Noroes fevereiro.23 RafaelOlinto

 

Mergulhar na leitura de Na pele feito fagulha de tiro (Editora Cubzac, 2022), de Júlia Arraes, é rimar com um tempo como o nosso, correndo ríspido, rápido. Textos curtos, incisivos, conseguindo ancorar-nos ao imprevisível. Com ponto final feito tiro, dando ênfase à morte da frase.

Não há tempo para especulações. O relógio tem pressa e a modernidade banalizou cenários e rituais do cotidiano mundo afora. O tudo quase sempre igual. Tanto faz São Paulo ou Paris, Barcelona ou Lisboa.

De onde tirar o motivo?

Haverá sempre uma mochila cheia de bolso falso dos inferno, diz um dos textos. Detrás deles, uma cabeça atenta a observar os pequenos movimentos sísmicos para anunciar a lava do vulcão. Uma caligrafia afiada pelo dia a dia dos subterrâneos da notícia que exige foco nos acontecimentos. E, ao mesmo tempo, um talento capaz de construir a narrativa com um jeito que cative o leitor.

Perseguir a concisão é dizer o que basta: valorizar o substantivo: dar pouco azo às qualificações. Este o percurso da escrita contemporânea. A que segue os recados sobre o estilo de alguns como João Cabral de Melo Neto. Pois, o poema deve ser também assim, como o canto a palo seco, ou seja, uma voz sem acompanhamento. E as mesmas 20 palavras girando em torno do sol. A dizer apenas o que deve.

A ficção, antes esfera quase exclusiva do mundo das letras, vivencia agora a explosão e o refinamento de novas linguagens. Sofisticadas, mutantes. Às vezes, com apelo a imagens ainda mais emocionantes do que as paisagens verdadeiras. Além disso, as “transcrições’ para vídeos ou filmes resultam em segundos de uma cena que equivale a dezenas de páginas de algum clássico da literatura.

A escrita de Júlia Arraes rege-se pelo impulso de tratar os seus textos com a exigência da modernidade. Descobre formas e coloridos para um artesanato que se vale das mesmas circunstâncias humanas de todas as épocas, pois em matéria de sentir, debaixo de nosso sol o nada existe que seja novo do Eclesiastes. Mas cabe fazer com que lugares e objetos condensem átomos do passado.

Na pele feito fagulha de tiro recorre ao conto, à crônica e oferece um novo registro epistolar. Pouco interessa a quem suas “cartas” são lançadas: se a um interlocutor real, se fictício. O que conta não é a troca de dizeres, mas o testemunho de nossa fugacidade, acentuada pela profusão de bytes que nos afoga.

A abertura do livro logo explicita: encontros como despedidas. As pequenas coisas que constroem o cotidiano para logo suscitarem lembranças. A ponte do poeta, debaixo da qual amor e água passam e passam. A exemplo da crônica Vermelho: rotina do banho e suas metamorfoses. O chuveiro escondendo as transformações que o corpo exprime de forma violenta nos sótãos de nosso inconsciente. O gesto abrindo cortinas à reflexão solitária e aos ajustes do corpo.

O redemoinho da cidade que nos tritura também leva à consciência do outro e à partilha do sofrimento trazido por uma notícia de jornal, testemunho da desumanidade. Em Faz frio, “a água bate na pele como fagulha de tiro” e moradores de ruas são acordados para que a cidade grande seja limpa dos “dejetos humanos” que atropelam suas ruas. O frio que desperta os que jazem no chão das calçadas tem a mesma dimensão de um golpe mortal.

Viver é mesmo perigoso, lê-se. E depois: “Que sorte poder contar com os domingos”. Como se este dia, o consagrado, pudesse ser diferente dos outros, daqueles em que a urgência e o provisório dispõem de armadilhas que a escrita busca desvendar na sua ficção. Daí a “carta”, em tom de despedida, a uma metrópole cruel, São Paulo, onde a possibilidade de escuta cede lugar à celeridade susceptível de paralisar o motor do pensamento.

O título de um dos textos do livro é Portaria. Na gíria do jornalista, o termo exprime o transcurso da espera, às vezes durante horas, do profissional que aguarda o acontecimento que motivará o flagrante ou detonará a entrevista. Traduz o sentimento de quem resta à soleira do inesperado para caçar o que logo explodirá no noticiário. Horas sujeitas a um corpo a corpo arriscado e angustiante para registrar o arremedo acrobático do político à saída de casa após um escândalo ou da mulher do bandido numa qualquer periferia domada pelo crime organizado. Cadernetas, microfones, filmadoras em busca dos “instantâneos”, em meio à tensão e fome aliviadas pelo pastel e o caldo de cana da venda do japonês.

O pigarro do namorado, o sofrimento para superar a “anestesia das manhãs”; as horas sobre um camelo no deserto onde “o céu é um novo mundo”; o esforço para abrir as malas nas metamorfoses urbanas e, antes disso, se perguntar: “O que guardar?”

No meio do livro, Gerar, cujo destinatário é o feto, o filho, o fato que remexe as entranhas e tudo transforma.

Gosto dessas leituras que nos obrigam a seguir a gíria e o léxico com a rapidez dos noticiários, detrás dos quais se esconde a literatura.

Gosto do embate que a escola norte-americana conhecida como new journalism trouxe às letras na década de 1960 do século que se foi, ao tratar a reportagem e os faits divers de forma literária. Tentativa de acomodar a invasão de novas modalidades de comunicação ‒ a narrativa de jornal com um verniz mais insinuante ‒, como ficção.

E é bom lembrar que a escrita “jornalística” transformada em literatura vem de mais longe. Vem do Comentarii de bello gallico, de Júlio César, descrição de suas campanhas contra as tribos gaulesas. Vem do clássico grego Anabase, ou A retirada dos dez mil, de Xenofonte, escrito quatro séculos antes do nascimento de Cristo, o primeiro relato de um guerreiro no papel de “jornalista” sobre a retirada do exército em derrota. Vem de Isaac Babel, quase um século atrás, nos relatos reunidos no Cavalaria vermelha. Exemplos de um grau extremo da escrita, quando a morte, a cada encruzilhada, sugere ao autor que a frase em andamento poderá ser a última de um livro inacabado.

Registros como estes de Na pele feito fagulha de tiro assinalam que a escrita, apesar de seus percalços, continua teimando em ser um dos melhores testemunhos de nossa odisseia.