Madrugada.
O menino acorda com o sino da Sé tocando fora de hora.
O alarde dentro de casa mistura-se ao barulho das ruas.
A água invade tudo, chega no pé da cama. Logo lhe vem à cabeça a lenda escoada da cultura indígena. A que conta que debaixo do altar da padroeira Nossa Senhora da Penha, fincado em cima de uma rocha, dorme um peixe gigante. Até o dia em que as torrentes do rio derrubarão o rochedo e o monstrengo despertará o fim do mundo.
A lenda não se cumpre.
Terminada a enchente, tudo continua do mesmo jeito. O ser fantástico cochilando sob os pés da Virgem. E a Terra a girar em torno do mesmo sol de sempre. O que resta é retirar da casa a lama e os bichos tangidos das matas pelas águas.
No “arquivo” da cabeça do menino, o filme da cascavel enroscada no canto da sala. Como se ele ainda aguardasse o instante do bote. Depois dos acontecidos, os pesadelos recorrentes. O trabalho dos dias encarregando-se de colocá-los no seu “lixo” invisível.
Lembranças provocadas por acontecimentos como aquele é o que se chama de “trauma”. A palavra nos chega do grego: ferida. No caso, ferida que nunca sara. Modifica nossas emoções e nos acompanha como uma nódoa a emergir do passado, poluindo o presente.
Penso nisso quando a TV desperta para as chuvas do Recife. É a cidade que os holandeses, no século XVII, construíram driblando as águas. Hoje, em meio a barreiras desabando e famílias destroçadas, parte dela é apenas terra devastada.
Entre as várias reportagens televisivas em torno da catástrofe, a cena paradigma: um homem jovem que perdeu nas enxurradas a mulher e os três filhos. Ele é mostrado apontando as crianças que posam para uma fotografia. Têm entre sete e dez anos. Estão vestidas com a farda escolar. E olham-nos como se nos perguntassem em que lugar se esconde o futuro.
A imagem das crianças agregada à vida na escola sugere que estavam se preparando para enfrentar a luta desigual dos que vivem em morros escorregadios e sentem medo quando a chuva se anuncia. Também desmente a ideia de que o morro é apenas lugar de perigo e pobreza. Nos altos da Região Metropolitana do Recife “habita” (o termo merece aspas) um terço da população.
As catástrofes provocadas pela chuva, persistentes, alimentam inúmeros “cemitérios”. O principal, aquele onde estão plantados os mortos pelos desabamentos e aguaceiros. Mas há outros, pouco conhecidos, espalhados pelos edifícios públicos. Neles “descansam” arquivos de defuntas repartições. São finados estudos e propostas sugerindo mudanças susceptíveis de melhorar a vida dos moradores das chamadas “áreas de risco”. Quilômetros de páginas em torno de programas e estratégias para o combate às repetidas tragédias provocadas pelo capitão Inverno.
O filme daquele homem e seus filhos deveria provocar uma releitura do programa Viva o morro, de 2003, cujo objetivo era “enfrentar” os deslizamentos de barreiras que provocaram “mais de 100 vítimas fatais” naquela década. Agora, menos de 20 anos depois, aquele número foi atingido num único inverno.
Abro a cartilha chamada Acorda, povo, elaborada com a participação de crianças que vivem nos morros. É o último capítulo do Manual de Ocupação do Morro, um dos projetos que integram o programa. Ali estão rabiscos de frases e ilustrações retratando a visão infantil acerca de problemas relacionados com o uso da água no lugar onde vivem. Opinam sobre questões sanitárias (a utilização de água potável, a construção de canaletas para escoamento das águas servidas etc.) e sobre técnicas simples de construção e de proteção dos terrenos com permanente risco de desmoronamento nos períodos das grandes chuvas.
Ouço o que dizem as crianças e fico imaginando que certamente convivem com pesadelos parecidos com o despertar do monstro escondido debaixo do altar da Igreja da Penha. Traumas que não sei se já foram objeto de estudo em anais de psicologia e se os nossos artistas já retrataram, a exemplo da série de ilustrações intitulada Os desastres da guerra, de Francisco de Goya, o artista espanhol para quem o “sonho da razão produz seus monstros”.
A frase amolda-se bem às circunstâncias dos dramas repetitivos de nossos invernos, pois detrás deles escondem-se “monstros da razão”. No quadro de Goya alusivo ao 3 de maio de 1808, eles eram os soldados franceses massacrando as centenas de pessoas que tentavam conter o exército invasor. Nossos “monstros da razão” são de um novo tipo. São tecnocratas treinados para manipular programas de gestão sofisticados, adaptados aos discursos da “modernidade”. Porém, incapazes de olhar o próprio chão. Observam a gestão pública se fosse uma empresa tecida por algoritmos e a “realidade” é o que espelham as telas de seus computadores. Gente que não é capaz de detectar os pesadelos dos que dormem maldizendo os deuses da chuva.
A experiência e o imaginário das crianças, traduzidos com ingenuidade na cartilha que integra o Viva o morro, desvela-nos o que pode parecer óbvio: a água é uma entidade dialética. Às vezes dócil, como a das nascentes e cascatas de pé-de-serra ou a pequena chuva “inconstante e breve” dos cajus do poema de Joaquim Cardozo. Mas, outras vezes, ela é feroz, mesmo em lugares onde quase nunca é percebida. Como no Deserto do Saara, onde os imprevistos nem sempre são frutos do sol ou das tempestades de areia ou das picadas dos escorpiões. Ali, de repente, as águas podem irromper com fúria, trazidas por chuvas caídas em lugares remotos. E tudo vão devastando, levando em seu caudal quem não percebe a tempo seus sinais. Tão agressivas quanto as que todos os anos visitam o Recife e na sua última passagem carregaram os três meninos da fotografia.
Então, o poema:
A UTI DA MATEMÁTICA
A matemática atropela/ a construção do poema./ Há contornos invisíveis/ aos seus ordenamentos./ Não há/ modelos previsíveis/ para o que dentro dói./ Abu Welfa,/ Fibonacci,/ Gauss,/ o menino Évariste Galois/ afogam-se/ na lágrima infinitesimal/ de apenas um./ Debaixo dos catetos/ e da mais perfeita hipotenusa/ desabam os morros do Recife.