Acordo para mais um dia de mortos.
Leio o tweet de um amigo: “Ele não é coveiro, que é uma profissão essencial. Ele é um assassino”. A referência tem endereço certo. É estopim para lembrar o dia em que fui ao Cemitério da Consolação em busca de um personagem que me havia tocado, após ter assistido ao vídeo de um programa de Fernando Gabeira.
O entrevistado: escritor e coveiro, com dois livros publicados. Nossa conversa, que acabou por não acontecer, seria sobre a relação entre enterrar gente e desencavar personagens de ficção. Afinal, o mundo dos finados pode ser tão instigante para o escritor quanto o dos navios de Conrad ou o dos peixes de Hemingway.
Manhã paulista de pouco sol. Desço a Consolação. Bato na porta da administração do cemitério. Indago sobre o autor de As núpcias do escorpião. A resposta vem a corte de bisturi. É comum indagarem sobre a sepultura da Marquesa de Santos ou o mausoléu da família Matarazzo com seus requintes suntuosos e adereços barrocos. Mas o homem é tomado de surpresa por estar diante de alguém em busca de um funcionário fora do padrão. Diz não ter conhecimento se a pessoa procurada tem livro publicado. O coveiro já nem trabalha mais ali. Havia sido transferido para outro cemitério. Além disso, inútil procurá-lo. Pouco tempo após deixar a Consolação, havia morrido num acidente de trânsito. O encarregado tenta apagar a imagem do colega morto enquanto homem de letras. Ali, era coveiro. Ponto.
Pesquiso informações em notas de jornal, matérias esparsas, vídeos. Chamava-se Francisco Pinto de Campos Neto, conhecido como Tico. Dois livros de contos: Elas etc. e As núpcias do escorpião. Não chegou a terminar o curso de Letras na Universidade de São Paulo, mas se tornara revisor de texto em publicações conhecidas. Depois, ajudante de caminhão, porteiro de boate, pintor de parede, sabe-se lá o que mais. Vivendo sem regras, desemboca na rua como boa parte dos gênios que não suportam peias. Após inúmeras internações, deixa o vício e faz concurso para coveiro. Certamente imaginava o cemitério um lugar habitado por munícipes que não reclamam nunca, como escreve Graciliano Ramos num de seus relatórios, quando prefeito de Palmeira dos Índios.
Mesmo naquele mundo de silêncio, os chefes não lhe dão trégua. Não aceitam vê-lo “parado”, lendo ou escrevendo nos intervalos entre enterros. Recusa executar tarefas que não são de sua alçada. Precisa de tempo para fazer o que gosta desde menino e a vida lhe tolhe: escrever.
Descubro num jornalzinho de Taboão da Serra a notícia: Tico morrera aos 57 anos, atropelado na BR-116, às 9:20 da manhã, do dia 14 de outubro de 2015. Na matéria, a foto de um cartaz anunciando uma peça inspirada no seu As núpcias do escorpião. Junto à foto, o texto do conto Primavera atrás do muro. Como epígrafe, uma frase do poeta Ledo Ivo:
Nada tiveste na vida além de chuva e desejo.
Divido a leitura da narrativa com um amigo, o escritor Pedro Salgueiro. Peço opinião. Pedro comenta ter gostado demais “dessas nesgas de esperanças da velhice, mesmo que ilusórias…”.
O conto:
Numa clínica de idosos, um homem doente, preso a uma cadeira de rodas. Olha através da fenda de um muro de tijolos vermelhos. Percebe uma dança de sombras no chão do pátio vizinho. Uma criança brinca e, de repente, é chamada por uma voz de mulher: Samuca!!!
Uma sirene avisa o final das visitas. O homem freia a cadeira de rodas e, antes de ser levado ao quarto, imagina-se mirando através do buraco do muro, com o binóculo invertido, episódios passados. No microcosmo imaginário vê desfilar várias cenas de sua vida. Fixa-se numa delas, cujo personagem é um menino, o mesmo nome da criança que brinca do outro lado da parede. O Samuel de antes, o da cena vislumbrada, está frente a uma mulher “iluminada na tarde”. Sentada num degrau, ela raspa as pernas utilizando um pincel de madrepérola que deixa cair. O menino a observa enquanto brinca com um trator de madeira carregado de areia…
(A surpresa do final fica por conta do leitor do Primavera atrás do muro)
Volto ao Cemitério da Consolação.
Caminho entre fileiras de túmulos, como se estivesse revivendo o vídeo da entrevista. O Tico tem o jeito e a escrita corrosiva daqueles escritores alternativos dos anos 1970. Não são poucos os intelectuais que mergulharam em paraísos artificiais enquanto o mundo embarcava em tragédias como a Guerra do Vietnã ou a da América Latina tomada pela sanha de torturadores.
Tico sabia que cemitério é o negativo do filme da sociedade em que se vive. Um amigo meu contava que o cemitério era um dos primeiros lugares que visitava nas cidades onde iria residir. Entre as alamedas que dividem túmulos de homens “famosos” de famílias “importantes” e as lousas mal-acabadas dos deserdados, ele conseguia ir decifrando o “quem é quem” dos vivos, num percurso alternativo aos antigos catálogos telefônicos. Nesse tipo de passeio, aparentemente fúnebre, colhia informações sobre a vida da cidade, uma “aula de Sociologia” que o levava a descobrir o que se movia por trás daquelas urnas funerárias. Observar o mau gosto das dedicatórias, os nomes em dourado e as datas nos túmulos diziam mais sobre os vivos do que as conversas ou notícias de jornais. E concluindo:
— Na maioria das vezes a pompa da “última morada” é inversamente proporcional à honradez ou à compaixão “cristã” de seu morador. O cemitério é o retrato invertido do mundo dos viventes.
(No vídeo que me foi enviado por Gabriel Alves, filho de Tico, o autor de As núpcias do escorpião vaga entre os jazigos do Cemitério da Consolação. Não teve prêmios, nem o olhar dos críticos ou do mundo acadêmico sobre suas obras.
Uma passagem de um de seus contos antecipa o que lhe aconteceria naquela manhã de outubro, numa periferia de São Paulo:
Assim é a vida. A decisão (se é que há talante em relação a isso) sobre a hora — certa ou errada — de atravessar a rua… de fazer o gesto. Toda escolha, de um modo ou de outro, é fatal.)