DO SANTA CRUZ
Referências totêmicas podem levar aos longes.
E certos eventos provocam choques. Semelhantes ao descrito por Walter Benjamin, nas suas “impressões singulares”. A visão efêmera da mulher desconhecida, que nos seduz e logo desaparece no burburinho da metrópole. Como a personagem do soneto de Baudelaire, À une passante. Cometa que se esvai, mas continua a brilhar no obscuro subúrbio do inconsciente
O menino do interior nunca havia visto cancha gramada, arquibancada, juiz de futebol fardado. Partida Náutico x Santa Cruz: timbu contra a cobra coral. Nem era preciso padrão de uniforme para identificar os times. Branco x negro. Uma pulsão o leva a torcer pela equipe da serpente tricolor.
Mais tarde, lê reportagens sobre o racismo nos Estados Unidos: brancos do Ku Klux Klan matando negros. Escuta o canto de Billie Holliday. O das árvores das quais pendem estranhos frutos. Guarda o eco do verso desaguado pelo poeta Langston Hughes: I, too, am America! E, sem saber o porquê, aqueles cantos, poemas, reportagens parecem-lhe associados àquela partida.
Tempos depois, volta à cidade. Observa uma urbanização moldada pelas regras do jogo daquela tarde de domingo. O estádio do Náutico, pequeno, contido por moradias em bairro com saneamento, ruas calçadas. O do Santa: grande, imponente, entronizado em meio a favelas e contemplando ao redor um canal abarrotado de lama, dejetos, pesadelos.
O racismo sutil do futebol traz-lhe a desconfiança sobre as teorias do brasileiro “cordial”. Como se o jeito “condescendente” da casa-grande sobre a senzala bordado em nossas mentes estivesse, de repente, sendo desconstruído pelas engrenagens do real, desafiando os velhos artifícios da sociologia.
CAMUS E JUNINHO PERNAMBUCANO
A partida na TV entre o Paris Saint-Germain e o Olympique de Lyon sugere um simulacro de videogame. Estádio sem gente nas arquibancadas. Em vez de ritmo de samba, a impressão de uma valsa vienense tocada em máxima rotação por minuto. Quanto às falas assépticas de comentaristas, nem parecem rimar com a cadência do jogo. Lembram a monotonia do latim da velha missa do domingo.
Logo a conversa em francês muda de tom. Cede a observações em torno de uma entrevista rara no mundo do futebol. Parecido somente com os discursos de Sócrates (não o grego; o do Corinthians). Juninho Pernambucano fala ao jornal inglês The Guardian: um jogador intelectual discorrendo sobre os mecanismos estranhos ao mundo do esporte. Temas como as feridas abertas de um Brasil onde morrem por ano milhares de George Floyd. Ou o desmonte e a deformação sofrida pelo futebol, cujas engrenagens da ganância afetam as mentes dos melhores atletas. Juninho analisa os movimentos de um universo onde Neymar vira manchete sem mesmo se dar conta de ter sido convertido em jogador-mercadoria. Vendido em bolsa como o arroz e o feijão de nosso infortúnio.
Ídolo do Olympique de Lyon, vivendo na França há anos, Juninho lembra a história de outro jogador famoso: Albert Camus, Nobel de Literatura em 1957. Quando jovem, o autor de A peste jogava num time da Argélia, seu país. Carreira de futebolista frustrada pela tuberculose. Tão pobre que escolheu ser goleiro, posição na qual era possível economizar chuteiras. Mais tarde, consagrado no mundo das letras, confessaria que toda a moral conhecida havia aprendido nas verdadeiras universidades que frequentara: terrenos de pelada, palcos de teatro. E sobre seu ingrato papel de goleiro, a resposta do filósofo: “É quando estamos no meio da floresta que percebemos o quanto é difícil!”
DE MARADONA
No Youtube, Maradona e seu desespero em campo.
Um touro arremessando-se contra as traves, bólido azul-celeste dominando a geometria da verdura.
Que importa se nos transmite a imagem do drama, roendo as unhas nos cantos do gramado e, de vez em quando, sumindo dos noticiários? Seu futebol é jogado como um tango traduzido em passes de agonia. É, ao mesmo tempo, a tragédia do Che gravada no braço e o Deus da torcida do La Boca.
Imagino-o em algum lugar, sorrindo da última vitória da Argentina sobre um Brasil com a grama dos estádios cheirando ao podre das grandes negociatas e eco de tiros da matança de jovens em favelas próximas ao Maracanã.
DO BOCA
Dirigindo, costumava escutar os comentários futebolísticos de Ralph de Carvalho e um outro comentarista de sotaque portenho. E pensava: se críticos escrevessem sobre literatura como alguns comentaristas discorrem sobre o futebol, a vida literária teria outro encanto. Na Folha de Pernambuco, descubro quem é o outro: Horácio Cometti.
Crescido perto da Bombonera, memória de computador, detalhes de partidas, teorizações em torno de táticas de jogo. Torcedor do Santa Cruz. E do Boca Juniors, no qual jogou como quarta zaga do infantil, até que um problema de visão o afastou da cancha mais tradicional de seu país.
Depois, os dribles aprendidos no gramado passaram a ser utilizados na guerrilha urbana. Um outro gênero de faltas, ataques, finalizações. Jogo de morte dos anos de chumbo. E a decepção ao ver companheiros torcendo pela Argentina durante a Guerra das Malvinas, quando tantos haviam sido enterrados em cemitérios clandestinos ou jogados ao mar em aviões da Força Aérea de seu país.
Desembarca no Brasil, acolhido por uma prima, Irma Alvarez, atriz no Terra em transe de Glauber Rocha. Há anos Horácio Cometti vende empanadas na Praia de Boa Viagem, onde conheceu o jornalista Léo Medrado. E das conversas sobre futebol findou convidado a integrar o programa que me ajudava a enfrentar o desesperador tráfego do Recife.
O POEMA NO POEMA
Qual o lugar do futebol no poema, da poesia no futebol?
Releio os poemas de Vinicius de Moraes e de Sérgio Castro Pinto sobre Garrincha. Além desta consagração da pelada escrita por Mauro Mota:
Jogo noturno
Ilumina-se o campo
para o futebol na aldeia.
Aparece a lua branca,
Feita de algodão e meia.
Meninos poetas jogam
com a bola da lua cheia.