1
Sábado, 23/5.
Ponto-final do Ramadã.
Algumas de suas passagens estão cravadas no meu calendário.
Jantar de ruptura do jejum na casa de um amigo argelino.
Começo de noite. Hora de sossego atravessando o nervosismo de um cotidiano de trabalho e de abstinência. Em meio a conversas e iguarias árabes, alguém bate na porta. Entra um homem de seus trinta anos. Senta-se à mesa. Pela intimidade com que é tratado, faz-me pensar em algum familiar recém-chegado do bled à capital. Traduzindo: um sertanejo desembarcando no Recife. A conversa continua entre árabe e francês.
Da vizinhança desenrola-se a música do sheik Mohamed-el-Anka. Guardadas as diferenças, o cantor era uma espécie de Luiz Gonzaga. Deu ares de nobreza ao chaabi, música popular. A cidade ainda se parece com a que vemos no filme A batalha de Argel. A casbá ali pertinho, acendendo imagens do esconderijo de combatentes pela independência do país sendo bombardeado pelos truculentos paraquedistas de França.
Terminado o jantar, a sobremesa, o chá de hortelã, o homem despede-se.
Pergunto ao meu amigo Rabah quem é o visitante.
— Um mendigo e sua fome!
Dou-me conta de que a Ceia Larga para nós, pretensos cristãos, é apenas um retrato na parede.
2
A “prisão domiciliar” desencava fantasmas.
Busco na internet, sem sucesso, um clássico do cinema: O tesouro de Sierra Madre. John Huston. Oscar de direção, 1949.
O enredo se passa no México, anos 1920. Bandidos a rodo, gringos à procura de um tesouro. A eterna cobiça dos ianques. O autor do livro que serve de enredo chama-se B. Traven. Dele, sobrou apenas um nome na tela.
Mais do que o filme, é ele que continuo procurando.
Numa noite dessas, eu o vi aboletado num café em San Cristóbal de las Casas, por onde havíamos passado, ele bem antes de mim. Conta-me que havia fugido da Alemanha, perseguido por seu engajamento na Liga Espartaquista e na República Socialista da Baviera. Movimentos que precederam o grande desastre de seu país, quando militares de formação prussiana acabaram sendo comandados disciplinadamente por um psicopata.
B. Traven nunca “existiu”. Era um dos “alguéns” utilizados por um autor “desconhecido” desembocado na terra de Zapata.
Reza a crônica: seria provavelmente um anarquista oriundo de Gelsenkirchen, cidade na bacia do Ruhr, chamada a dos “mil fogos” em alusão às minas de carvão daquela região estratégica para a indústria bélica alemã.
Coincidência, também veio de lá o padre Frederico, quase dois metros de altura, vigário na minha cidade. Reza a lenda que certa vez chegou a levantar um cavalo. Pilotando uma moto Indian, fazia incursões pelos pés-de-serra para pastorear seu rebanho.
Na nossa “conversa”, B. Traven — ou seja lá quem ele for — comentava a morte do padre num acidente quando dirigia sozinho seu jipe nos arredores do Riacho do Navio, Sertão de Pernambuco. Foi assim mesmo que aconteceu.
Acordo.
3
O olhar é espelho da alma, dizem.
E entre os vários tipos, há o “olhar do cão”. Assemelha-se ao do diabo. Ou ao de um ex-militar ao qual somos confrontados cotidianamente na TV. O olhar do cão nos atravessa em pesadelo quando dormirmos mal, sonhando monstros. É o que dispara, de repente, de uma foto ou daquelas pinturas da Idade Média feitas para aterrorizar os crentes. O que nos leva a acreditar que somos o único animal dotado do instinto de perversidade.
Os olhares de cão assemelham-se. Basta que se compare, por exemplo, aquele de um nosso ex-capitão ao da fotografia de Alfredo Astiz, o “anjo da morte” da Marinha argentina, torturador, condenado à prisão perpétua. Cínico, ele especializou-se em “conquistar” mulheres que se opunham à ditadura para entregá-las à tortura e à morte. No dia de seu julgamento, antes do veredito, é flagrado acariciando o broche que ostentava na lapela com a bandeira de seu país. A bandeira não o impediu de se render aos britânicos na Guerra das Malvinas. O simulacro de pátria servia apenas para escamotear interesses subalternos.
Astiz fez parte das engrenagens perversas da Esma (Escuela Mecánica de la Armada). De lá partiam as ordens para os vuelos de la muerte, em que opositores da ditadura eram dopados e lançados ao mar com a devida benção “cristã” dos capelães militares.
“Anjo da morte” ou do Mal?
Aquele mal que nem o Cristo nos ajudou a decifrar, quando pronunciou o “Eles não sabem o que fazem”.
Por isso, enquanto houver entre nós gente dessa espécie, continuamos obrigados a exercitar nossa indignação. E a buscar entender, como escreveu o escritor francês André Malraux, aquela região crucial da alma “onde o mal absoluto se opõe à fraternidade”.
4
A poesia é um acontecimento susceptível de nos levar ao êxtase.
E de dar trégua à nossa inquietude.
Ela “existe” independentemente de nossa vontade. Depois, pode ser materializada num poema sob o formato de letras, de gestos, de notas musicais. Linguagens a desvelarem o que se oculta num novelo de neurônios por onde escorre o inusitado.
É o que pode ser chamado de “paisagem interior”. Ou Inscape, na definição do poeta e jesuíta inglês Gerard Manley Hopkins (1844-1889). É dele o poema The windhover, essa pequena maravilha de um gênio da Poesia, traduzida por Augusto de Campos:
O Falcão
A Cristo Nosso Senhor
Vi de manhã o dom do dia em seu jar-
dim diáfano, delfim de luz, Falcão dia-dilúcido-dourado, cavalgando
O rio-rolante – sob seu ser – raro ar, e já se alçando
Mais alto, como revoou com rédea de asa a ondear
No seu êxtase! além e alado em pleno ar-
dor e ainda além, patim na pista em arco; e quando
O voar venceu o grande vento. O coração pulsando
Por uma ave – o perfazer, a perfeição da coisa no ar!
Beleza bruta, ação, valor, oh, ar, orgulho, por inteiro
Rendam-se! E a chama que de ti centelha
Bilhões de vezes a mais bela e perigosa, ó Cavaleiro!
Sem maravilha: é a mão que faz no rego a relha
Brilhar, e a brasa álgida-azul, meu caro companheiro,
Cai, rói, corrói e sangra, ouro-vermelha.