Viagem ao Chiapas, território do Subcomandante Marcos.
O ônibus, repleto, para no meio da estrada. Quase todos os passageiros têm traços indígenas. Policiais a paisano entram no veículo e prendem alguns homens. O silêncio é a resposta de uma população submetida à violência naquela fronteira longínqua com a Guatemala. Antes da chegada dos bárbaros da Europa, ali vicejava a grande civilização maia.
Chegamos nas ruínas de Palenque, em meio à selva tropical. Poucos dias antes havia ocorrido, em montanhas não longe dali, a matança de Acteal. Uma incursão paramilitar massacrara, dentro de uma igreja, 45 indígenas tzotziles da organização Las abejas, incluindo crianças e mulheres grávidas.
Quem sabe, fazia parte daquela comunidade o casal de indígenas com uma criança que encontramos dentro de uma igreja cerca de San Cristóbal de las Casas. Só havia eles e nós. Choravam alto. Aqueles soluços desesperados nos acompanharam pelo resto da viagem.
Ano seguinte, findaria meio século do longo período de presidência do PRI, e teria início uma das fases mais violentas da história do México. Massacres e sequestros cujos personagens circulam por páginas do jornalismo investigativo de agora e nos servem de alerta.
Retalhos:
1. O general no epicentro
Quinta-feira, 15 de outubro de 2020.
Em viagem com a família, o general é detido no aeroporto em Los Angeles. A prisão decorre de investigações do DEA, órgão policial norte-americano de combate às drogas.
O general tem um ar de abutre. Alto, nariz adunco, olhos pequenos e movediços de quem procura a presa. Feito a águia bicando a serpente. A da bandeira de seu país.
Nas fotos e vídeos, a farda impecável. Peito carregado de medalhas. Gestos e discursos estudados. Tem passagens por funções importantes, inclusive a de adido militar em vários países. Até ser guinado ao ápice: Secretário da Defesa Nacional do México, o equivalente a um Ministro da Guerra.
De repente, uma espécie de “terremoto” de grau 7 na escala Richter abala o universo militar. Vários de seus colegas de alta patente suspendem viagens ao país vizinho, onde gozariam férias. Mulheres desfazem malas, tomam calmantes, colam-se às TVs. Aguardam, a qualquer hora, o anúncio dos nomes dos maridos na lista de suspeitos. O clima de tensão agrava-se ao descobrirem que a Polícia Montada do Canadá está de posse do código dos BlackBerries, utilizados pelos responsáveis mexicanos envolvidos em negócios escusos.
O senhor todo poderoso, de quem muitos militares e políticos são cúmplices, transforma-se, de súbito, numa figura de “padrinho” de filmes de Hollywood. Como se tivesse sido tocado por um feitiço da Santa La Muerte, uma das entidades das crenças mexicanas.
2. O alcaguete do macacão laranja
Na primeira foto, o que foi responsável pela segurança do país porta terno azul, gravata de seda, cabelo cortado rente. Tem o ar do alcaguete transformado em policial de primeiro escalão. É frio, a ponto de manter a tranquilidade quando um deputado no Parlamento o chama de ladrão e assassino.
Na segunda foto, com aparência descomposta, porta traje laranja de condenado numa prisão dos Estados Unidos. Para quem conviveu com ele nos anos em que dirigia a poderosa engrenagem da polícia federal mexicana, a transição entre o terno anil e o macacão é mais do que uma metáfora.
Até recentemente, ninguém conhecia seus antecedentes criminais. Como se tudo tivesse começado num curso de engenharia especializada em Segurança Pública e logo desatasse uma carreira vertiginosa de homem de confiança de presidentes. Mas, num balanço sinistro, seu passado de delinquente acabaria se revelando: em seis anos de chefia do órgão repressor, mais de 120 mil mortos, 26 mil desaparecidos, 70 massacres coletivos e 63 assassinatos de defensores de direitos humanos. Entre outros descalabros de sua passagem pelo órgão máximo da repressão, a farsa da aquisição milionária de uma “pistola molecular” intitulada GT200 (Global Technical 200), anunciada como susceptível de “detectar” até uma nanograma (10-9 de uma grama) de uma substância qualquer.
O macacão laranja agora o identifica como peça da engrenagem que nutre o mercado do maior consumidor de drogas do universo: os Estados Unidos, cuja parcela da população (estimada entre 3 a 4%) aporta anualmente aos cartéis mexicanos mais de 120 bilhões de dólares.
3. O filho do poderoso chefão
O homem mais poderoso de um país nem sempre é o presidente. Pode ser um bandido que nunca foi preso e, por mais de cinquenta anos, ludibria, corrompe ou elimina centenas de concorrentes. E controla a mais poderosa rede de narcotráfico. Com várias mulheres e filhos. Um deles é o predileto. Desde jovem, é destinado a se tornar, mesmo a contragosto, herdeiro de um império multinacional. Dividido entre a rejeição aos negócios ilícitos e o amor devotado ao pai, o menino acaba por se tornar figura de proa no submundo das drogas. Converte-se em traficante e assassino. Preso, rompe o código de omertá. E vai bem mais longe. Escreve um diário no qual narra detalhes da logística dos crimes e da intrincada rede de subornos de sua organização. Revela, por exemplo, que um coronel responsável pela escolta presidencial era o encarregado de alertá-los sobre eventuais operações da força pública. Ou que a famosa “fuga” de El Chapo, longe de ter sido uma aventura digna de um Robin Hood, havia sido devidamente concertada com autoridades do alto escalão.
O jovem está preso nos Estados Unidos desde 2010. E cobra das autoridades a contrapartida de uma colaboração de mais de dez anos, durante a qual fornecia informações sobre as atividades de concorrentes.
A capa do diário, escolhida por ele: sua própria imagem. Um palhaço vestido de laranja. Uma lágrima perdida num canto do olho.
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(Na última vez que encontrei um amigo mexicano ele comentou o destino trágico de seu país e encerrou a conversa com a frase do escritor Nemesio García Naranjo, atribuída ao presidente Porfírio Díaz:
Pobre México,
tan lejos de Dios y tan cerca de Estados Unidos!)