Noroes Rafael Olinto setembro.21

 

 

Até o momento de me calçarem com os tênis amarelos não acreditei estar morto.

Havia dito a Fátima o que fazer quando eu morresse. Não me incomodaria quanto à roupa. Mas, não esquecesse os tênis amarelos.

Ela riu, pensando tratar-se de brincadeira. Até concluir: eu havia falado sério.

No hospital, pressenti não haver mais tempo para adiar providências. Dei-lhe instruções sobre documentos, contas domésticas, relação das despesas com os filhos. Avisei-a para entregar à minha mãe uma das pastas guardadas no cofre. Com papéis, chips e as chaves.

— Dentro de um “livro” oco, o Don Quixote de la Mancha. Comprado em Madri, naquela feira de coisas antigas. Poderia complicar o Talavera.

O Talavera desconfiava que eu estava documentado. Numa situação extrema, tipo mandado de busca, se eu me visse envolvido bem poderia usá-los em minha defesa. Nunca duvidou de minha discrição. Nem ousou ultrapassar o limite da decência, o silêncio sem cumplicidade. Mas, quando o informei sobre a gravidade de minha doença, dois meses antes de ser hospitalizado, perguntou-me de forma reservada, mas enfática:

— E os papéis? Estão organizados? Em lugar seguro?

 

Depois, sua última visita ao hospital. Eu, quase sem fala. Tubo de plástico nariz adentro. Ficou um bom tempo de costas, olhando através da janela do quarto. Certamente fabulando como iria conseguir alguém sério para gerenciar suas negociatas às custas de tão pouco.

A enfermeira de plantão entrou para verificar o nível do soro. Enquanto providenciava a troca da bolsa de plástico, cumprimentou-o, surpresa.

— Bom-dia, doutor Talavera. O senhor por aqui?

Ele sorriu ao se sentir reconhecido.

— Tudo bem? E a família?

Não a conhecia, mas tinha fórmulas adaptadas às circunstâncias.

Sua “sabedoria política” vinha de longe. Desde o avô. Contrabandista, emigrou para o Amazonas e virou negociante em garimpo de diamante. Uma das filhas, a mãe do Talavera, engravidou de um estudante peruano, futuro herdeiro da fortuna do velho. Daí, o sobrenome do neto a dar ares de nobreza tropical à família num lugar onde nome estrangeiro tem peso de passaporte.

 

O meu cérebro ainda faz ligações intermitentes.

Se tivesse sido acometido de um infarto, isso seria impossível. A doença deixou-me, pelo menos, a possibilidade de ir morrendo aos poucos. O consciente ainda lateja, após o chamado “último suspiro”. Consigo “escutar” vislumbres de conversas ou uma unha a roçar a madeira da tampa do caixão. Uma barata na lixeira arranhando um copo de plástico.

Até na morte, as baratas…

Percebo trechos de comentários de gente vinda à encomendação do corpo. Alguns, elogiosos. Outros, irônicos. Sobretudo quando se referem às coroas enviadas pelo Talavera:

— Você viu o que escreveu? "Ao grande amigo", "Colega exemplar". Filho da p.! Foi por conta desse tipo de gente que a doença deu cabo do defunto. Honesto demais para conviver com essa escória!

— É isso aí. É nos enterros que a arte da hipocrisia se exerce com absoluta perfeição.
Não consigo saber de quem, as vozes. Aos poucos vão se distanciando. Como se meu cérebro estivesse consumando seu processo de paralisia.

— Como será meu “ritual de iniciação”? Talvez num lugar que seja apenas distante, espécie de uma terra dos “longes”. Uma “terra” vasta, de textura parecida com a tela de uma smart TV, acinzentada, brilhante? Haverá um botão aguardando quem o acione, um gesto em falso podendo nos conduzir ao Inferno?

Para mim, “Inferno” é um estado de alma. Como o do dia de meu primeiro encontro com o Talavera, numa comemoração de fim de ano. Deixou-me a impressão de alguém cuja alma estaria suspensa à mão do Diabo. E o jeito de quem iria me convidar a embarcar em algum de seus “negócios”.

Sabia da minha amizade com o “chefe”, político que não ouso declinar o nome. Tentei despistá-lo. Pedi licença, fingindo responder a uma chamada. Havia combinado uma artimanha com a secretária. Quando eu a atendesse e logo desligasse seria um aviso para ela retornar a ligação, permitindo-me inventar um pretexto para me livrar de uma situação incômoda.

O telefone tocou. Fingi atender. Disse a Talavera que tinha pressa em sair para recolher meu filho à saída do colégio. Dona Fátima havia tido problemas com o automóvel…

Ele agarrou meu braço.

— Cinco minutinhos!

Soou-me como sinal de alerta, mas fui levado a ouvi-lo. Minha resposta poderia ficar para depois.

— Fui convocado pelo “chefe” para participar da campanha. Precisa de alguém entendido em finanças, contabilidade. Essas coisas! Alguém de absoluta confiança. Sabe como é…

— Vamos conversar!

Saí correndo, numa pressa fingida.

 

As vozes diluem-se. Quem sabe logo mergulharei numa espécie de “grande lago mudo”. Igual ao do verso do Fernando Pessoa, aquele poeta sempre citado. O mesmo da escultura num café de Lisboa servindo de cenário para fotografias de turistas. O Talavera nunca leu porra nenhuma, mas fez questão de mostrar as várias fotos dele abraçado ao poeta. Até me trouxe de presente um jogo de xícaras de café com a gravação minúscula do trecho de uma tal Ode marítima.

Li e não entendi nada:

Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,

Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,

Olho e contenta-me ver […]

Agora, imagino-me penetrando em algum “cais deserto”. De tênis amarelos. O mesmo usado naquele 8 de julho de 2014, quando ele me convidou para fazermos uma caminhada. Quando me contou das conversas com o “chefe”, o andamento das emendas parlamentares, a necessidade de organizar as planilhas para enfrentar as eleições. E, de repente, jogou aquela isca, rindo:

— Você é o cara!!!

Foi quando começou minha doença…

 

Sinto um pequeno tremor, como se as rodas do carrinho porta-caixão estivessem se chocando aos pedregulhos do caminho para o crematório. Logo meu “eu” em pó será levado à morada perpétua: caixa de cimento com uma cruz, os dizeres e coroas de praxe.

E depois?

Talvez o grande lago mudo, do Fernando Pessoa.

Um lugar driblando o Infinito.

Onde espero não existir ninguém parecido com o filho da p. do Talavera.