Albert Camus não faz menção de sua passagem pelo Recife na extensa correspondência com Maria Casarès. E no seu diário de viagem (Journaux de voyage, 1978), nada comenta sobre pessoas com quem manteve contato, nem sobre atividades literárias. É como se o escritor francês tivesse sido tomado tão-somente pelo clima da cidade, o barroco de suas igrejas, a originalidade de seu folclore.
Logo na sua primeira noite, num apartamento do Grande Hotel, escreve:
“Amo o Recife, decididamente. Florença dos Trópicos,
entre sua floresta de coqueiros, suas montanhas vermelhas, suas praias brancas”.
O trajeto começa em Marselha.
Sobe a bordo em 30 de junho de 1949, uma quinta-feira de vento forte e calor abrasante.
Antes do embarque, após uma corrida desenfreada no automóvel apelidado Desdêmona para chegar a tempo, envia a Maria Casarès um telegrama avisando que está prestes a partir. Promete escrever-lhe logo que chegue a Dakar, primeira escala do navio.
Haviam se conhecido na casa do escritor Michel Leiris.
Viviam uma grande paixão. Ele, argelino, escritor conhecido, casado, dois filhos. Ela, atriz, seria mais tarde um dos grandes nomes do teatro de França. De origem espanhola, filha de um advogado galego, Santiago Casares Quiroga, ex-chefe de governo da Espanha republicana, refugiado na França após a tomada do poder pelos fascistas.
A correspondência entre eles, de 1944 a 1959, foi publicada pela primeira vez em 2017, pela editora Gallimard.
A viagem é marcada por uma saudade apaziguada pelo mar e disciplinada pelo exercício da escrita, na qual Camus registra, dia a dia, o que observa sobre o tempo, suas circunstâncias pessoais, seus companheiros de viagem. Às atividades sociais no navio prefere uma cabine estreita, sem muito conforto, em conluio com águas nem sempre favoráveis. Anota: “Ou a solidão sem supérfluo ou a tempestade do amor, nada mais no mundo me interessa”.
A tuberculose já se insinua. Mistura-se à tortura causada pelo intrincado relacionamento amoroso. Confessa sentir ganas de se matar diante de um oceano cujas ondas assemelham-se a arabescos fosforescentes e incutem-lhe a sensação de rolar todas as lágrimas do mundo. É o pano de fundo de uma travessia que vai durar 16 dias, até o Rio de Janeiro. Confessa ter compreendido porque as pessoas desistem de viver. A ideia de suicídio é um de seus temas recorrentes, a exemplo do livro Le mythe de Sisyphe.
Quando o navio atraca no Rio de Janeiro é acolhido por uma certa madame M. e um jornalista. Pressente o início de um calvário. Arisco a formalidades ou a manifestações públicas, há o agravante da falta de notícias de María Casarès, além do incômodo de uma febre persistente.
O folclore do Rio, a dança cujo ritmo pouco admira, o encontro com Manuel Bandeira - “um homem fino”-, o ritual de candomblé a que foi levado por Abdias do Nascimento, são alguns dos registros. E um jantar desagradável com um poeta cuja descrição nos sugere Augusto Frederico Schmidt: enorme, indolente, os olhos plissados, lábio caído. Murilo Mendes é um dos raros que Camus diz ter admirado e comenta o fato de o escritor brasileiro também apreciar o poeta René Char. A música de Dorival Caymmi (anotado “Kaïmi”) é uma das poucas coisas que o seduz: as “mais tristes e emocionantes das canções”. Melancolia que se coaduna com seu humor.
Na conferência no Ministério da Educação, auditório superlotado. Entre embaixadores, gente de letras e “famosos”, o que chama a sua atenção é a presença de um refugiado espanhol que havia conhecido na França e viera de longe para encontrá-lo, numa viagem de mais de 100 quilômetros.
Arredio ao tipo de público que o escutou, deve ter dito algo que incomodou a grã-finagem carioca. No dia seguinte, o Correio da Manhã estampa: “Sua palestra brilhante nos desagradou como depoimento, como mensagem, como rosário de ideias fluidas e sugestões inoportunas”.
Após cinco dias no Rio de Janeiro, segue para o Recife.
Ao chegar, sua primeira visão é a do avião abrindo-se “sobre uma terra vermelha devorada pelo calor”.
No Grande Hotel, onde foi hospedado, os mastros das embarcações ainda ficavam próximos dos parapeitos dos apartamentos e os coqueiros das praias podiam ser avistados ao longe.
O Diario de Pernambuco, de 22 de julho de 1949, assinala que Camus saiu a pé do hotel para visitar a cidade. Apreciou o barroco brasileiro, a beleza dos azulejos da Capela Dourada, a Igreja da Conceição dos Militares. No “admirável” Pátio de São Pedro, observou as paredes recobertas por fuligem provocada por uma torrefação de café. Sente-se tocado por aquelas igrejas coloniais, nas quais o branco predomina e, conforme Camus anota, o “estilo jesuítico é iluminado e tornado mais leve pelo reboco”.
A noite parece ter sido a parte menos interessante da programação: uma conferência na Faculdade de Direito. Diante de uma numerosa assistência, decide não abordar o tema anunciado, Roman et révolte. Prefere, comenta o jornal, fazer uma “análise profunda e lúcida sobre a crise da Europa”.
Porém, de tudo, o que mais lhe emociona é o Bumba meu boi – que ele registra bomba-menboi –, para o qual é convidado de honra. Numa página inteira de notas de seu diário, o escritor a ele se refere como algo extraordinário. Descreve em detalhe o folguedo: Capitão, cavalo de pau, ema, burrinha, o boi e todos os seus adereços.
E lembra o grito do mestre ao encerrar o espetáculo:
“Viva o señor Camus e os cem reis do Oriente!”
(Dia seguinte, 23 de julho, às 9 da manhã, Camus vai embora.)
***
Quando leio Albert Camus, “viajo” por lugares que foram de sua intimidade e por onde também andei: ruas de Orã, cafés de Argel. E as ruínas romanas de Tipasa – sobre a qual escreveu o ensaio Noces –, à beira do Mediterrâneo, lugar habitado pelos deuses que “falam no sol e no cheiro dos absintos”. Ali, dos mosaicos romanos, quando a areia é afastada pelos pés, emergem as imagens de uma cultura cujos resquícios continuam a vicejar em nossas línguas.