Norões Domínio Público via Wikimedia Commons junho.22

Na fila de cima (esq. à dir.): Cheikh Amidou Kane, Laura Alcoba e Vladimir Nabokov; Na fila de baixo (esq. à dir.): Fernando Pessoa e Joseph Conrad 

 


No meio da praça cercada por edifícios, a placa esverdeada com um texto em catalão. Tradução dos versos de Ricardo Reis/Fernando Pessoa:

Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.

Passamos e agitamo-nos debalde.
Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento.


Escuta-se uma algazarra.

São imigrantes construindo suas moradas em árvores tangidas pelo vento da primavera. Pássaros de zona subtropical da família dos papagaios, nativos da
Argentina, Paraguai ou Brasil, agora “residindo” à beira do Mediterrâneo. Aos bandos, anunciam sua presença inusitada, nem sempre bem-vinda. Como os pombos, que tomaram de assalto a cidade, motivando protestos também por terem ocupado ocos de árvores onde vivia uma espécie rara de morcego estudada por biólogos.

Um dos periquitos apanha um garrancho. Tenta equilibrá-lo no bico, ginástica incansável para prosseguir na tecelagem de um abrigo sempre provisório,
nossa permanente condição de bicho. Construir a casa e partir quando chegar o tempo. Ainda que seja quando a morte nela se instale. Tanta acrobacia nos faz pensar que o texto literário é arquitetura feita com os mesmos “tijolos”. Apenas os edifícios resultam diferentes.

Adiante, um grupo de crianças ensaiam cantigas. No banco ao lado, um velho lê um jornal em inglês. Ele está mais atento ao que acontece distante dali do que aos jogos das crianças e aos eventos que ocorrem na avenida próxima, onde “asas coloridas” foram estendidas nas calçadas por homens vindos de outro continente. São os africanos, salvos das águas, fazendo comércio sobre grandes mantas. Bugigangas, tecidos estampados, pequenas esculturas de madeira, tudo o que pode ser recolhido nos instantes de perseguição. Então, as “asas” multicores fecham-se num milagre de pássaros e desaparecem no meio da multidão da grande cidade.

A literatura, como os homens e as aves, também percorre trilhas. Mesmo quando não se move na velocidade do mundo ela emite sinais que descortinam tendências. Tal a “deslocalização” do autor, que cada vez mais incorpora línguas ou temas estranhos à sua própria origem. Eram poucos os que escreviam em
idioma que lhes fosse “estrangeiro” ou tratava realidades distintas da que vivenciavam. Joseph Conrad (1857-1924) ou Vladimir Nabokov (1899-1977) foram
casos de exceção: um polonês e um russo narrando em inglês. Também Fernando Pessoa (1888-1935), o português com versos traduzidos no jardim catalão,
escrevendo poemas em inglês.

No final do século passado, a língua do Outro ou a dualidade linguística também podia ser observada em obras de alguns escritores, embora muitos desses
livros tenham permanecido no limbo das traduções em língua portuguesa. Driss Chraïbi (1926-2007), considerado um dos introdutores da modernidade na literatura do Marrocos, escreveu em francês, entre outros, os seus clássicos Le passé simple (O passado simples) e L’homme du livre (O homem do livro, romance em torno do profeta Maomé). O argelino Kateb Yacine (1929-1989), em seus romances e peças de teatro, valia-se tanto do francês como do árabe dialetal. Foi um crítico da situação dos trabalhadores emigrados, da condição feminina e do peso da religião muçulmana. Seus livros, mesmo os escritos em francês, estão impregnados da tradição literária árabe, a exemplo de Nedjma e de Le polygone étoilé (O polígono estrelado). O senegalês Cheikh Amidou Kane (1928), em L’aventure ambiguë (A aventura ambígua) narra o percurso intelectual do menino Samba Diallo, seu alter ego: da disciplina férrea que lhe foi imposta por um mestre da escola corânica, onde era obrigado a aprender de cor o Alcorão em árabe, até sua formação ocidental na metrópole francesa.

Depois, as ondas migratórias, as facilidades de intercâmbio e a aceleração tecnológica tornaram tão parecidos os lugares e os dramas que já nem tem tanta
importância o local onde ocorrem as narrativas ou nascem os autores.

Os exemplos multiplicam-se.

Laura Alcoba, romancista argentina, escreve em francês ao tratar de temas que têm como pano de fundo o drama de seu país durante os anos de chumbo. Na
sua obra mais recente (Par la forêt, 2022), conta a história de um casal de refugiados argentinos cuja mãe mata dois de seus três filhos num acesso de loucura. Conhecedora do episódio, ela busca a ajuda da filha sobrevivente para reconstituir o drama ocorrido há três décadas e registrar no seu idioma de exílio o inconcebível. A mescla de fatos reais com personagens fictícios culmina numa atmosfera que sugere textos clássicos do new journalism. E faz lembrar, em alguns aspectos, a autora marroquina Leïla Slimani, do romance Chanson douce (Canção de ninar, na tradução brasileira), também escrito em francês, com personagens e cenário parisienses. No enredo, em torno do assassinato de duas crianças pela babá (o livro lhe valeu o Goncourt em 2016), utiliza técnicas não convencionais, como iniciar a escrita anunciando o desfecho do livro que desmonta as contradições entre um casal francês de classe média e uma mulher frustrada no seu cotidiano de trabalhadora doméstica.

Na vaga da “globalização” em que estamos nos afogando, os choques de identidade vão se arrefecendo e os autores se acomodando às constantes permutas culturais. O último agraciado com o Nobel de Literatura, Abdulrazak Gurnah (1948), é representativo dessa transformação das letras. Tanzaniano, vive entre as Antilhas, onde reside sua família, e o Reino Unido, no Condado de Kent, em cuja universidade fez seu doutorado e onde deu aulas durante cerca de três décadas. Numa de suas entrevistas, foi enfático ao afirmar que não ganhamos um prêmio literário em razão de nossa origem, mas pelo que escrevemos.

Tal a dança dos fractais, o mundo está se abrindo de forma acelerada a múltiplos experimentos e alfabetos. Por isso mesmo, a Literatura irá exigir dos autores, cada vez mais, o empenho na criação de uma obra original.