Noroes Rafael Olinto junho.21

 

{O cenário:

Um colégio de meninas dirigido por freiras.

Uma gincana angaria fundos para a construção de uma piscina olímpica.

O colégio dividido em grupos. Cada um tenta obter o máximo de recursos, traduzidos em sacos de cimento.

Um caminhão entra no portão. É aplaudido por umas poucas alunas. A maioria estranha a manifestação. A quantidade de sacos trazidos da fábrica do pai de uma delas ultrapassará os pontos do grupo que lidera a gincana. As alunas da 6a série, até então à frente, recolhem-se constrangidas a uma das salas de aula.}

 

A irmã Gretel, encarregada da logística, tem pressa.

Passa pela capela, hesita em deter-se para a genuflexão de costume. Atende a um chamado urgente da madre superiora. Nossa Senhora do Carmo a escutará mais tarde, na cela, pensa.

No corredor que desemboca no pátio, duas alunas conversam. Ela pressente um movimento de disfarce. Palavras perdidas:

— De família boa!

— Ele é um pão!

Ao contrário da madre Herta, a irmã Gretel é flexível e sorri.

— Fazendo a revisão? — pergunta, apressada, fazendo-se de desentendida.

— Prova de matemática, irmã! — responde a aloirada, farda bem passada.

 

Irmã Gretel bate na porta do final do corredor.

A placa dourada: Diretoria.

Zwischen!

Madre Herta costuma deixar escapar palavras em alemão. Pede informações sobre a gincana, a contabilidade da coleta de fundos. Reafirma que a construção de piscina daquele porte é importante para o colégio manter o prestígio de educandário de elite.

Abre o projeto com o cronograma de execução da obra. A construtora pertence ao pai de uma das alunas. O projeto é uma doação, mas o custo da construção será elevado e o colégio terá de arcar com a maior parte das despesas. A gincana mobiliza as alunas, filhas de pais de classe média alta. As doações, em alguns casos, poderão ser abatidas nas declarações de imposto de renda.

A irmã Gretel examina as planilhas mostradas pela madre.

— Tudo está organizado. Mais umas semanas e vamos conseguir o que falta.

— Que classe está na liderança?

— A 6ª série. As meninas fizeram um grande esforço. Lideradas por uma aluna exemplar. A senhora sabe de quem se trata!

— É sobre isso que quero lhe falar!

A campainha soa o toque para o jantar. As duas seguem para o refeitório. Três moças, uma delas negra, aguardam as ordens. As tais “mocinhas” vivem nas dependências junto da clausura. Vieram do interior, famílias pobres, frequentam os cursos gratuitos da noite e cuidam de tudo, da cozinha, servem como copeiras. Vestem saia azul, blusa branca. Touca. Da parede, o Cristo as olha com ar compungido.

As duas religiosas estão à mesa.

Madre Herta faz um gesto de mão para que as ajudantes se retirem.

— É o assunto da aluna! Às vezes, Deus escreve por linhas tortas. Santo Agostinho comentou que Ele era o autor de todos os bens. E não fez as coisas iguais, mas cada coisa é boa por si mesma. Faço meus cálculos. Penso sobre o que deve ser melhor na contabilidade Dele. E lhe pergunto: para Deus, é melhor sacrificar alguém de Seu rebanho se isso for importante para Ele? Ou não fazer nada?

— Penso, madre, que o sacrifício faz parte de nossa vocação. O exemplo é o próprio Cristo!

— Chegamos à conclusão de nossa conversa. Você sabe qual grupo deveria receber o prêmio! A aluna, além das qualidades intelectuais, não poupa esforços para liderar as colegas. Até na rifa foi seu grupo o que mais arrecadou. Mas fui procurada pelo pai da Cristina, a da 5a série. Além de doar todo o cimento ainda ajudará em algumas despesas extras. Numa condição!

— Qual, Madre?

— Que o prêmio seja dado ao grupo da filha!

 

A noite seguida à chegada do caminhão foi mal dormida pela irmã Gretel. Acorda cedo. Perturbada por um sonho. Estava em casa, na cidadezinha à beira do Reno, erguida entre ramos de choupos. As janelas do quarto têm pequenas cortinas de renda. No vidro de uma delas vê passar o rosto de Kurt, o antigo namorado que emigrou para a Argentina à procura do pai. Ele lhe manda um beijo. De repente a cabeleira ruiva de Kurt transforma-se numa espécie de lagarto flamejante. Acorda assustada. Passa as mãos na cabeça. Logo se dá conta que ela está completamente raspada. É a disciplina da ordem, para banir a vaidade. Benze-se. Debulha devagarzinho o terço para afugentar os pensamentos a desembarcarem como trechos de um filme. Imagina escaramuças de algum diabinho como aqueles gravados na pedra de uma ermida situada na colina atrás da casa dos pais.

 

Madre Herta deixa de lado as planilhas, a planta da piscina. Dirige-se à irmã Gretel:

— Preciso saber como andam os preparativos, calendário das competições, resultados das classes, quais as alunas com melhor desempenho. E uma informação importante para lhe dar. O pai assumiu tudo para a filha ganhar o prêmio!

O valor dos sacos de cimento sobrepuja notas de classe, arrecadação de rifas, resultados do vôlei e todas as metas alcançadas pelo grupo da menina da 6ª serie.

 

O hábito da madre cheira a suor e mofo. Certa vez, ao passar entre um grupo de alunas a irmã Gretel ouviu uma delas comentar a higiene da madre superiora.

Quanto a ela, não se incomoda com aqueles odores. Foi criada numa granja, afeita aos naturais de gente e de bichos. No verão da Alemanha, o calor fermenta o feno e os dejetos. Legiões de moscas assomam à cozinha da casa onde a mãe fabricava manteiga na batedeira, um cilindro de madeira com um furo por onde passa um bastão. Imagina aquela horda de moscas como a reprodução em miniatura das legiões infernais do catecismo.

Antes da comunhão diária, no confessionário, irmã Gretel conta ao assistente espiritual acerca da chegada do caminhão e do sonho libidinoso.

Ele a aconselha a rezar a penitência: os mesmos dez padre-nossos e as dez ave-marias. Sai frustrada do confessionário. Aguardava penitências mais severas.

 

No refeitório, as duas freiras conversam.

Uma das copeiras acorre com a sobremesa, os cafés.

Madre Herta tem pressa.

— Ao trabalho! Finalmente, o prazo da piscina vai ser cumprido à risca!

Em casa, a líder da 6ª série chora a injustiça.

O pai cancela a matrícula.

 

(No pátio, a sineta toca chamada.)