Norões Rafael Olinto

 

O Vizinho mora sozinho.

O acaso às vezes nos obriga a um encontro na espera do elevador.

Caminha com dificuldade. A bengala o ajuda a ir até a rua ao lado, onde sempre o vejo com amigos além dos setenta. Irmanados pela cerveja.

Logo que o conheci, puxou conversa. E farejou meu sotaque estrangeiro.

Há um mistério da fonética que faz com que logo descubram de onde somos. Talvez o fato de não conseguirmos atiçar as consoantes ou por tornarmos as vogais um pouco mais brandas.

Falou-me sobre contatos que tivera em meu país. Havia trabalhado numa empresa multinacional naqueles anos de estórias turvas. Fez alusões a um coronel com quem manteve certa amizade e de quem teria “esquecido” o nome.

Naquele dia, despedi-me dele com jeito de quem não buscava intimidade. O tempo aperfeiçoa nosso sexto sentido e nos torna menos incautos. Ou mais sozinhos. A experiência, afinal, é algo que vai sendo amolada pelo tempo. Quem sabe, com a mesma “faca só lâmina” de João Cabral. Vai aos poucos nos polindo. Às vezes, também mutilando.

O Vizinho ainda insistiu nas investidas. Após dois ou três encontros ao acaso no elevador, senti arrefecer a vontade dele em prosseguir conversa. Como eu sempre contornava suas perguntas deve ter percebido estar malhando em ferro frio.

A imaginação levou-me a buscar razões para a mudança. Até que o flagrei bisbilhotando nas caixas postais da entrada do prédio. Depois, soube por um de nossos vizinhos que ele, o Vizinho, já havia sido observado com um pedaço de arame fisgando correspondências introduzidas mais a fundo nos escaninhos. O mesmo que costuma fazer a zeladora, quando algum condômino esquece a chave.

No caso do Vizinho, por certo é mania de alcaguete aposentado: averiguar nomes de novos moradores, a origem das correspondências, faturas com números de telefones.

Coincidência, uma das vezes que nos topamos deu-se na época em que os jornais noticiavam que a covid havia despachado para o inferno um torturador remanescente da era fascista. Era uma das caras mais conhecidas da repressão durante os estertores da ditadura de Franco. Com a chegada da democratização, os prêmios e condecorações dados ao finado da foto por “serviços prestados” acabaram por lhe ser retirados. Descobriu-se ainda que andava envolvido em esquemas de corrupção e em negócios subalternos. Nos seus últimos dias, vivia enclausurado num apartamento do mesmo bairro onde ainda vive gente que ele havia torturado.

No dia da notícia o Vizinho passou por mim como se estivesse escondendo o jornal. Comprei o diário para tentar decifrar o que havia provocado aquele seu gesto inusitado. Ainda na rua, abri as páginas e dei com a reportagem. Era destaque a fotografia de um vulto detrás do vidro embaçado da janela de um apartamento. Meio escondido entre as cortinas, o torturador olhava a rua de soslaio. Cara de rato preso na toca.

Associei a “leitura” da foto ao gesto camuflado do Vizinho. Observei que o registro do homem detrás da janela dizia mais do que todas as resenhas escritas em torno do defunto.

Há um comentário da escritora norte-americana Susan Sontag sobre o quanto a realidade acaba superada pela fotografia. No seu texto, ela oferece como exemplo fotos de torturas praticadas por militares norte-americanos na sinistra prisão iraquiana de Abu Ghraib. Aquelas que levaram o então presidente Bush a fingir-se “indignado”. Como se as sevícias praticadas sistematicamente, tanto ali quanto na base de Guantánamo, não fossem rotina de uma política de Estado.

Se ela tivesse vivido um pouco mais, teria assistido a uma das cenas reais mais impactantes da década passada. Não aquelas documentadas em fotografias, mas as de filmagens tomadas em tempo real. Como a de Barack Obama e o seu staff assistindo de camarote ao massacre perpetrado por forças especiais na residência de Bin Laden. Sentado numa sala de cinema, o presidente acompanha o voo de helicópteros rondando uma residência no outro lado do mundo para perpetrarem um massacre. O “espetáculo” sugere que a “superação da realidade” pela imagem – agora, a imagem em movimento –, estava dando mais um passo na sofisticação daquilo que Sergei Tchakhotine intitulou “a violação das massas pela propaganda política”. Ali, o espectador insignificante vê-se colocado no epicentro de uma cena cujo objetivo é revelar a todos, de forma transparente, o poder de vingança do Estado. Um massacre sem censura ou condenação, tornando-se tão “palatável” quanto a coreografia de um video game. E trazendo para o interior de nossas casas e mentes a banalidade do mal.

A cobertura ao vivo e em tempo integral de tragédias e morticínios em canais exclusivos de grandes empresas de TV abriram nova era. A televisão francesa durante quase dois meses pôs em marcha um canal para registrar detalhes da guerra na Ucrânia, dando-nos a sensação de estarmos na arquibancada de um campo de batalha. Meses antes, nesse tipo de escalada da mídia, a TV espanhola havia transmitido, também de forma intermitente, o avanço das lavas do vulcão de Las Palmas arrasando casas e arruinando famílias.

Em paralelo, personagens e situações criados por jogos eletrônicos vão se tornando cada vez mais próximos dos acontecimentos do chamado “mundo real”. Numa espécie de amálgama entre fantasia e realidade, somos “bombardeados” e nem sabemos que construções ou tragédias podem resultar de tal intoxicação. Se numa neurose, como a do Vizinho, ou na fúria de um jovem dos Estados Unidos massacrando a tiros adultos e crianças de uma escola.

Por uma acrobacia de neurônios, acabei por associar a imagem de meu vizinho de prédio ao torturador levado pela covid. Em seguida, aos textos de uma escritora norte-americana. Em seguida...

Quanto ao Vizinho, a essas horas, deve estar sentado tomando seu chope, sem aparente crise de consciência. Por certo nem se deu conta de que o jornal que levava escondido havia deflagrado em minha cabeça muitos questionamentos sobre nosso comportamento de animal falante. Quem sabe, o mais irracional entre todos os bichos.