1.
O tapete tem a mesma fiação do poema.
Tecer a seda, o algodão, a lã. Tingi-los com matérias em estado de graça: índigo, cochinilha, açafrão! A tela mudando de cor, brilhando entre o amarelo e o vermelho e o malva. Trabalho exaustivo, minucioso: milhares de horas transitando entre dedos delicados, uma quantidade infinita de nós por polegada quadrada. Painel concebido para esconder um enigma nas suas fibras. Recital de mãos ágeis, para tudo urdir e tecer. A iniciação começada na infância, conduzindo uma tecelã à versatilidade de pianista. O trançado vertiginoso do tapete tem a grandeza de uma partitura musical. Transubstanciação de um louvor. Semelhante a uma fuga de Bach ou a um canto de Fayrouz. Ou um exercício entre a tecelagem e a literatura. Henry James arma o xadrez: de um lado, ardis psicológicos num jogo de subentendidos; do outro, as sutilezas da escrita. A expectativa de uma jogada determinante hipnotiza o leitor. Algo similar à imagem complexa de um tapete oriental. É preciso desvendar o único fio no qual o autor introduziu suas pérolas. O embate entre crítico à procura do não dito e o escritor a dissimular seus disfarces. A imagem do tapete (The figure in the carpet) tem mais de um século. Uma alfombra ainda a resplandecer no chão da literatura. Tal como a amada de Ulisses, atando os fios da astúcia para ludibriar os pretendentes, enquanto o herói não chega. Assim é o Canto XIX da Odisseia.
2.
Tapetes nos transportam. O tapete das Mil e uma noites é uma alegoria. Nele, voamos sobre terraços abstratos, há flores e duendes e odaliscas. O conceito de heterotopia, utilizado por Foucault, é alusivo aos jardins persas, onde são representadas as partes do mundo. Sugere um fora de lugar. Ou espaços estrangeiros aos quais somente temos acesso quando os convocamos sobre um tapete imaginário. É “voar” por lugares inauditos. Ou interditos. Ou buscar a noite sossegada de San Juan de la Cruz:
La noche sosegada
en par de los levantes del aurora,
la música callada,
la soledad sonora, la cena que recrea y enamora.
3.
El Oued, o oásis. O sono e o sonho sobre o tapete de lã. Ornado com a Cruz do Sul, a estrela de Agadez. Guia dos tuaregues, os homens azuis do deserto, sempre em trânsito entre as duas Áfricas.
Lá fora, só areia. Finíssima. Penetra na boca, no nariz, na alma. A djellaba, o turbante e o véu cobrindo a cara, impregnado com água de flor de laranja perfumando o hálito, o mesmo aroma que tempera o chá. No chão desfilam o rastro dos homens, o traçado sinuoso dos répteis. A marca do escorpião é um símbolo recorrente.
O aconchego da alfombra regula as horas da casa: as do comer, as do dormir. O pai do amigo senta-se no chão. De vez em quando, conta o filho, a tristeza apodera-se do beduíno sedentarizado e o pai desaparece. Medita contemplando a Cruz do Sul e sua incrível coorte de estrelas. A imagem da Cruz do Sul fica gravada no tapete.
4.
O tapete despertado num hotel, um lugar da Turquia. Na frente, um jardim de romãzeiras, lá fora, colinas brancas. Travertino, rochas calcáreas, como se fossem revestidas de neve ou de algodão. Paisagens insólitas escritas por um destino vulcânico. Elas, as colinas, arrodeadas por águas cristalinas desembocando em Hierápolis, cidade agora ruína, lugar onde se banhou Cleópatra. Na loja, junto ao salão de entrada, o olhar curioso desperta o dono. Ele arremessa no chão uma braçada de tapetes que se desenrolam como serpentes, entrecruzando-se. Um deles se sobressai. Tem uma espécie de aura, tessitura sutil. O homem sugere experimentar o sedoso do toque, desvela o painel de cores, chama a atenção para o lugar de origem.
Naquele tapete, jaz adormecida a essência de quem o fez. Pensamentos, músicas, desejos, sofrimentos estão consubstanciados no desenho do tecido.
5.
O homem se estende sobre a concentração dos pontos. É uma peça exclusiva. Feitura e ornamentos revelam o lugar onde foi manufaturado: Hereke, onde, nos meados do século XIX, o sultão instalou fábricas de tapetes para seu uso exclusivo. Com eles adorna o harém, a sala de leitura, os aposentos do poder otomano. Somente muitos anos depois o comércio, parte da produção dos teares reais, salta mundo afora.
O homem senta-se à mesa. É professor de História, leitor contumaz. Discorre sobre literatura turca, a poesia de Nazim Hikmet. Aconselha o livro Memed, meu falcão, do autor Yaşar Kemal, romance em torno de um Robin Hood nacional.
Lá fora, acendem-se as romãs e as flores do jardim irmanam-se às do tapete turco.
6.
Na parede, o tapete de oração. Uma caligrafia. No interior de um retângulo, o mirabe, o nicho a indicar nas mesquitas a direção da Meca. Dentro da figura do mirabe, uma outra: a árvore da vida, sua copa apontando o céu, destino dos crentes. Pequenas flores e seus significados e desvelos. Concebido para nos receber de joelhos, tornar o chão limpo, sagrado. Proteger o espaço do Outro, desencantar o descanso. O tamanho para a genuflexão à medida do corpo e do recitativo. A Surata das abelhas ou um poema de Hafiz ou um canto de Federico García Lorca. A palavra tecida é sempre seda desfiando-se entre a Terra e o Mistério.
7.
As redes dos Inhamuns. Tapetes suspensos, prontos para resgatar nossos adormecimentos. O algodão descaroçado, fiado, urdido à mão. Depois, os bordados em ponto-cruz. Desenhos simétricos em vermelho, amarelo, azul. Seguem o mesmo percurso de outros lugares: a mulher em casa entre a cozinha e o tecer: a Penélope sertaneja aguardando o vaqueiro no seu gibão, o agricultor e sua enxada. A rede, para acalanto ou escuta do aboio lancinante, o canto árabe a ecoar na caatinga, nosso deserto.
O tapete em forma de rede oferece uma meditação e um repouso que nenhuma cama consente. Pede uma oração aos anjos ou às huris que um dia irão nos receber no Paraíso.
Uma obra acabada: entrelaçar palavras, notas musicais ou fios. Arrumar a trama com que é feita a história ou a teia. Dar-lhes nova dimensão, substrato, luz.