Noroes Guilherme de Lima maio.21

 

 

— Todo poder é necrófilo! Na busca de autopreservação, necessita “instrumentalizar” os mortos. Afinal, são eles os que costumam lhe dar vida.

É o que me disse um amigo, com sua irreverência francesa, ao comentar a ideia do governo de seu país de transferir os restos mortais do poeta Arthur Rimbaud (1854–1891) para o lugar onde estão sepultados os “grandes” de França.

E arrematou:

— Dessa vez, o defunto Arthur Rimbaud explodirá o Panteão!

Poucos dias depois, a ideia do evento suscitou polêmica, tanto da parte de admiradores como da família do poeta. E o governo francês findou por desistir da programação. O presidente Macron, empenhado no evento midiático, deu a palavra final. Para não ir de encontro à vontade da família, os restos mortais do poeta permaneceriam no túmulo em Charleville-Mézières, cidadezinha a alguns quilômetros da fronteira belga.

As notícias sobre o poeta Arthur Rimbaud levaram-me a uma viagem durante a qual pude avistar, antes de pousar em Áden, paisagens que ele certamente percorreu. Da janela do avião, um território lunar, desenhado com sinuosidades estranhas. Deserto, onde, por alguma trilha, deve ter passado o antigo viajante, o fugitivo de si mesmo.

E logo, a aterrissagem em Áden, cidade cor de barro, cercada de montanhas azuis, mesquitas e edifícios bizarros, à beira do Mar Vermelho. No seu cais atracou o navio que trouxe o poeta. Vindo de Chipre, último lugar de suas andanças antes do desembarque ao lado de padres de batina, funcionários com capacete colonial e aventureiros como ele.

Ao chegar, o autor do Le bateau ivre já era também “um outro”. Busca trabalho e engaja-se numa agência comercial. Um novo degrau na sua via de extravagâncias. Ele é o próprio “barco bêbado” do poema. Impossível imaginar o motivo que o trouxe. Nem ele mesmo sabe. O que busca, escreve nas Cartas do vidente, é chegar ao desconhecido “através do desregramento de todos os sentidos”.

Após ter vivido a Literatura, decide que ela não mais lhe fascina, nem os “céus cinzentos de cristal”. Apesar de ter sido o alquimista das letras francesas e delas ter extraído aquele ouro cujos reflexos poucos alcançariam. Porque no território do poema fez de tudo. E mais cedo do que todos.

Suas transgressões não têm limites: nem o formalismo das letras, nem as normas reacionárias de então. Sem as amarras da "conveniência", na nova estação terrestre prova do que havia. Masca o khat, cujas folhas lhe proporcionam o “barato” dos paraísos de Baudelaire. E o sidr, o mel medicinal de abelhas tão singulares quanto os povos que circulam naquele mundo. Porque ali tudo se mescla, da embriaguez da mística dos sufis à sensual beleza das etíopes.

Seu tino de gênio percebe que o mundo “primitivo”, no qual vai penetrar com a ambição e o faro de explorador, começa a sofrer transformações drásticas. Dez anos antes de sua chegada, a abertura de um canal inicia mudanças no panorama do comércio mundial e a promove novos empreendimentos. O Mediterrâneo pede passagem ao Mar Vermelho e é hora de o desregramento da poesia dar lugar ao risco dos negócios. A imensa obra do Canal de Suez sinaliza o rumo de sua navegação inquieta.

Decide perseguir os números e cifras da Fortuna. Da venda de café ao tráfico de armas, nada lhe é interdito. Desiste de continuar batendo o ponto numa empresa colonial, junta o que pode e zarpa para onde a riqueza aponta uma via mais generosa do que os versos. Atravessa de navio o Golfo de Áden, depois 20 dias através do deserto de África e chega ao destino: a cidade de Harar.

Tem pouco mais de vinte anos e tudo abandona do mundo dito “civilizado”. Como se estivesse à procura do estado místico de filho de sol, penetra por uma das cinco portas da cidade secular. Cada uma delas é protegida pelo túmulo de um santo. Harar, na Etiópia, situada num planalto cercado de terras áridas, é uma cidade do século XIII, dita das 100 cores e das 99 mesquitas. Muçulmana em meio a um mundo cristão ortodoxo, tudo nela respira a religiosidade dos sufis. Seus muros e edifícios obedecem a dimensões ditadas pelos números místicos do Alcorão. Cada esquina lembra alguma solicitação da crença do Profeta. Ruas estreitas. Uma delas é chamada Da Reconciliação, pois ali ninguém pode cruzar o Outro sem se ver obrigado a cumprimentá-lo ou ter de pedir licença. Se for inimigo, há de haver um perdão ou um arreglo. Alá fará o resto.

Harar é encruzilhada privilegiada de rotas comerciais entre África e Ásia. Um dos raros pontos ainda intocados pela Europa predadora. Ele, o único morador estrangeiro do lugar. Logo domina os idiomas dos nativos, dorme ao relento, veste-se mal, não quer fotografias. A única que resta, supostamente dele, mostra um homem envelhecido precocemente, ar de europeu maltratado pelo clima. Nas suas excursões vai sendo curtido aos poucos pelo sol inclemente que beira os 40 graus. Em pouco tempo, transforma-se numa caricatura do belo jovem boêmio e genial que fazia fremir os meios literários de Paris.

Na correspondência dirigida aos familiares, o que solicita não são obras literárias, mas livros ou equipamentos técnicos susceptíveis de ajudá-lo a explorar o que for possível naquele mundo tão estranho quanto sua poesia de antigamente. Curioso, nos textos de juventude ele já afirmava que era preciso ser absolutamente moderno.

O poeta de gênio acaba por se tornar um europeu com mentalidade de colonizador. E paga caro a fortuna que consegue juntar (avaliada pelos biógrafos em 600.000 euros de hoje) antes de regressar à França. Estropiado. Moribundo.

Perna amputada, roído pelo câncer, o viajante perpétuo morre aos trinta e sete anos. E convertido. Dopado e com dores atrozes, na correspondência trocada com a irmã Isabelle, confessa acreditar no milagre da vida eterna.

(As tentativas de transformar num grande de França o “filho primitivo do sol” não deram certo. Mesmo a dormir no seu pequeno cemitério de Charleville, Arthur Rimbaud acabou por suscitar seu mais emblemático ato de subversão:
Explodir o Panteão!)