Sensação estranha a de um livro cujo texto nos seduz e, ao mesmo tempo, impele-nos a nos desfazermos dele o mais rapidamente possível. É o que acontece com Nuestra parte de noche, de Mariana Enríquez, escritora pertencente ao que se convencionou chamar a “nova narrativa argentina”.
Nas mais de seiscentas páginas, seu enredo transcorre entre 1960 a 1997, período marcado pela sangrenta ditadura argentina. A autora não faz apelo a relatos confessionais ou a mergulhos intimistas de quem vivenciou épocas sombrias. Mesmo assim, reserva-nos nessas páginas uma parte da escuridão que nos cabe.
De que trata o livro? Juan Peterson tenta livrar o filho, Gaspar, seis anos, das garras de uma sociedade secreta da qual é médium. A mãe da criança, Rosario, morta em circunstâncias estranhas, é descendente de uma das famílias de origem inglesa seguidoras de uma Ordem cujos membros pertencem à “elite” e cultuam a entidade cognominada Oscuridad. A seita originou-se na África, de onde foi trazida para a Inglaterra e, em seguida, transplantada para a Argentina por colonos britânicos. O pertencimento à Ordem torna seus membros susceptíveis de alcançar a imortalidade. Um deles é o pai de Rosario, conhecido cirurgião que operou Juan quando ainda adolescente e acometido de graves complicações cardíacas. O mesmo Juan que, mais tarde, casaria com Rosario.
Os três personagens — Juan, Rosario e Gaspar — formam a tríade central do livro. Contudo, em torno deles, há uma miríade de personagens que se entrelaçam. O fio da narrativa desata-se numa espécie de odisseia de pai e filho. No primeiro dos seis capítulos, intitulado As garras do Deus vivo, é relatada, de forma minuciosa, uma viagem de automóvel dos dois, de Buenos Aires até um lugar nas imediações das Cataratas de Iguaçu, fronteira entre Argentina e Brasil. Um lugar exótico, sinistro, onde residem os ricos pais de Rosario. Ali, ocorrem episódios escabrosos e sangrentos promovidos pela seita e seguidos com naturalidade pelos membros da família. Juan, o Deus Dourado, é aguardado para participar de uma dessas cerimônias, nas quais se desenrolam cenas inusitadas de maldade e terror. Alto, louro, ele tem uma aparência doentia e um corpo marcado por grandes cicatrizes, sequelas das cirurgias realizadas pelo sogro. É um personagem que teria sido inspirado em Heathcliff, espécie de anti-herói do conhecido romance O morro dos ventos uivantes, da escritora inglesa Emily Brontë.
Em Nuestra parte de noche há um átomo de desassossego em cada página. Mesmo assim, temos gana de prosseguir. Penetramos num universo que nos parece absurdo e, ao mesmo tempo, plausível. Aos poucos, de forma insidiosa, vamos encontrando no abjeto o “justificável”. Ou, no fantástico, o “verossímil”. A razão disso é o fato de a linhagem soturna do livro inscrever-se numa literatura do terror, mas com traços diversos dos que costumam caracterizar a tradicional escola anglo-saxônica, marcada pelo espiritismo da época vitoriana. A obra de Mariana Enríquez, embora já tenha sido enquadrada, de forma questionável, com o carimbo de “realismo gótico”, busca um horror “plausível”, inserido no contexto de uma América Latina onde cultos estranhos, cruzes nas estradas, cadáveres de torturados ou crianças roubadas às famílias são fatos recorrentes de nosso universo.
A própria Mariana Enríquez define sua relação com essa vertente tenebrosa das letras como um reflexo da vida anônima e impiedosa das grandes cidades da qual foi próxima. Ela, nascida num bairro periférico de Buenos Aires, viveu próxima de um mundo impregnado pela droga e pela pandemia da Aids. É desse território periférico que também pôde observar as vísceras de uma elite conivente com a praga que impregnou todos os vãos da alma de seu país: a ditadura militar, distinguida pela matança, a tortura e desaparecimento de seres humanos. Tal estigma é percebido nas entrelinhas. Não sob forma de denúncia, mas como recurso para induzir o leitor a acatar um jogo entre fascínio e repulsa. Como se corpos em fossas clandestinas, homens afogados em rios ou crianças enjauladas e torturadas fizessem parte de um ambiente “normal”.
Por isso, ao correr da leitura, vamos sendo tomados por uma espécie de mal-estar, envolvidos com personagens aos quais tudo é permitido e o amor é algo debilitante. Fazem parte de uma sociedade que Mariana Enríquez observa de longe. Podemos imaginar que faz isso como alguém de nossa periferia a olhar através de lentes de aumento para bairros chiques, onde mora gente sem afeto e sem escrúpulos, a desfrutar de privilégios, a quem pouco importa o resto. Nuestra parte de noche causa transtorno pelos rituais perturbadores, pela maneira como os personagens manipulam a riqueza, o sexo, a perversidade. Mas é na cabeça do leitor que a narrativa de Mariana Enriquez desfere o golpe perturbador. Ao mergulhar na sua leitura, o amoral e o sórdido vão contaminando nossa alma. Uma sensação comparada ao de estarmos diante de um Inferno, do tríptico de Jerônimo Bosch, no qual as fantasias da maldade perturbam, ao mesmo tempo que suscitam uma atração por sua mescla de morbidez e beleza.
Não é uma leitura fácil. Há uma espécie de jogo de espelhos entre capítulos, mudanças de narradores, recurso à anacronia. Mas a fluidez e as surpresas da narrativa impedem-nos de perdermos o fôlego. Não é uma leitura feliz. Padecemos ao submergir num universo de absoluta crueldade. Sobretudo, ao percebemos que alguns episódios estão bem próximos de outros que a verdade dos fatos exuma.
Pode-se imaginar, por exemplo, que um dos personagens bem poderia ser um certo capitão Astiz, que namorava moças para colher informações e depois as torturava e matava. Ou que os lugares da seita fossem aqueles onde eram praticadas torturas, apelidados pelos militares de nomes engraçados como A choupana do Chapeuzinho Vermelho.
Nuestra parte de noche é um passeio em nosso subconsciente coletivo, quando o cruel e o macabro unem-se para invadir nossos subterrâneos.