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Para Tarcísio Pereira, in memoriam

 

1.

Na superprodução In the hearth of the sea (No coração do mar) há uma sequência de pesca na qual um grande carretel vai dando linha ao arpão a ser encravado no dorso de uma imensa baleia. O roteiro tem raiz no livro homônimo de Nathaniel Philbrick. Espelha-se no acontecimento real do baleeiro Essexafundado por um ataque de baleia no Oceano Pacífico. O mesmo que também inspirou Moby Dick, o romance de Hermann Melville. Neste livro, o trecho sobre o lançamento do arpão consome inúmeras páginas. A mesma cena, transposta para o cinema, poucos minutos. É apenas um exemplo da disritmia entre o tempo de leitura solicitado por uma obra literária e o tempo de visualização da mesma narrativa transposta para a tela, com as novas tecnologias.

A pergunta é se tal descompasso – tempo/leitura x tempo/audiovisual – poderia ser também o motivo para a propagação de textos breves, mais ajustados a um cotidiano de inquietação e pressa.  

Tendência de um minimalismo ‘moderno’, que teve entre seus renovadores o escritor guatemalteco Augusto Monterosso. Seu conto intitulado O dinosauro, modelo extremo de concisão, é certamente a mais breve narrativa em língua espanhola: 

“Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.”


2.

É um sintoma dessa tendência a nova moda do aforismo. O dito breve, enunciado de forma sugestiva, parece querer navegar nas mesmas águas do poema. 

A revista literária Quimera, de Barcelona, publicou um número especial sobre o matéria e o blog espanhol El aforista se autodefine como ameno salão consagrado ao gênero mais breve. A concisão atraindo escritores no domínio da prosa, da mesma forma que o hai-kai na esfera da poesia.

O aforismo é uma novidade ‘antiga’. E até quando tomamos notas de leituras, percebemos o quanto um bom livro é entremeado de ‘aforismos’. Frases rápidas, cortantes, salpicadas com tempero filosófico. Um jogo em que cada peça, depois de revirada, revela-se núcleo atômico de um pensamento. 

(Na Carta ao Greco, de Nikos Kazantzakis, por exemplo, encontramos dessas frases a cada esquina do livro. Como esta: 

Cada ser vivo é uma oficina onde Deus, escondido, trabalha a lama e a transforma.)


3.

Qual o caminho para alguém se tornar um bom leitor? 

Algo parecido com o ensinado ao poeta e sociólogo Lourival Vilanova. Numa de nossas conversas, ele me contou como foi sua iniciação na Livraria Imperatriz, onde trabalhou em tempos de estudante.

No primeiro dia, o velho livreiro Jacob Berenstein, dono da livraria, mostrou-lhe um espanador de penas de avestruz, dizendo ser o instrumento mais importante. Explicou-lhe que, à medida que o ajudante fosse afagando os livros nas estantes, sua atenção iria sendo despertada pelos títulos mais sugestivos. De repente, ao ler um deles, um sopro interior iria atraí-lo. E, ao folhear o livro, o vírus da leitura o contaminaria para o resto da vida. O diabinho da curiosidade faria o resto. 

Para o sábio Jacob, o toque sensual do espanador era promessa viva do surgimento de um novo leitor. 


4.

O amigo livreiro, Tarcísio Pereira (foto), traz-me de presente o Vers et prose, de Mallarmé, encadernado com douração, edição de 1910, da Librairie Académique, Perrin et Cie. 

Na contracapa, um ex-libris arranhado, sinal de nome banido a canivete. No ex-libris: uma coruja, quatro livros empilhados e um alto candelabro = sabedoria + leituras + horas noturnas. Numa das páginas de guarda, gravura retratando o autor do livro: Stephane Mallarmé, livro na mão, gravata borboleta, cabisbaixo. Desenho assinado por James MacNeill Whistler, autor da pintura Arranjo em branco e preto n. 1, que findou conhecido como Retrato da mãe do artista

Começo por olhar entre as folhas do Vers et prose. Mania de voyeur a tentar descobrir, no meio de páginas de livros usados, eventuais mistérios ou confidências. Há pedaços mal cortados de um jornal velho. São do nr. 132, de 1938. Num deles, lê-se: “ais antigo em circulação na A”. “A”, de América. Ou seja, o Diario de Pernambuco. Noutro, as palavras “lavoura e açúcar” e um trecho da reivindicação dos “agricultores pernan/se, ao interventor Lima Cavalcan/engenhos d/ a velha Sociedade Auxiliadora da Agricultura, com as credenciais de permanente defensora dos interesses agrícola (sic) em Pernambuco, vem dirigir um veemente apelo a V. Excia. para que junto ao ministro da Agricultura modifique a taxa aniquiladora que vai recair sobre o tão desemparado açúcar banguê”.   

Uma mescla de textos e anúncios. Oferta de vinhos “estrangeiros e nacionais”, do Recife Hotel, do Armazém Balsemão, da Casa Fratelli Perelli. Ao lado, um "reclame" (é palavra da época para significar publicidade) do BLUE ST..., que se diz “única linha de vapores/passageiros de PRIMEIRA CLA/cuidadosamente atendida”. O agente, Wilson Sons, ainda continua resistindo na rua do Bom Jesus, 152, mesma calçada e a alguns metros da velha Sinagoga. No verso, uma chamada curiosa: “LUSTRE D. JOSÉ/AÇÃO CATOLICA” (ou seja, o ilustre decepado). É a declaração de um certo Dom José: “Sa, a palavra de Deus dentro dos quarteis, para a nossas valorosas classes armadas”.

Numa das tiras do jornal, a surpresa: um poema de Charles Baudelaire. O número XXII, intitulado A solidão, do livro Pequenos poemas em prosa

“Sei que o demônio gosta de frequentar os lugares áridos e que os espíritos do assassínio e da lubricidade maravilhosamente se inflamam na solidão, mas seria possível que esta solidão só fosse mais perigosa para a alma sonhadora e ociosa que povoa suas paixões e quimeras”. 

Havia também um fragmento da tradução de Volúpia do Inverno, do Stephane Mallarmé da gravura (“Esta pêndula de Saxe que se atravessa e sôa horas entre flores e deuses, a quem teria pertencido?”). 

Os versos do jornal misturam-se aos poemas contidos nas páginas do livro e, de pronto, atiçam-nos a curiosidade:

- Quem teria sido aquela Maria de Lourdes, que na década de 30 do século passado havia traduzido obras-primas da poesia francesa? 

Descubro: 

Maria de Lourdes Sousa Leão (1907-1978).