Norões Filipe Aca

 

Matéria do crítico de cinema Celso Marconi, a propósito do cineasta Sembène Ousmane, motivou-me a rever um clássico do cinema africano: La noire de…

No Brasil, ganhou o título A garota negra. Do original, o artigo definido é o que escapa. Quanto ao resto, ninguém emprega o termo “garota negra” para designar uma trabalhadora doméstica, principal personagem do filme. Tanto do ponto de vista da língua, como do contexto da narrativa, a versão mais próxima seria A negra de… Ou, para ser ainda mais fiel à intenção do diretor, A preta de… Além disso, a eliminação das reticências oculta o “suspense” do enunciado (vale lembrar que Sembène Ousmane também era escritor. O filme é adaptação de um conto publicado em Voltaïque, um de seus livros).

O “drible” brasileiro deve ter passado desapercebido do grande público. Lastimável, pois escamoteia a intenção do diretor de incitar leituras diversas. Entre elas, a de enfatizar o racismo entranhado num país neocolonial com forte presença francesa. Além disso, uma “negra”, ou uma “preta”, seguida de preposição indicativa de possessão, implica afirmar que ela tem dono. Ou seja, uma escravizada dos tempos modernos. Há um álibi para a escolha do título no Brasil: lançado nos meados dos anos 1960, em plena ditadura militar, é possível que A garota negra tenha sido mais um dos subterfúgios utilizados para ludibriar a censura de então.

Diouana, nome da principal personagem do filme, mora numa miserável periferia de Dacar, capital do Senegal. Tem sonhos de emigrar para a França. Quer ajudar no sustento da família e conhecer o propalado charme da metrópole. Numa das primeiras cenas em feedback ela é uma das jovens africanas que se encontram numa pracinha, vestidas com o tradicional bubu. É o lugar onde as madames da pequena burguesia francesa recrutam suas “domésticas”.

Ali, acorre uma mulher loura, elegante, buscando uma babá para os três filhos. O contraste entre ela e as mulheres negras é uma das inúmeras ocasiões da película em que somos submetidos aos “choques” provocados por Sembène Ousmane. Trata-se de enfatizar as contradições de seu país, tornado independente apenas seis anos antes da realização do filme. À época, o Senegal tem como primeiro presidente Leopold Sédar Senghor, conhecido poeta da Negritude, celebrado pelos meios literários da França e membro da Academia Francesa. É, no entanto, um dos dirigentes africanos mais subservientes à política da França.

Recrutada como babá, Diouana manifesta sua gratidão oferecendo à patroa uma máscara africana esculpida em madeira, que uma criança negra de sua família costumava utilizar.

A família retorna à França. A jovem aceita acompanhá-los na mudança.

Já vestida à moda ocidental, ruma para o cais onde homens negros carregam um navio com fardos às costas (Sembène Ousmane viveu experiência parecida. Trabalhador portuário emigrado, foi vítima de um acidente no cais do Porto de Marselha por carregar peso em excesso. Durante seis meses de hospitalização, consagrou-se aos estudos e concebeu projetos cinematográficos).

No desembarque, Diouana é aguardada pelo marido da francesa. Mas é a jovem quem carrega a valise e a coloca na mala do automóvel. Durante o trajeto rumo à casa, o patrão faz observações sobre as belezas do país. Ela limita-se a responder Sim, senhor!, antecipando o relacionamento que prevalecerá entre eles.

No apartamento, a dona da casa mostra os aposentos e lhe descortina a paisagem de Antibes e outros pontos da Côte d’Azur. É o litoral chique que a criada africana somente conhecerá através da janela. Além de cuidar das crianças, logo será obrigada a arcar com todos os serviços domésticos. Sem possibilidade de sair do apartamento-prisão, seu sonho de desfrutar da estada francesa se esvai.

A máscara presenteada à patroa torna-se peça decorativa numa das paredes do apartamento. (Nas sociedades africanas, as máscaras são importantes nas cerimônias fúnebres ou de iniciação. Por serem consideradas receptáculos de uma força vital, aqueles que as usam não devem ser reconhecidos. Do contrário, sofrem consequências graves infringidas pelas entidades que representam). No filme, a máscara na superfície branca da parede é uma espécie de “ponto áureo” para onde converge o olhar do espectador. Para Diouana, um objeto ritual ostentado como mero adorno.

Ao longo do tempo, as relações entre a jovem africana e o casal deterioram-se. Num crescendo de tensão, ela finda por desafiar a ordem da residência. Retira as vestes e as sandálias do uniforme de trabalhadora doméstica, repõe seu próprio vestido e os longos brincos, arranca a máscara da parede, tranca-se no quarto. Arruma a valise, olha fotografias, o maço de cartas (lidas e respondidas sempre pelo patrão). Prepara-se para a despedida.

Quando os donos da casa a procuram, irritados, deparam-se com a jovem negra morta, nua, ensanguentada, mergulhada na banheira do casal. Banheira que ela era obrigada a limpar todos os dias com esmero.

Vários flashs do filme levam-nos a episódios alusivos à história da África. Num deles, Diouana, ainda em Dacar, na casa do namorado, avista na parede um cartaz com a foto de Patrice Lumumba, líder da independência e primeiro-ministro do Congo ex-belga, assassinado a mando da CIA. Noutro, ela corre equilibrando-se na balaustrada de um monumento aos soldados senegaleses mortos em guerras sob a bandeira da França.

A cena final é marcada de simbolismos. O patrão vai à África devolver à família a máscara e a valise da criada morta. No barraco da família de Diouana, o mesmo menino que no início do filme brincava com a máscara, coloca-a no rosto e passa a seguir o francês. O homem acelera os passos. De vez em quando olha para trás, assombrado pela pequena entidade mascarada que o persegue. 

(“Porta da viagem sem retorno”, assim era chamada a Ilha de Goreia, na costa do Senegal. Dali, milhares de escravizados foram “exportados” para um Brasil onde mulheres negras vivenciam, ainda hoje, circunstâncias semelhantes às da Diouana da película do mestre Sembène Ousmane.)