Na obra do poeta e matemático Joaquim Cardozo, um só poema sobre o qual é possível identificar local, data e contexto de sua escrita:
Poesia em homenagem a Isidore Ducasse.
O que pode ser intuído a partir de suas entrelinhas? Outros poemas eram decorados ou rabiscados em pedaços de papel. Nem sabemos quantos foram remetidos à biblioteca das estrelas. Uma exegese atribulada, em se tratando de um autor alheio à publicidade e ao provisório. Exemplo: poeta reconhecido, seu primeiro livro foi lançado nos seus 50 anos, editado por amigos.
Que estranho poema, feito em Paris, dedicado a um escritor “maldito”?
A data, embora não assinalada, corresponde ao dia da Assunção de Nossa Senhora, sabida pelo repicar dos sinos da Igreja de Saint-Germain, em pleno Quartier Latin. Como diz o poema:
Agora que os sinos estão saudando o dia da Assunção.
Fazendo as contas, 15 de agosto de 1938. Uma segunda-feira de pleno verão.
Coincide com o período de uma intrigante viagem de Joaquim Cardozo a Portugal e à França, com passagem pela Espanha. Feita seis meses após a instauração da ditadura do Estado Novo. Sete dias de sua breve detenção no Recife por razões de ordem política.
O que faz o poeta durante a sua “fuga”? Mera viagem de passeio, a trabalho ou cumprindo alguma missão pouco simpática ao regime de viés fascista recentemente implantado no país? Quem foi visitado naquele périplo tão pouco comentado na sua biografia?
Embarca num navio da Royal Mail. É a Mala Real Inglesa. De 1851 a 1969, ela assegura a carreira da América do Sul entre a Inglaterra e Buenos Aires, escalas no Rio de Janeiro e no Recife. Num desses navios, também “zarpa” para Portugal um certo Ricardo Reis, personagem de José Saramago.
Tais transatlânticos abastecem os intelectuais dessas cidades costeiras com as novidades culturais da velha Europa. É assim que o Nordeste, o Recife à frente, tem seu próprio movimento modernista sintonizado com o Mundo, com características diferenciadas daqueles do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Autores em voga no dito Velho Mundo são comentados em rodas literárias, entre elas a da esquina Lafayette, Rua do Imperador, em que Joaquim Cardozo é figura de proa. Poetas estrangeiros de vanguarda são traduzidos e divulgados no Diario de Pernambuco.
Ao chegar em Lisboa, Cardozo procura um conhecido matemático português, mas é informado de que o amigo havia sido preso pela PIDE, a polícia política de Salazar. De quem se trata? Em conversa com o poeta português Luís Filipe Sarmento, concluímos tratar-se de Bento de Jesus Caraça (1901-1948). Preso várias vezes, conhecido como o “Matemático da Liberdade”, Bento Caraça é professor universitário, autor de livros teóricos, conhecido internacionalmente. Fundador da Biblioteca do Cosmos, editora responsável pela publicação de centenas de obras de caráter científico. A passagem de Joaquim Cardozo por Lisboa coincide, de fato, com o período de um dos encarceramentos do cientista luso.
20 de junho. O poeta de Signo estrelado deixa Portugal. Ruma de trem para a França. Enquanto atravessa a Espanha, testemunha cenas de rara truculência no país tomado pela Guerra Civil.
Ao chegar a Paris escreve Poesia em homenagem a Isidore Ducasse. Nele, evoca Os cantos de Maldoror, livro do poeta uruguaio-francês, espécie de apologia do Mal. Maldoror é um enigmático e perverso, pode ser interpretado como o mensageiro prenunciador da catástrofe.
Eu vi Maldoror passar com seus anjos malignos,
Eu vi Maldoror passar montado no seu cavalo, seguido do seu buldogue.
De fato, no mesmo dia em que elabora estes versos, o jornal Le Figaro abre manchete anunciando a convocação pela Alemanha nazista de 750 mil reservistas para as manobras de outono. Enquanto isso, na Espanha, as batalhas do Ebro e da Estremadura configuram o desastre da República e o avanço final das tropas fascistas.
A inteligência dialética do poeta, susceptível de encadear elementos de várias esferas do conhecimento, pressente o aproximar-se da Segunda Grande Guerra. Por certo antevê naquele Maldoror um prenúncio àquele momento decisivo para a história da humanidade.
Após ter recebido “um beijo de primavera” trazido pelos rios tranquilos da França (na verdade, estava em pleno verão), ele indaga:
Que faz Maldoror terrível nesta cidade de Santa Genoveva (…)
Agora que os sinos estão saudando o dia da Assunção?
E profere uma sorte de exorcismo:
Maldoror, Maldoror, vai para o mar.
Após suas andanças misteriosas pelas ruas e avenidas de Paris, o autor de Signo estrelado regressa. É o ano de 1940. As perseguições persistem. Acossado pela vigilância policial e pelos invejosos de província, abandona a cidade que começa a ser “pregada à cruz das novas avenidas”, conforme escreve no seu Recife morto.
Dá adeus às suas várzeas, rios e cajus para se tornar o inventor das equações acrobáticas que viabilizaram Brasília. Além do poeta respeitado por Carlos Drummond de Andrade, que confessa ter feito do poema A nuvem Carolina sua “leitura de cabeceira”.
O Maldoror, de Isidore Ducasse, é uma criatura mórbida, demoníaca.
Curioso, Joaquim Cardozo também se vale de um diabinho da luxúria, embora nada tenha do ente maléfico do poeta francês. Seu Asmodeus apenas costuma levantar telhados para prospectar a intimidade das pessoas. No prefácio que escreve ao livro de Manuel de Souza Barros, Década 20 em Pernambuco, esse personagem é identificado à época vivida pelo poeta no seu Recife. Diabinho representativo de um tempo de ação, criatividade e pensamento crítico dos mais instigantes de nossa história cultural.
Às vezes, como agora, os tempos da maldição de Maldoror parecem estar de volta.
Contudo, em meio aos tropeços históricos, o trem de Joaquim Cardozo continua sua viagem rumo ao Céu. Junto a tantos outros, como o amigo Bento José Caraça, buscando um lugar no Universo onde poesia e política transcendam uma fútil acrobacia de palavras.