Um fio ligando o provisório ao eterno.
Talvez seja esta, em síntese, a poesia de Joan Margarit (1938–2021), um dos grandes poetas de duas línguas: castelhano e catalão.
No falar ao outro enquanto íntimo, sua escrita tem o aceno de um W. H. Auden. O ferro de um tempo de homens marcados pelo exílio e a Guerra Civil durante a qual ele nasceu e o poeta inglês foi testemunha.
Não por acaso uma de suas imagens favoritas é a do trem.
Era da Estación de Francia, Barcelona, de onde partiam os flagelados do conflito espanhol rumo ao país vizinho. No poema Expresso García Lorca, o poeta assassinado em Granada chega sob a forma de um trem noturno. Imagem curiosa que irmana Margarit a um Joaquim Cardozo (1897–1978) também tocado pela figura recorrente da locomotiva enquanto figuração da morte.
O clarão desse trem de Margarit, escritor e arquiteto, ilumina coisas e acontecimentos como partes de “alguma ordem maior”. Conforme sua confissão de fé expressa, entre outros, no poema sobre o:
PAVILHÃO MIES VAN DER ROHE
Teu estilo, já definitivo:
a luz como parte de uma ordem maior
encontrarás no cubo de pedra cinza, perto
de uma mítica e rude base de travertino.
As paredes de vidro e mármore verde e tetos
planos e brancos constroem a nobreza
do espaço em Montjuic, há muitos anos:
aqui te espera para conversar
entre árvores, detrás de umas lágrimas
tão suntuosas quanto a chuva.
O TEMPO PASSADO
De madrugada, na praça vazia,
a água de bronze do chafariz
escorrendo paciente e solitária,
igual ao olhar daquele homem
vagando com as mãos nos bolsos.
Parava num banco vazio,
junto a uma árvore, numa esquina.
Aproximava-se ao chafariz: a água
espelhava uma cabeça de cão
que o fitava com olhos tristes.
Então, as mãos soltas,
girando uma gasta coleira de couro,
voltava à porta de casa.
E sentia-se o ranger tranquilo
que fazem as chaves de madrugada.
Hora em que os cães mortos
passeiam com seus donos.
CASA DE MISERICÓRDIA
O pai fuzilado.
Ou, como diz o juiz, executado.
A mãe: a fome, a miséria,
a procuração escrita à máquina por alguém:
Saudações ao Vencedor, Segundo Ano Triunfal,
Solicito a Vossa Ex.ª deixar meus filhos
nesta Casa de Misericórdia.
O frio da manhã contido numa petição.
Hospícios e orfanatos tão duros,
mais dura ainda a intempérie.
A verdadeira caridade dá medo.
É como a poesia: um bom poema,
por mais belo que seja, há de ser cruel.
Não há mais nada: a poesia é agora
a última casa de misericórdia.
A PARTIDA
É a minha madurez, idade dos pactos
impossíveis, tempo vermelho do perigo
para os homens maduros e jovens solitárias.
Idade do adultério e do olvido
jogadas sem esperança, idade fria
da última partida consigo mesmo.
Jogar duro, sem esperar a sorte,
não mais enfrentar um jogo de azar.
É o tempo de uma partida de paciência
com as cartas marcadas pelo passado.
FECHANDO O APARTAMENTO DA PRAIA
Já está limpo e arrumado.
Janelas e armários trancados.
Nada foi esquecido em cima dos móveis.
O quarto, a cama feita,
a mesa de cabeceira e o retrato
da moça com os olhos iluminados
por um sorriso.
Sozinha.
Todo o inverno escutando o mar.
EXPRESSO GARCÍA LORCA
Vais entrando lentamente na plataforma:
o ferro e a força
da máquina diesel, das rodas
reluzentes cortando o frio.
Uma lua que nunca cantaste,
a que segue os trens,
iluminou à noite teus caminhos.
Todos os teus assassinos já são muito velhos.
Ou mortos. Como tu, retornando à madrugada
sob a forma desse trem noturno.
As sombras da guerra, dentro de mim,
vêm do grande medo da infância.
Aquelas pessoas em armas
poderiam ser os rostos que ora vejo
sob as abóbadas da Estación de Francia.
Uma memória de ferro de trens militares
que partiam à noite,
sem luzes, rumo ao front de Teruel.
Velha força do ódio que se oculta
como uma caveira sob a pele.
Poderiam ser aqueles rostos, aqueles olhos.
Velha cidade, velhos trens.
De tudo desconfio.
O ORÁCULO
Eras uma criança com uma jarra num matadouro,
à espera para comprar sangue.
Num chão de cimento, uns bancos
e cabras enfileiradas
ofertando o pescoço, atadas, berrando.
Sob uma delas, negra e macia,
colocaste a jarra. Um homem, sem pressa,
armado com um chuço, degolou-a.
Como em Delfos, a mensagem
do jorro vermelho derramando-se na jarra
com o mesmo som que ouves agora,
foi obscura e difícil. Tardaste
quarenta anos para interpretá-la.
Somente agora o fazes, enquanto mijas sangue.
UMA LITERATURA
Às cinco horas de uma fria manhã,
Josep Pla, seis anos antes de eu nascer,
abriu a janela para ouvir
o primeiro rouxinol.
“Parecia desmaiar de cansaço
cada estrela”, escreveu.
Eu ainda era parte da escuridão.
Calava em silêncio na noite, poderia dizer.
Porque, ao lê-lo, fui tocado
como se estivesse evocando alguma lembrança.
Hoje ele é quem cala na noite,
enquanto caminho por sua prosa
que um dia talvez será para mim
a única geografia de minha estima.
O único lugar para uma pátria.
O mais parecido a uma literatura.
JOHN COLTRANE
Lembrei-me das tuas mãos escuras
no saxofone reluzindo subterrâneos.
De onde sai essa música,
esse vazio que sopras
e fala com minha solidão?
A morte era, aos teus olhos, de raça negra.
Ela ainda toca as mesmas peças,
à noite, na cidade. Até que a aurora,
como um sax dourado, é refletida
nos copos de músicos fracassados.
LER POESIA
Ao terminar esse livro de poemas
de Paul Celan, não sei o que me disse,
nem o que me quis dizer. Nem mesmo sei
se pretendia dizer-me alguma coisa.
Os poetas herméticos têm medo.
Ponho a mão sobre o livro fechado
e juro rechaçar para sempre esse temor.
Porque a poesia, que às vezes principia
como paisagem aonde chegamos à noite,
sempre acaba como um espelho
em que lemos os próprios lábios.
Que sentido tem um recipiente vazio?
Silêncio e vazio são para os anjos.
Pelo medo do lixo ou
pelo lixo do medo.
TÚNEL
Rodeiam-no o bosque e o céu azul.
A luz penetra na rocha
como pelo cano de uma arma.
Cercado pela escuridão úmida e quente
— um espaço enorme e acolhedor —, recordo
o vagão da lembrança iluminado no túnel.
Desde a infância ainda ressoa
a ternura de ferro daqueles trens
bruscos e duros como o conhecimento.
Este saber que ora me permite
olhar sem pesar aquela boca
da claridade à qual me aproximo.
>> ORIGINAIS EM CATALÃO
PAVELLÓ MIES VAN DER ROHE
Tens, ja, un estil definitiu: la llum,/ com part d'ordres més grans, la trobarás/ al cub de pedra grisa, vora el mite/ d'un rude basament de traverti./ Parets de vidre i marbre verd, i sostres/ plans i bancs construïren la noblesa/ de l'espai, fa molts anys, a Montjuic:/ aqui t'esperará per conversar/ entre les arbres, darrere dúnes llàgrimes/ tan sumptuoses com ho és la pluja.
EL TEMPS PASSAT
De matinada, en la plaça buida,/ l’áigua de bronze de la font/ rajava pacient i solitària/ igual que la mirada d’aquell home/ que vagava amb les mans a la butxaca./ Es deturava a un banc sense ningú,/ vora d’un arbre, en una cantonada,/ fins a arribar devant la font: a l’áigua/ hi veia emmirallat un cap de gos/ que se’l mirava amb ulls tristíssims./ Llavors, treia les mans de les butxaques,/ i fent girar un collar gasto de cuiro,/ tornava al seu portal./ I se sentia la remor tranquilla/ que fan les claus de matinada,/ l’hora en què els gossos morts/ passegen amb els amos.
CASA DE MISERICÒRDIA
El pare afusellat./ O, com el judge diu, executat./ La mare, la miseria i la fam,/ la instància que algú li escriu a màquina:/ Saludo al Vencedor, Segundo Año Triunfal,/ Solicito a Vuecencia deixar els fils/ dins de la Casa dque siguie Misericòrdia// El fred del seu demà en una instancia./ Els orfenats i hospicis eren durs,/ però més dura era la intempèrie./ La vertadera caritat fa por./ És como la poesia: un bon poema,/ per bell que sigui, ha de ser cruel./ No hi ha res mès. La poesia és ara/ l’última casa de misericòrdia.
LA PARTIDA
És la meva tardor, l’edad dels pactes/ impossibles, el temps roig del perill/ per a hommes grans i noies solitàries./ L’edad l’adulteri i de l’oblit/ Jugats sense esperança, l’edat freda/ de l’última partida amb un mateix./ Cal jugar dur, sense esperar la sort,/ perquè no es tracta, ja, d’un joc d’azar./ És el temps de fer l’últim solitari/ amb les cartes marcades pelo passado.
TANCANT L’APARTAMENT DE LA PLATJA
Ja està net i endreçat./ Els armaris tancats, com les finestres./ No ens bem descuidat res damunt dels mobles./ El dormitori amb el llit fet,/ la tauleta de nit amb el retrat/ de la noia amb els ulls il-luminats/ per un somriure./ Tot l’hivern sola i escoltant el mar.
EXPRESSO GARCÍA LORCA
Vas entrant a l’andana amb lentidud:/ ets al ferro i a la força/ de la máquina dièsel, a les rodes/ lluentes tallant el fred./ Una lluna que mai no vas cantar,/ la que segueix els trens,/ t’ha il-luminat les vies a la nit./ Tots els teus assassins ja són molts vells./ O morts com tu, que tornes a l’albada/ sota la forma d’aquest tren nocturn./ Les ombres de la guerra, dins de mi,/ vénen de la gran por de la infantesa./ Aquella gent armada/ podrien ser aquests rostres que ara veig/ sota les voltes de l’Estació/ de França, una memòria de ferro/ d’aquelles trens militars sortint de nit,/ sens llums, cap al front de Teruel./ Vella força de l’odi que és oculta/ talmente l’ossada de la calavera./ Podrien ser aquests rostres, aquests ulls./ Vella ciutat, vells trens, de tos malfio.
L’ORACLE
Ens tu d'infant, que dus un pot i esperes/ en un escorxador per comprar sang./ Damunt del terra de ciment hi ha uns bancs/ amb les cabres esteses en fileres,/ el coll ofert, lligades i belant./ Has col-locat el pot sota una d'elles,/ negra i suau. Un home, sense presses,/ armat amb un punxó, l'lha degollat./ Com succeïa a Delfos, el missatge/ del raig vermell caient a dins del pot/ amb el mateix soroll que escoltes ara,/ va ser obscur i dificil. Has trigat/ quarenta anys a poder-lo interpretar./ Ho estàs fent ara, mentre pixes sang.
UNA LITERATURA
A las cinc d'una freda matinada,/ en Pla, sis anys abans de néixer jo,/ obria la finestra per sentir/ el primer rossiniol./ “Semblava esvairse fatigada/ cada estrella”, va escriure./ Jo només era part de la fosca/ - callava en la nit, podríem dir,/ perquè, en ellegir-ho, m'ha corprès/ com si estés evocant algun record./ Avu és ell qui calla en la nit/ mentre camino per la seva prosa,/ que potser serà un dia per a mi/ l'única geografia que m'estimi./ El sol lloc que podria ser una pàtria./ El més semblant a una literatura.
JOHN COLTRANE
He recordat les teves mans moradas/ sobre el saxo lluent de soterranis./ D'on surt aquesta música,/ el buit que va bufar la teva boca/ i que parla amb la meva solitud?/ La mort era, als teus ulls, de raça negra./ Encara toca les mateixes peces/ de nit a la ciutat, fins que l'aurora,/ com un saxo daurat, es reflecteix/ als vidres de tants músics fracassats.
LLEGIR POESIA
En acabar aquest llibre de poemas/ de Paul Celan, no sé ni què m’ha dit/ ni què em volia dir. Ni tan sols sé/ si pretenia dir-me alguna cosa./ Els poetas hermètics tenen por./ Poso la mà damunt del llibre ja tancat/ i juro rebutjar per sempre aquesta por./ Perquè la poesia, que a vegades comença/ sent un paisatge on arribem de nit,/ acaba sent sempre un mirall/ on un està llegint els propis llavis./ Quin sentit té el contenidor si és buit?/ El silenci i el buit són per als àngels./ Per a la por de les escombraries/ o les escombraries de la por.
TÚNEL
El rodegen el bosc i el cel blau./ La llum s'enfosa dins la roca/ com pel canó d'una arma./ Envoltat per la fosca humida i càlida/ -un celler enorme i protector- recordo/ el vagó il-luminat dintre del túnel/ Des de la infància ressona encara/ la tendresa de ferro d'aquells trens/ bruscos i durs com el coneixement./ Aquest coneixement que ara em permet/ mirar sense recança devant meu/ la boca de claror a la qual m'acosto.