Num país africano, o menino de 12 anos avista pela primeira vez um casal de europeus. Está entregue ao seu passatempo favorito: ir à estação olhar o trem. O homem é alto, louro, manchas vermelhas na cara. O menino o observa com tanta insistência, que o alemão, incomodado, logo revida arreganhando os dentes e mostrando o punho cerrado.
A vida do menino segue sem transtornos até que seu pai contrai uma dívida com um comerciante aventureiro e inescrupuloso, e para saldá-la é obrigado a entregar o filho. Durante anos seguidos, Yusuf, principal personagem do livro, irá perambular país afora sob as ordens do homem que lhe disseram ser um tio. A alegria da partida na primeira viagem logo termina quando ele se vê submetido a uma rotina de semiescravidão, em meio a uma natureza selvagem, onde a vida é sem valor. Assim começa o romance Paraíso de Abdulrazak Gurnah, escritor tanzaniano premiado com o Nobel de Literatura de 2021, pela sua “comovedora descrição dos efeitos do colonialismo na África e do destino dos refugiados, no abismo entre diferentes culturas e continentes”. O cenário é o atual território da Tanzânia, país criado após a união de Tanganica (colônia alemã que passa ao domínio inglês na Primeira Guerra Mundial) e Zanzibar (colônia inglesa tornada independente em 1963).
O autor descreve as peripécias do personagem naquela região da África Oriental partilhada pelo colonialismo inglês e alemão do início do século XX. Ali também viceja uma mescla de gente vinda de vários pontos do Oriente, inclusive a família de Yusuf. África bem diferente da imagem estereotipada nos velhos filmes de Tarzan, supostamente habitada unicamente por homens negros e animais selvagens.
A beleza de Yusuf perpassa a narrativa. O jovem é buscado por homens e mulheres naquele meio em que o cristianismo tem pouca influência, a noção de pecado inexiste, as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo são encaradas com naturalidade. Em contrapartida, não saber ler é considerado uma desonra, pois não possibilita o acesso direto ao Alcorão.
O enredo de Paraíso acompanha os vários personagens em suas andanças, vivenciando um comércio itinerante e perigoso. Durante as viagens, o menino tem sonhos estranhos. Num deles, aparece sua mãe transfigurada no mesmo cão aleijado que certo dia ele viu ser esmagado por um trem. Sonho em que vislumbra a imagem da mãe à luz da lua, “coberta pelo lodo de sua placenta”.
O nome do jovem – Yusuf – é uma das “chaves” do romance. Corresponde, em árabe, ao José da narrativa bíblica (José e seus irmãos, aliás, é título de um dos romances de outro Nobel, Thomas Mann, em 1929). Mas, no romance Paraíso, refere-se à 12ª surata do Alcorão. Na surata, Yusuf conta ao pai ter sonhado que o sol, a lua e 10 estrelas prosternavam-se diante dele. O pai responde que Deus havia dado ao filho o dom da interpretação dos sonhos e o aconselha a não contar aquela sua visão aos irmãos, pois lhe desejam o mal.
Paraíso aos poucos vai revelando o que acontece naquele cenário africano, num momento em que todo um continente está partilhado entre grandes potências e um imenso território, como o do Congo, é propriedade de um único homem, o rei da Bélgica.
Os colonizadores europeus enfrentam povos nativos. A exemplo dos Massai, criadores de gado e guerreiros daquela região, tão selvagens quanto os alemães dominadores e sem misericórdia, no dizer de um dos personagens. Indianos, paquistaneses, árabes destacam-se num comércio itinerante, fazendo escambo e assegurando o intercâmbio entre o litoral e no interior, levando novos hábitos e crenças.
O texto mostra a intimidade de Abdulrazak Gurnah com o universo que descreve: história, línguas, cultura do território da atual Tanzânia. Em muitas passagens, ele recorre a palavras ou expressões em suaíli, idioma que é uma mistura de banto e árabe e foi tornado língua oficial de vários países daquela costa oriental africana.
Pela importância no imaginário do menino Yusuf, o trem pode ser observado como metáfora daquele capitalismo selvagem na transição do século XIX ao século XX. O trem, serpente mecânica, interligando mundos até então pouco explorados, transportando para os navios matérias-primas que abastecem as indústrias nascentes do Velho Mundo. Na outra margem do oceano, outros trens cumprem a função complementar de levar às fábricas das metrópoles europeias as cargas que chegam de além-mar. Além de conduzir, dos campos às cidades, os milhares de camponeses transformados em operários mobilizados pelo capitalismo no início de sua expansão.
Émile Zola, nos carnets de anotações para livros como A besta humana, faz estudos detalhados sobre o trem, sua logística e tecnologia de então. O trem é o meio de transporte revolucionário da época. Simboliza a força da máquina a vapor que vai de par com a disciplina regida pelos relógios das estações dos chamados caminhos de ferro.
Nos edifícios das estações ferroviárias, como a visitada por Yusuf no início do livro, há na sua fachada principal o grande relógio. Uma espécie de símbolo da disciplina que começa a desembarcar nas costas do Novo Mundo. Ele é o instrumento-rei que passa a reger todos os ritmos, tanto o da exploração da força de trabalho como o dos negócios dos grandes magnatas.
Nas entrelinhas de Paraíso, percebe-se que o trabalho nos países colonizados, antes funcionando na cadência do grito ou do chicote, vai pouco a pouco ajustando-se aquele universo estudado por Émile Zola ou Karl Marx.
São os fardos de algodão despachados nos portos da África ou da América que alimentam os teares de Manchester, o cenário que serviu à análise das engrenagens do mecanismo minuciosamente descrito nas páginas do livro primeiro de O capital.
Ao findar a leitura de Paraíso, entendemos a feroz ironia contida no seu título.
A África de Abdulrazak Gurnah é bem distante daquela vislumbrada através dos romances de Ernest Hemingway ou de Karen Blixen.
Uma África sem cinema.