português na estrada rumo ao desassossego poderia ter sido o gênio de Charleville. O que desaparece na Abissínia, quase um século antes desses beatniks, esquecido de seus pares de boemia parisiense, para regressar estropiado e convertido à sua terra de França. Porque, mesmo sem ser citado, ele é um dos sextantes que norteiam os que escrevem como Luís Filipe Sarmento. Aqueles para quem todos os caminhos são “celestes sob as estrelas”.
Nos meados do século que se foi, os “companheiros” do Beat desfiaram um “roteiro” tão psicodélico e irreverente quanto o do genial adolescente da França. E para um intelectual às margens do Tejo, do outro lado de lá, enquanto digere textos da contracultura yankee, ouvindo ao longe os ecos parisienses do Maio de 1968, a pergunta: O que fazer? Naquele horizonte de mar salgado e de mitos em desconstrução, apenas um bifurcar de caminho. O do exílio, o de “dentro” (do mergulho nos paraísos artificiais) ou o da partida provável para as guerras de África.
Enquanto os caminhantes norte-americanos digerem o seu “banquete nu”, ao escritor português resta a confissão logo no primeiro capítulo do livro: “Nasço sempre em Lisboa para ver dançar o Tejo o rock’n roll do mar. E anoiteço em ti sob as tuas carícias de um blues opiáceo”. Detrás dessa “declaração” pungente, as inquietações e urros diante de um Portugal sinistro, que logo despertaria nos colos do abril destinado a durar o tempo de um fado.
Não por acaso, uma frase a escorrer no livro jaz sem resposta: “Que estrada? Sem fim e tudo por começar”. Com ela Luís Filipe principia o “encontro” com o autor do On the road. A caminho, sim, porque no que diz respeito à escrita de Beat, trata-se daquilo que Graça Capinha, no seu prefácio, chama de “escrita enquanto estrada”. E é, de fato, a sensação de caminho (tanto de destino quanto de encruzilhada) que se tem à leitura: encontros e confissões e “viagens” entre Filipe e seus “companheiros”. Espécie de comovida e inusitada comunhão. Um bate-papo entre escritores sem rumo certo, num tempo tão ofuscante quanto o céu de Lisboa. Embora em paralelos diferentes, eles berram num acorde dissonante a mesma melopeia da desesperança. De um lado, os cansados viageiros da rica América do Norte dando suas largas passadas em direção ao atoleiro do Vietnã. Do outro, um país exangue e pobre a enterrar seus jovens nas savanas africanas.
No livro, conversas/poemas/crônicas/confissões com e em torno daqueles autores subversivos destinados à Inquisição burguesa: Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, William S. Burroughs, Gregory Corso, Diane di Prima, Jack Hirschman. Também o médico e poeta William Carlos Williams, pertencente a uma geração diferente, mas que se tornaria, pelo conteúdo revolucionário de sua escrita, uma das principais referências daquele grupo e uma arredia voz do mundo literário de língua inglesa.
É interessante a pequena passagem dedicada a WCW, diferenciada das outras partes do livro. Composta de pequenos poemas, como se Luís Filipe Sarmento estivesse buscando tecer um bordado de textos “à moda de”. Impregnados daquela característica tão especial da poética de William Carlos Williams, que é a negação do significado “natural” das coisas. A exemplo de passagens/frases/versos como: “A água de um copo azul dá maré à minha boca”. Ou, “Duas chávenas de chá estacionadas no tempo da memória”. Textos na linha do objetivismo, no justo dizer de Graça Capinha, sintonizado com o falar das ruas e “advogando uma estética do cotidiano”. Uma estética, aliás, que seria louvada pelo cinema de Jim Jarmusch no seu antológico Paterson, de 2016.
Chama a atenção em Beat essa espécie de ostinato rigore com o qual Luís Filipe inicia cada uma das passagens de seu livro. Comparáveis a janelas de um edifício que vão se abrindo aos pares para o diálogo com os seus “espectros”. Talvez porque, como ele bem o diz, embora a Literatura não seja um gênero de primeira necessidade, é a ela que devemos nossa própria liberdade. Liberdade expressa nas “observações” feitas por Filipe a Jack Kerouac: “O acaso era agora o nosso GPS” e cada madrugada “uma terra prometida à imaginação”. Nesse sentido, ele se situa naquela mesma via de uma literatura em ruptura permanente e obstinada, a que tem revelado nossos mais interessantes escritores.
Percorrer os caminhos do Beat é, numa certa medida, fazer de sua leitura uma espécie de “lição de trevas”. Buscar no mais recôndito de nosso tempo e memória a chama de um pensamento que não se amolda ao conforto dos cânones. Aquele continuar abrindo sendas às múltiplas faces secretas da palavra, obrigando respostas ao terrível enigma de Drummond:
Trouxeste a chave?
[nota1] Beat, Luís Filipe Sarmento (The Poets and Dragons Society, 2021).