Norões 3 Vitor Fugita set.22

 

 

SALA
No guarda-louças
os sobejos do antigamente.
O desenho borrado na faiança
segreda o jejum
preso no guarda-louça.
Entre os mosaicos,
a rala argamassa
dos adjetivos.
Na bandeja encardida,
um toque da graça.
No cristal da taça
o vinho turvo.
a língua insubmissa
solicitando a saliva
consagrada.
Os objetos estão mortos no armário.
E, dentro de nós,
jaz um roteiro
de rios, ruas, ramagens.
(Vã caligrafia num
envelope de sombras.)

 

TELHADO NA CHUVA
Sem adjetivos ou
advérbios de tempo,
o pingo da chuva
na telha-vã.
O galho inclina-se à janela.
O orvalho curva o capim.
O cheiro de curral
no de manhã
é halo de um corpo
a cumprir a sina
do poema.

 

RABO-DE-ANDORINHA
Telha prestes a voar
num canto do beiral
onde o respingar
da chuva
entoa sua música.
Um pássaro
sem penas
pregado no
ângulo reto do desterro.
Anuncia
a construção do poema.
O cimento, vogal.
O ferro, consoante.
O como armar a rima
no arrimo de cumeeiras,
terças, frechais,
na ordem gramatical do encaixe
de caibros, frontões,
empenas.

Mas,
a quem importa
a mão que tece o teto ou
a solidão das paredes?
O rabo-de-andorinha
desperta a viga-mestra da casa.
E sugere a tesoura de pendural
da metáfora.

 

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ENTRE ROMÃS E GRANADAS

(lembrando Clausewitz)

A romã
explode no quintal.
Desvela suas estalactites:
o doce travoso da seiva
ocultando-se em poliedros de sangue.
Coroada por um cálice,
amoldada às nossas mãos
a ferro e fogo,
ei-la:
fruta mortífera.
Transfigurados nome e cor
na dialética da destruição:
de romã à granada,
do grená da alegria ao
cinza da guerra.
Então,
pensar a fruta
ao avesso da fantasia:
as granadas romãs
de árvores pacíficas
sagrando seu rubro sumo
em nossa saliva.

 

 

 

INCÊNDIO
Atear
o fogo
no âmago das palavras
para se transformarem
em girassóis ardentes.
Suas cinzas
curtirão nossa pele
e nem deus tentará
sossegar nosso infinito.
Do borralho brotarão
as planícies de antigamente
onde dormem os trigais
e o sol fustiga
a elegia do solstício.


AVISO

A Ana Cristina Cesar i.m.

reparem
nesse jardim botânico
a esconder-se
num jarro
com desenhos persas
onde uma pequena água
se esvai
em conta-gotas
ou nessas árvores
os galhos da caligrafia
a sussurrarem
aos cílios das janelas
a compaixão
reparem
na outra dor que dói
e nem é essa
a que dispara
como um tiro
ou um dado
ou um corpo
que se perde
entre
os desenhos persas
de um jardim botânico

 

Norões 2 Vitor Fugita set.22