Noroes Guilherme de Lima abril.21

 

1. POEMA DAS COLUNAS DE SANGUE

Outubro de 1929.

O poeta Federico García Lorca encontra-se em Nova Iorque. Testemunha o desespero de milhares de pessoas que perderam seus haveres no crack da Wall Street. Pela primeira vez na história do capitalismo um abalo sísmico derruba não apenas as ações das grandes empresas. Ela esvai, sobretudo, a crença de que os mecanismos da economia rodam com a tranquilidade de um automóvel Ford, objeto de desejo. De repente, algo acontece como a visita de Sansão ao templo cujas colunas não resistiram à sua força inexplicável.

O biógrafo de Lorca, Ian Gibson, comenta que, na correspondência enviada aos pais, que viviam em Granada, o poeta relata o que testemunhou. Durante sete horas a fio, ele planta-se no olho do furacão para captar o sentimento daquele 24 de outubro fatídico, conhecido como a “quinta-feira negra”. A multidão apinhada diante da Bolsa de Valores é uma manada em desespero. Ali, o autor de Poeta en Nueva York testemunha a morte de alguém que se lança do alto de um edifício. É apenas um, entre as centenas de suicídios que se sucedem em poucas horas, decorrência do inesperado desastre do mundo financeiro.

O poeta registra:

“A máscara bailará entre colunas de sangue e números/ entre furacões de ouro e gemidos de operários parados/ que uivarão noite escura por teu tempo sem luzes/ Oh! Selvagem América do Norte! Oh impudica! Oh! Selvagem/ estendida na fronteira da neve! […].”

Denúncia poética do “liberalismo” apregoado como o mais natural e possível caminho para a Humanidade.


2. O POEMA DA MANCHA NO LIVRO


Após dez anos de ausência, encontro meu amigo e poeta Orley Mesquita. Na Casa da Cultura, ele retira da gaveta de sua secretária um livro pequeno. Na capa, um homem com a calça molhada de urina, preso pelo braço por um policial munido de cassetete. O livro é o Noticiário, de Alberto da Cunha Melo. Os poemas me causaram mais impacto do que a imagem da capa.

Surgia, naqueles anos — e todos nós sabíamos disso — um grande poeta brasileiro. Quando ele, Alberto, fez sua última viagem rumo à estação do Céu, eu estava em Nantes, num evento organizado pela Maison de la Poèsie. Pediram-me para ler um poema de sua autoria. Escolhi um dos meus favoritos, Os emigrantes. Quando terminei a leitura, escutei, no silêncio da sala, um leve rumor. Como um voo de pássaro ou uma folha caindo no desvão do poema. Lembrei-me do dia em que encontrei o poeta Alberto Cunha Melo, na Biblioteca Pública do Estado, onde trabalhava. Falamos de seu Noticiário, de nossas leituras poéticas. E, claro, das Odes de Horácio, um de seus poetas preferidos. Na parede, emoldurado, o salve ao seu lugar de trabalho. O poema dele, Seção de obras raras:

“Aqui, todo tomo é sagrado,/ e espanado pelos pincéis/ (folha após folha, verso a verso)/ das sacerdotisas fiéis;// aqui, as larvas, entre os gênios,/ afogam-se no nitrogênio;// aqui, procuram seu rincão/ as cópias únicas dos sonhos/ que não tiveram reedição;// aqui, o tempo nunca passa,/ nem termina sua devassa.”


3. O POEMA DA FLOR-ESTRELA


Filho de um pintor, sua aspiração era tornar-se músico, de preferência maestro. Mas teve que estudar Filosofia para ser professor e ganhar a vida.

Um dia de primavera, deitou-se no chão, em plena campina, num lugar próximo da Linha Maginot, fortificação militar edificada nos anos 1930, na fronteira entre a França e a Alemanha. Avista algo que o fascina. Uma flor estranha, uma flor-estrela. É o dente-de-leão, que os franceses chamam pissenlit. Quando está seca, essa flor assume um formato peculiar, parecido com a imagem do covid-19.

A forma complexa da Taraxacum officinale leva o jovem a refletir sobre a reprodução sistemática de certas estruturas. A partir dessa composição poética da Natureza, ele tricoteia o fio de um pensamento e concebe uma das teorias mais influentes do século XX: o estruturalismo.

Depois, visita o Brasil e convive com povos indígenas: Bororo, Cadiuéu, Nambikwara… Registra tudo: desenhos corporais, falas, mitos, músicas, culinária, estruturas de parentesco.

O rapaz do dente-de-leão: Claude Lévi-Strauss, o antropólogo de Tristes tropiques.


4. A POESIA DA DOBRA DO SONHO


No texto O homem de Porlock, Fernando Pessoa comenta o poema Kubla Khan, do poeta inglês Coleridge. O episódio foi comentado por Borges no ensaio El sueño de Coleridge, em 1952, mas já havia sido tratado pelo poeta português no nº 2 da revista Fradique, Lisboa, em 15 de fevereiro de 1934.

Segundo Pessoa, depois de ingerir um “anódino” — ou ópio — Coleridge adormece. E tem um sonho extraordinário, acompanhado de certas “expressões verbais”. Após despertar, o poeta inglês começa a transcrevê-lo, sendo interrompido por um desconhecido, que ele apelida O homem de Porlock. Porlock é o nome da vila costeira, em Somerset, vizinha à aldeia onde reside. Interrompido na escrita, o texto fica incompleto, reduzido a fragmentos.

Fernando Pessoa denomina a composição de Coleridge de “quase-poema”, numa frase intencionalmente contraditória em seu artigo: “Esse quase-poema é dos poemas mais extraordinários da literatura inglesa”. Tal declaração revela o fascínio exercido pelo “poema” sobre Pessoa, que considerava a literatura inglesa a mais importante entre todas, à exceção da grega. O idioma inglês lhe era tão familiar quanto o português e o principal instrumento na sua profissão de “correspondente estrangeiro em casas comerciais”.

É curioso que Coleridge, diferentemente de Poe, não faça parte da relação de poetas que exerceram influência literária sobre o autor de Mensagem. Talvez porque O homem de Porlock seja um trabalho que se insere nos escritos de Fernando Pessoa acerca da realidade transcendente (comunicação onírica) e não daqueles escritos em torno de poesia ou de crítica poética. Pouco importa. Para Fernando Pessoa, o poema Kubla Khan é isto: “O princípio e o fim de qualquer coisa espantosa, de outro mundo, figurada em termos de mistério que a imaginação não pode humanamente representar-se, e da qual ignoramos, com horror, qual poderia ter sido o enredo”.