Noroes Agosto 2020 Hana Luzia

 

 

Na tarde de 2 de junho de 2020, aconteceu o imprevisível:

um anjinho negro sobrevoou o Recife.

A cidade é dada a casos bizarros. Três séculos atrás, um boi voador fez história num espetáculo montado por Maurício de Nassau. A peripécia ainda desperta a imaginação. Valeu marchinha de Chico Buarque. E é bem possível ter sido referência à criação do Galo da Madrugada.

Mas de anjinho negro pelos céus da cidade, ainda não se tinha notícia.

Pois naquela terça, um deles alçou vôo de um dos prédios das apelidadas Torres Gêmeas.

Antes de virar anjo, era uma criança de cinco anos. Miguel. Homônimo do arcanjo exterminador do dragão da maldade. Filho de mãe doméstica. Negra, como quase todas as domésticas. Ela, por ter saído para acompanhar o cão da patroa, não pôde assistir ao filho em metamorfose.

Era de se esperar que Miguel, depois de se transformar em anjo, zarpasse rumo ao mar aberto em frente ao edifício. Em vez disso, ele resolveu planar do lado oposto, pelo velho bairro de São José. Foi visto driblando nuvens, edifícios, coqueiros, em plena pandemia.

Em se tratando de um anjinho negro, alguns passantes logo pensaram em mau agouro. Uma mensagem capaz de perturbar até evangélicos versados na Bíblia, cujas passagens muitas vezes evocam emissários celestes. Mesmo um pregador negro dificilmente imagina um anjo que não seja branco, cabeleira alourada, olhos azuis, vestes alvas. Afinal, o Cristo que conhecem também é assim, contradizendo a origem semita e morena. Num lugar onde o vírus do racismo é tão insidioso quanto o corona, a negrura do anjinho parecia mais intrigante do que seu passeio aéreo pelos arredores do Cais de Santa Rita.

Outro fato curioso é que sobrevoou muito tempo acima de uma área precisa. Foi tanto tempo que o dono de uma barraca vizinha ao mercado público de Santa Rita, perguntou a um colega:

— Que diabo ele anda procurando por aqui?

O parceiro, beirando os setenta, logo sugeriu:

— Se botar o prumo, é capaz de ser o lugar da igreja que demoliram uns anos atrás! A chamada dos pretos e pardos!

É que ninguém lembra mais o nome completo: Igreja da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios dos Homens de Cor. Não uma igreja qualquer: a única do país a ter sido construída exclusivamente por escravizados.

O homem do mercado tinha razão. De suas alturas, o anjinho negro observava o espectro de sua igreja. Sua sombra.

 

Era o ano de 1973. O general Garrastazu Médici, “presidente”. Na sanha “modernizadora” dos chamados anos de chumbo, a igreja foi demolida a golpe de buldôzer, o tanque de guerra da especulação imobiliária. Seu campanário, degolado e arrastado por cabos de aço. Parecido com o que fizeram com o corpo do jovem Stuart Angel, também arrastado por um veículo militar, sua boca colocada no cano de escape. Assassinado num quartel do Rio de Janeiro, em 14 de junho de 1971.

Em tempos como aquele, maus tratos não foram impingidos apenas contra os homens. Também praticaram sacrifício urbanístico. Tanto no corpo humano quanto no das cidades, as torturas deixam seus estigmas. Assim foi com a igreja, convertida numa avenida cicatriz nos costados do Recife.

Entre os defensores da cidade, o arquiteto José Luiz da Mota Menezes, na linha de frente. Denunciou o arraso do patrimônio histórico para rasgo de um traçado levando do nada ao nada. Ele e uns poucos tentaram sustar o massacre, num embate que o historiador Denis Bernardes chamaria A batalha dos Martírios. Do outro lado da trincheira, a operação contou com personagens envolvidas com o poder de então. Entre elas, o autor de Casa-grande & senzala.

O solene mutismo da Academia foi defenestrado por um texto literário: o poema de Mauro Mota, Igreja dos Martírios ou Jesus na Avenida. No seu arremate lírico, os versos rezam que naquele chão ainda permanecem “a Igreja, os querubins, a música dos sinos, os defuntos,/  200 anos de procissão na 6ª feira da Quaresma”. A poesia. Sempre.

 

Mas,

— Que diabo o anjinho negro andava buscando sobre a sombra da igreja devastada?

Talvez estivesse à cata de outros anjinhos como ele, moradores do antigo santuário.

Como era um anjo menino, desconhecia que há épocas em que poderosos precisam preencher com cimento e cal o vazio do pensamento. Fosse um anjo adulto teria percebido, com seu olhar de drone, as marcas que a proliferação das relações subalternas entre políticos e homens de negócios — donos de empreiteiras, empresas de transportes e outras atividades atreladas à máquina pública — haviam deixado de herança. Ele ainda não sabia que a cidade, antes chamada de “Veneza Americana”, era tão apreciada por quantos desembarcaram naquele cais ali pertinho, bem próximo de onde ele havia se transmudado em anjinho. Cais que findou por se tornar uma espécie de “saudade em pedra”, a confirmar que o Estado pode até não ter quem o governe, mas sempre tem seus donos.

 

O anjinho negro regressou às Torres Gêmeas.

Era início de noite.

Alguém no nono andar ouviu um ruflar de asas. Disse que alguma coisa quase roçou numa das janelas.

O anjinho havia voltado para verificar se a porta do elevador de serviço, destinada ao uso exclusivo de empregados, estava bem fechada. E se uma das grades já havia sido consertada. Até observou se o cachorro da madame estava posto em sossego.

Depois saiu rapidinho. Mar afora.

Muitos seguiram o seu voo e o perderam de vista na altura da Cruz do Patrão. É um curioso obelisco, encimado por uma cruz, na saída do porto. Comentam que o lugar é rondado pelas almas penadas dos escravizados nas noites negras do Recife.

Em todo o mundo ecoou um longo assobio triste, vindo daquelas bandas. Uma melodia parecida com a de uma velha música cantada por Billie Holiday, chamada Strange fruit.

Fala de uma árvore que bota frutos estranhos e tem sangue nas raízes e nas folhas.

Começa assim:

Southern trees bear a strange fruit
Blood on the leaves and blood at the root
Black bodies swinging in the southern breeze
Strange fruit hanging from the poplar trees…

Escutem.