Manhãzinha.
A notícia chegou mais depressa do que as moscas no Beco dos Tristes.
Se perguntarem, ninguém sabe a razão do apelido.
“Dos tristes”. O nome oficial da rua é o de alguém que ninguém por ali sabe quem foi.
Na janela, a vizinha anuncia, alvoroçada:
— O mundo vai se acabar. Mataram o pastor!
— Quem? O pastor Elias?
Enquanto faz a pergunta, dona Iracema continua remendando a camisa 10 do Santa Cruz. Do neto, artilheiro nas peladas do bairro.
Um dos filhos na cadeia deixou-a desmotivada para conversas. Era o mais novo dos três. Os outros dois, um vive em São Paulo, trabalha de mestre de obras na construção civil. A filha, cabeleireira, mora ali pertinho. Somente o mais novo, Moacir, o mais carinhoso, não dera pra gente. Na véspera de ser preso tinha lhe trazido uma caixa de sabonete, embrulhada em papel de seda, com marca estrangeira.
— Oi, mãe! Quando ficar rico te compro uma casa. E te dou um banho de loja legal! — disse, fazendo graça.
Ela olha o retrato dele na parede da sala.
— Safado! — pensa, sorrindo.
Enquanto divaga sobre o filho, a vizinha comenta:
— Mataram e cortaram o dedo!
É cedinho.
As sujeiras trazidas pela chuva acumulam-se à beira do meio-fio. Pedaços de frutas, baratas, latas de cerveja boiam nas poças. Pelo menos a chuva, que tudo lava, iria abafar o cheiro do lixo fermentado no beco por onde o pastor costumava passar após o culto. Baixinho, sempre de paletó azul-marinho bem passado, gravata marrom. Um jeito sonso de se curvar quando cumprimentava as vizinhas, Bíblia sempre debaixo do braço. Lembrava aquele anjinho de louça da igreja de antigamente. Quando botavam a moeda no cofre, ele mexia a cabecinha, agradecendo a esmola.
O pastor andava pelos cinquenta. Ninguém sabia ao certo de onde viera. Quase quatro anos andando por ali. Fala bonita, mansa. Sotaque diferente, como o povo das bandas de São Paulo. Uma vez parou na porta da casa de dona Iracema, pediu água, puxou conversa. De repente, perguntou por Moacir, como quem não quer querendo. Na hora em que estava se despedindo, olhou para uma das meninas da rua de um jeito esquisito para um homem de Deus. Mas, pensou dona Iracema, o pecado da carne não é dos piores. Pode acometer o cristão em qualquer hora, condição, idade. Felizmente, no terreiro que frequenta ninguém se preocupava com essas coisas.
Teve um mau pressentimento ao perceber a aproximação entre o pastor e Moacir. No dia em que flagrou os dois conversando perto da venda, no final da rua, sentiu como se ela tivesse sido tocada pelo eruexim de Iansã. Logo se perguntou:
— Que diabo esse pastor anda tramando com o danado de meu filho?
A notícia aterrissou pelo Face do neto e alastrou-se pelo morro.
Na véspera, a sexta do 24 de julho foi acometida por temporal. Em três horas, um volume de água equivalente ao previsto para oito dias. A TV anunciou vítimas de desabamentos de barreiras em várias partes da cidade. Declarações oficiais enumeravam as justificativas de sempre:
a) intensidade anormal das chuvas;
b) retirada indevida de barro;
c) plantio irregular de bananeiras nas encostas.
Naqueles dias, fez sucesso no bairro um vídeo divulgado através do Youtube. Uma vara de porcos equilibrando-se num amontoado de lixo, deslizando Rio Capibaribe abaixo. Um popular filmou o trajeto insólito, até perder de vista os navegantes nas imediações da Casa da Cultura. No final da filmagem, vê-se a cúpula do antigo presídio, cuja sombra sinistra vela sobre o rio em dias de sol.
Na rádio, um entrevistado, convidado a dar opinião sobre o descaso da cidade, mencionou o episódio da “navegação” dos porcos sem destino certo e afirmou que nas próximas eleições usaria o vídeo como testemunho do desleixo da cidade que um dia chegou a ser apelidada Veneza Americana.
A morte do pastor nada teve a ver com a chuva.
Sábado, meia-noite, um morador passou em frente à igreja em busca de ajuda para uma família cuja casa estava prestes a ruir. De repente, deparou-se com um líquido vermelho escorrendo pela porta da igreja, espalhando-se na calçada. Pareceu-lhe sangue diluído na água da chuva.
Rumou para a delegacia, no final da rua, e alertou o funcionário de plantão. O homem entrou numa sala e logo reapareceu, polegar em riste. Sinal de que iriam tomar providências.
Minutos depois, o comissário chegou ao local acompanhado por um auxiliar. Começou por iluminar a calçada com o celular. Em seguida, perguntou a um dos moradores se alguém tinha cópia da chave da igreja. Se haviam ouvido algum movimento esquisito. Grito? Tiro?
— Negativo! Só trovoada e zoada de chuva!
Arrombou a porta e escancarou-a a pontapés, diante de duas testemunhas cujos nomes e endereços anotou numa caderneta.
Ao acender as luzes do salão, deparou-se com um corpo em decúbito dorsal.
Dois tiros no peito.
Seria uma cena normal numa sexta-feira, num bairro como aquele, se o crime não tivesse ocorrido dentro de um lugar de culto. E mais estranho ainda: junto à mão direita do defunto, o dedo indicador decepado.
O comissário ligou para o Instituto Médico Legal solicitando o furgão para traslado do cadáver e uma equipe técnica para os procedimentos de praxe.
Aguaceiro intenso.
Uns poucos vizinhos de guarda-chuvas integravam o cenário.
O veículo levou mais de duas horas para chegar. O comissário chamou um dos recém-vindos:
— É preciso conferir se a amputação do dedo indicador ocorreu antes ou depois do óbito.
— Vamos recolher a falange distal para o exame necroscópico!
— Nunca pensei que um dia iria empacotar dedo de evangélico! — respondeu o colega, com ar de troça, num descaso de quem lida cotidianamente com defuntos.
O comissário arrematou:
— Precisamos ser rápidos. As moscas e os políticos do bairro vão chegar logo que o sol desponte. Onde existe podre, aparecem!
Todos se entreolharam. Risadas.
Alguns minutos depois da porta da igreja ter sido selada, a equipe do IML despediu-se dos colegas do Comissariado.
O motorista deu partida.
O furgão arrancou em marcha lenta, ladeira abaixo.
Foi sumindo, sumindo.
Os pingos de chuva martelando o metal da cabine.