Às vezes, o cinema serve para observar o que não costumamos assistir no filme do cotidiano. Sobretudo quando se trata de Paterson, de Jim Jarmusch.
Uma simbiose sutil entre cinema e literatura.
O título é, ao mesmo tempo, nome da cidade cenário + do personagem principal + do título de um livro do poeta William Carlos Williams.
A ideia de uma tríade.
Trilha simples e um enredo que poderia ser considerado monótono. Mas a chave está nos detalhes. No mecanismo sofisticado de entrelaçar letras + imagens + música, num andante cantabile subjugando o espectador.
Paterson (Adam Driver) é um jovem motorista de ônibus. Na cabine, nos intervalos de suas idas e vindas, escreve poemas. A película sugere ser aquela a cidade onde teria nascido WCW. O poeta era de Rutherford, mas o livro findou por convertê-lo no mais ilustre “habitante” de PATERSON, a mítica cidade do filme e do livro.
Paterson rabisca seus poemas num caderninho presenteado pela mulher. Ela (Golshifteh Farahani), jovem sensível que toca violão e tem aulas de dança, encoraja o companheiro a publicar suas anotações poéticas. O terceiro personagem da casa é Marvin, um cachorro. (De fato, chamava-se Nellie, da raça buldogue inglês, que morreu pouco depois das filmagens e até recebeu homenagens póstumas pelo seu desempenho).
O poeta tem a vida de um estadunidense tranquilo de classe média. À noite, frequenta o bar perto de casa. De vez em quando, entre um copo e outro, envolve-se em querelas de clientes. A monotonia das circunvoluções diárias ou imaginárias do poeta são acompanhadas pela lente de Jim Jarmusch.
De repente, a catástrofe rompe a rotina do pequeno apartamento do casal:
O cão (a cadela) é flagrado destroçando o caderninho de poemas.
Deprimido, Paterson sai de casa desolado. Senta-se num banco frente à bela cascata debaixo de uma ponte. Um lugar propício para meditação zen ou para driblar teoremas de amor. Busca transportar o pensamento para um norte desconhecido ou, quem sabe, mergulhá-lo no espírito das águas. Elas, as águas da cascata junto ao parque da cidadezinha, hão de segredar-lhe alguma coisa susceptível de mitigar seu desespero.
De repente, um estranho aproxima-se do poeta chofer. Um japonês, bem-vestido, ares de intelectual (seria uma homenagem de Jim Jarmusch ao cineasta Yasujiro Ozu, um de seus “mestres”?). O forasteiro achega-se devagarinho. Pede licença, senta-se junto ao poeta e puxa conversa num inglês macarrônico. Conta que viera até PATERSON para conhecer o lugar onde viveu William Carlos Williams, seu poeta predileto.
Conversam pouco, mas as tomadas sugerem ter havido algum contato magnético entre os dois. É marcante uma confissão do visitante: não aprecia poesia traduzida, pois lhe causa a sensação de tomar banho vestido de impermeável.
Antes de tomar rumo misterioso, ele presenteia Paterson com um caderninho de páginas em branco. E parte como um verso perdido num final de poema.
Do filme, mergulhar no livro homônimo: PATERSON.
Leitura estranha. Pede uma atenção especial. Uma espécie de palimpsesto de poemas entrecortados por episódios de jornais, cartas ou arquivos ligados ao passado da cidade-homem. Na primeira versão, o livro é dividido em quatro partes, explicitadas pelo poeta: 1) O passado da cidadezinha, PATERSON, observada como uma espécie de matriz do poema; 2) Aspectos do dia a dia do lugar; 3) a busca de uma linguagem susceptível de dar mais ênfase aos vários aspectos da cidade/poeta ganhando corpo com a imaginação e 4) O rio que corre após a queda d’água, via sacra de vários episódios rememorados, incitando o poeta ao diálogo com o seu tempo, em quase desafio. No final, o homem/o poeta ressurge no mar, após o rio desembocar e perder-se nas grandes águas. Com sua cadela, chesapeake bay de caça, ele ruma em direção a Camden, onde o poeta Walt Whitman viveu os últimos anos de sua vida.
Às quatro partes, editadas em 1946, 1948, 1949 e 1951, WCW acrescentaria, sete anos depois, uma quinta parte. Ao enviar a nova versão do livro ao editor, justificou-a em razão das mudanças infringidas ao autor e ao mundo. O universo de PATERSON também precisava ser atualizado.
Após a morte de William Carlos Williams, em 1963, foram encontradas algumas páginas de uma sexta parte que o poeta deixou inacabada.
Ele teve publicado ainda em vida um último livro, Pictures from Brueghel and others poems, de 1962. Mas é PATERSON o seu testamento poético. Nele, o homem é observado como semelhante a uma cidade, percorrendo — e percorrido — por caminhos que “podem ganhar corpo” em qualquer lugar. Paterson (nome escolhido para dar título ao livro) é uma cidade de Nova Jérsei, a 18 km de Nova Iorque. Por ela escorre o Rio Passaic, caindo em turbilhões por uma colina de pedra a falar a linguagem das águas. Quem a decifrará? pergunta o poeta, “a partir daquela cumeeira que é um lábio de rocha”? A cascata que “fala”, respondida pelo poema.
A cidade — o poeta? — tem cabeça esculpida sobrepujando o rochedo, pérolas nos tornozelos, cabeleira com flores de macieira e duas vezes por mês recebe mensagens do papa e do filósofo Jacques Barzun. É como se episódios históricos se mesclassem à vivência íntima do autor, numa inovação de linguagem e de estrutura em busca de uma épica em miniatura.
Uma épica, segundo o crítico norte-americano James Breslin, diferente da escrita por T. S. Eliot que nos confronta a algo próximo ao colapso da civilização ocidental. Enquanto a de WCW sugere que a desintegração pode liberar forças para a composição de algo novo. E acrescenta: “Ele confronta, repetidamente, a
selvageria da sociedade contemporânea, mas ainda afirma a existência de uma semente criativa. O fim de Eliot é o começo de Williams.”
Em tempos de desassossego, um livro. Um filme.
PATERSON.
(Quando estava escrevendo este texto soube da morte do amigo José Luiz da Mota Menezes, historiador e arquiteto. E avisto sua imagem trespassada pelos rios do velho Recife, fazendo o percurso de uma PATERSON tropical).