Um dezembro cansado nos deixa. Sem saudades.
Releio estranha narrativa de Joaquim Cardozo. A visita que faz à velha Estação Central do Recife, após 50 anos de ausência. Noite fechada. No salão de espera deserto, ele “assiste” ao desembarcar de pessoas conhecidas de antigamente. Todas mortas.
A leitura resgata da estante a coletânea em três pequenos tomos. E 30 poetas. Editada pela Fundação de Cultura da Prefeitura do Recife, 2003 e 2004. Título: Estação Recife.
O primeiro deles traz na capa fotografia da antiga estação frequentada pelo poeta de Signo estrelado.
Vinte anos depois, quem sabe uma nova mostra + os bilhetes para novos poetas tomarem assento no trem que parte rumo ao asteroide Literatura.
RITUAL DO ESPANCAMENTO
Alberto da Cunha Melo
Espancado para aprender
a espancar
e ser espancado,
espancado em nome de Deus
ou de um jarro quebrado,
espancado para falar
e calar
o próprio espancamento.
Espancado para aprender
que os homens aprendem
espancando e sendo espancados,
espancado para dizer
que não foi espancado,
espancado para morrer
pensando que o mundo
está povoado
de espancados que espancam
e espancadores espancados.
BOM DIA, CUNHA MELO
Domingos Alexandre
Não é assim de longe,
de tão longe,
que queremos ouvir-te,
como se agora
cada palavra
fosse um adeus definitivo
e sem remédio,
como se de repente
quisesses transformar-te
numa nuvem longínqua
ou numa árvore estranha
perdida para sempre
no meio da floresta.
Precisamos ouvir-te de perto,
como antigamente,
voltar a cruzar
o vinho magro de nossos copos
numa noite de chuva
ou de verão tardio
lá na Rio Branco,
antes que se apaguem
as últimas lâmpadas do cais
e o Recife comece
a crescer outra vez,
sobre o arco (mais curvo)
de nossos ombros.
MEU LADO DA CAMA É A MORTE
Geraldo Holanda Cavalcanti
Meu lado da cama é o norte
o teu é o sul
minha escova de dentes é verde
a tua azul
é minha a gaveta de cima
e a toalha nova
teu lado da cama é a noite
o meu é a morte.
A GRACILIANO RAMOS
Lenilde Freitas
O dia é um rio. E nele
bebo as estrelas do céu
e recrio
nos remansos de cobras
os bambuzais.
Ao léu, penso ovelhas
penso folhas que não caem
carícias de vento nos coqueirais
‒ a vida que se disfarça.
Do trem que não passou
penso a fumaça.
O BISCATEIRO
Maurício Mota
vendo louças d’alma
primavera e enigmas
latões de óleo de bagdá
máscaras de veneza
cheiros do capibaribe
autumn vivaldiano
energia nuclear
para coreia e afeganistão
brisas de olinda
perfumes de moças
e vendo-me
a preço módico.
BOI
Maria da Paz Ribeiro Dantas
Na noite noite
a solidão
avança
atravessa
pastos e sombras
funda
uma clareira no tempo
com seu olhar de mansa rês
a sede extraviada
só mugido
OBJETO
José Mário Rodrigues
É ofício do morto
fechar os olhos.
Ele não precisa
do pranto de ninguém.
É ofício do morto
silenciar a dor,
não dissimular
a ausência
nem a frieza de suas mãos.
O morto não precisa
de flores nem de reza.
O morto é objeto
do que foi o desejo.
O MENINO FRANCISCO
Sebastião Vila Nova
O menino Francisco franze o verbo
e carrega as esferas e a esfera,
essa Fera de pedras sobre pedras,
que de pedras e pedras são as sendas
de muito rara seda e rara sombra,
o nosso breve tempo nesta esfera.
E pondera astrolábios, asteroides,
calcula e recalcula o mesmo diâmetro
da esfera onde navega nos azuis,
esse veludo, e vela o sangue, vida,
e já sabe que metro algum dos homens
é capaz de medir grandes tesouros,
os que a cada dia o Criador
dispensa sem medida às criaturas.
POÉTICA
Esman Dias
A aranha esquiva
do teu poema
se indociliza
na tua mão.
Morna e lasciva
pétala, flanco,
sabem teus dedos
tangê-la, mansos?
Sossegue imóvel
tua ciência;
hiberne lento
teu coração:
deixa que a aranha
do teu poema
navegue a seda
da tua mão.
N.B.
{Estação Recife teve à frente Heloísa Arcoverde (Fundação de Cultura Cidade do Recife) e como organizadores Pedro Américo de Farias, José Carlos Targino, Everardo Norões + o apoio de Marcelo Batalha.}