Na TV, ad continuum, a erupção do vulcão situado na Ilha de La Palma, Espanha. As sofisticadas tecnologias de câmeras, computadores e drones escrevem o caminhar de gigantescas lagartas-de-fogo esgueirando-se montanha abaixo a uma temperatura de mil graus centígrados.
No seu rastejar, colocam abaixo casas, igrejas, plantações, fábricas. As imagens sucedem-se. É, ao mesmo tempo, fascinante e deprimente o desenhar-se da devastação traduzida em figuras hipnóticas. Somos tomados por uma mescla de voyeurismo e impotência. O fascínio pelos fractais dançando à nossa frente, na sua passagem infernal, tudo destroem. As urdiduras de fogo parecem ilustrar acrobacias saídas das equações traduzindo figuras geométricas na sua aproximação da matemática da natureza
Contudo, diante da beleza que mata, nada a fazer.
A não ser registrar a catástrofe.
Registro como o de um jovem e futuro escritor de 17 anos, cerca de dois mil anos atrás. Mora com a mãe e o tio numa residência aristocrática com vistas para a baía de Nápoles. De repente, no meio da manhã, são avisados acerca de uma nuvem esquisita. Vista ao longe, ela assume a forma de um cogumelo gigante. Ou a de um pinheiro cuja folhagem cinzenta se espraiasse, tornando-se cada vez mais densa. Uma grande “árvore” que não cessa de crescer. Ameaçadora.
O tio aquece-se ao sol do verão. É chamado para observar o acontecimento. Historiador e naturalista, havia consultado cerca de 2 mil obras para estruturar a monumental Naturalis Historia, composta de 37 tomos. Além de cientista, é homem de armas. Almirante, comanda a frota ancorada no Cabo Miseno, naquele Golfo de Nápoles, região estratégica do Mediterrâneo.
Ao reparar o horizonte, a poucos quilômetros de distância, conclui que a nuvem acinzentada, com laivos de fogo, nada tem a ver com o que havia visto após anos de viagens em lugares que visitou e em outros onde combatera nas suas campanhas imperiais. Tomado pela curiosidade do pesquisador, decide tomar notas antes de partir. Precisa estudar aquelas formas de cores diferentes. Provavelmente, resultado da estranha luta entre ventos adversos, frios e quentes, que findam por provocar fendas vulcânicas e outros fenômenos ditos naturais. O acontecimento estaria a confirmar as especulações de teoria contida na sua obra enciclopédica.
Tem pressa.
Convida o sobrinho a embarcarem juntos. O jovem encontra-se entregue aos estudos e prefere cumprir outras obrigações ditadas pelo tio. Decisão que o tornará, duas décadas depois, o futuro cronista da tragédia anunciada.
Antes de empreender viagem numa embarcação de menor porte, o tio recebe o aviso. Parte da população do outro lado da baía pede socorro. Mobiliza a frota sob seu comando e zarpa em direção contrária aos barcos em debandada que tentam escapar das chuvas de pedras e lavas cada vez mais intensas.
Cruzar a baía naquela circunstância é ir de encontro aos conselhos. Embora face a um perigo maior – escreve o sobrinho vinte anos depois –, o tio tinha tamanha liberdade de espírito que, “à medida que percebia algum movimento ou alguma imagem extraordinária, fazia observações e as ditava”.
O almirante ordena que a embarcação seja dirigida ao lugar onde mora um de seus amigos em busca salvamento. Ao chegar, constata o quanto todos haviam sido tomados pelo pânico. Busca consolá-los e até mente ao explicar que os fogos avistados ao longe são fogueiras de camponeses abandonando casas em chamas. Fingindo tranquilidade, toma banho. Em seguida, ceia e recolhe-se para dormir. Sua respiração ofegante e ruidosa chama a atenção. É um homem gordo, asmático. Ao acordar, conversam para decidirem entre permanecer em casa com o risco de desabamentos ou saírem e enfrentar gases e pedras e cinzas. O sobrinho escreve que havia vencido o melhor ponto de vista, o do tio: o de retirar-se e evitar que as pedras e cinzas findassem por derrubar o edifício em que se encontravam. Observa, ao longe, a devastação provocada pelos terremotos, inclusive a grande quantidade de ovelhas mortas pela aspiração de gases tóxicos. Constata que em qualquer lugar já era dia claro. Mas, ali era noite escura. Segundo ele, “uma noite mais densa e negra do que todas as noites já acontecidas”.
Em seguida, o escritor e almirante desce à praia. Àquela altura, o mar enfurecido impede qualquer navegação. Então, estende um lençol sobre a areia. Pede água. Bebe, deita-se, mas logo é obrigado a levantar-se tal o odor de enxofre e a iminência do fogo. Dois jovens escravos tentam colocá-lo de pé. Ele desmaia.
Ao raiar do dia, seu corpo é encontrado intacto, mais parecendo “uma pessoa descansando do que um defunto”.
Cerca de dois mil anos separam os acontecimentos do Vesúvio descritos nas duas missivas de Plínio dirigidas a Tácito (o autor dos Anais sobre a vida dos Césares) e a recente erupção do vulcão de La Palma, Espanha.
A exegese da correspondência do autor latino por especialistas levanta inúmeras questões em torno da carta sobre a morte de Plínio, o Velho, importante personagem do Império Romano. Questiona-se, o que é verossímil ou mero artifício literário ou intenção apologética. Por exemplo, como alguém morto sufocado sob uma chuva de cinzas tenha permanecido como se descansasse, quando vítimas de um cenário idêntico são descobertas sempre com mãos crispadas e posições refletindo um final angustiante?
Além disso, carta escrita trocada entre dois personagens importantes do mundo romano, duas décadas depois dos acontecimentos, poderia servir tanto a veleidades literárias quanto à busca de exemplaridade moral ou para ressaltar o caráter estoico de seus autores.
O que importa?
A evolução das linguagens, os recursos da ciência e os aparatos da tecnologia para registro e enfrentamento de fenômenos da natureza pouco mudaram da nossa impotência.
Entre as cartas de Plínio e o ecrã da TV exibindo o vulcão de La Palma, o mesmo rastro de fogo escorrendo em direção ao mar.
E os versos de Fernando Pessoa:
Um muro de nuvens densas
Põe na base do ocidente
Negras roxuras pretensas.