Noroes Filipe Aca dez19

 

Para Elusiane Oriá e Alberto Vinícius


Recife.
Dezembro.
Cinco agentes da lei vigiam um grupo de adolescentes, na pista da Praça do Derby, junto ao quartel da Polícia Militar. Vinte guris entre os 12 e 17 anos, “menores” que vegetam numa instituição pública.

São “internos”.
“Interno” é acrobacia de linguagem para designar meninos prisioneiros. O vocábulo faz parte da cadeia de metáforas e metonímias. Tanto servem para ornar um despacho de juiz quanto um descritivo de concorrências públicas. Aguardam a hora da competição de salto à distância, invenção dos que tentam mantê-los como gente, malgrado a ficha corrida, a disciplina prisional, as drogas legais prescritas para aliviar a carência das outras.
Conversam, riem, tocam-se, indiferentes ao que acontece em torno. Ali há enredos de romances que nunca serão escritos. Escritores navegam por outras galáxias. Nenhum deles conhece a rotina do menino sendo transformado em bandido. Nem penetram nas jaulas de triagem, de cheiro fétido, onde adolescentes aguardam as ordens do magistrado de plantão.

Àquela hora da tarde, o calor abafado fotografa-se nas manchas de umidade das camisetas. O grupo é um fractal do mundo nordestino. O muro branco é moldura de figuras a lembrar fotografias de filas de prisioneiros aguardando o fuzilamento, na Guerra Civil de Espanha.
Naquela mescla de brancos, índios, negros, há um rapper, o lutador de capoeira, um músico improvisado. Dentre eles, há David. Um menino negro e franzino, ar de aluno bem-comportado. Mas, naquele universo, um sorriso bem pode esconder um frio executor das ordens de um chefe de tráfico. No fundo, são soldados mirins, nosso equivalente aos exércitos infantis treinados por mercenários em guerras de África. A diferença é que os meninos do Derby cumprem instruções com armas menos sofisticadas, em operações menos espetaculares. E apodrecem sob a tirania da “sociedade” e do sol do Recife.

Treinador e funcionários dedicados ao trabalho de domar feras conversam sentados na arquibancada de cimento. As falas são abafadas pelo barulho dos ônibus, do trânsito insuportável, da música cuspida pela carrocinha do vendedor de CDs.
O clima de descontração entre os contendores contrasta com o jeito tenso dos responsáveis pela instituição, sabedores dos meandros de um jogo em que são poucos os ganhadores. Alguns deles já leram o livro Poema pedagógico, de Anton Makarenko, o homem que levou a vida buscando devolver à condição humana “leõezinhos” iguais àqueles da Praça do Derby. Intuem que ali pode ser mais um faz de conta, como a alimentação cuja qualidade nem sempre se ajusta às anunciadas nas dietas propostas. Ou a ineficiência de equipamentos adquiridos para entreter jovens cuja destreza física e inteligência aguçada não os impede de morrer antes dos 20. Quando ultrapassam essa risca, sobra-lhes o ingresso na república dos presídios, onde a “democracia” às vezes se exerce de forma mais verdadeira do que a escorada nos pilares fantasiosos da arquitetura de Niemeyer.

De repente, o apito.
Todos alinhados. Aguardam o comando do treinador.
É a primeira competição amadora promovida pela instituição.
Um a um, motivados pelos gritos e aplausos, desatam os saltos tríplices. Em meio a outros meninos, a elasticidade e destreza de David humilham a raia. Os centímetros de seu pulo desatam um fenômeno. Classifica-se, de longe, à frente dos outros competidores.
O treinador observa com atenção o desempenho. Acostumado a instruir campeões, tem o hábito de catar prodígios com a paciência do olheiro. Tudo analisa sem se fazer notado. A performance do garoto o espanta. Com serenidade, retira da pasta um caderninho. Na primeira página, escrita a lápis, letras sublinhadas, a frase de um famoso especialista, a dizer mais ou menos assim:
– O saltador a distância há de ter rapidez do velocista, impulso de um atleta de salto em altura, exato ritmo de um baterista.
E o treinador logo traduz: Rapidez de um batedor de carteira, impulso de um capoeirista de subúrbio, ritmo de um sambista de morro. Vem-lhe à cabeça os dois campeões – Adhemar Ferreira da Silva e João do Pulo –, os atletas que arrebataram medalhas em Olimpíadas famosas. O treinador sabe que a maior parte de surpresas como aquelas descem das periferias. Um atleta como David, escorreito, elétrico, poderá ser uma delas. A frase que rumina toma corpo. “Com treinamento profissional, vai repetir os dois campeões”.
Ele sabe onde buscar os artifícios para ajustar um salto perfeito, arrancar medalhas ao atleta e merecimento ao treinador. Uma tarefa árdua, a demandar uma combinação bizarra de pai, estudioso de técnicas avançadas e amestrador de gente. Sem isso, nada se consegue num esporte como aquele: duro, exigente, solitário. Sobretudo, solitário.

O salto.
Pouco importa a beleza da curva do arquiteto invisível tentando subverter a Natureza. A parábola que o menino um dia poderá traçar vai ser uma espécie de alegoria. Ou um “voo abandonado no chão à espera de um pássaro”. Assim escreveu Joaquim Cardozo, no poema O salto tripartido, dedicado a Adhemar Ferreira da Silva.

O menino tem um jeito esperto. Lá fora, certamente deve ser chamado de “neguinho” ou “pivete” ou “flanelinha”. É assim percebido pelos que habitam o outro lado da fronteira que divide em dois um lugar indefinível chamado Brasil.
David desconhece a razão de seu salto.
Talvez não o perceba como uma fuga de si mesmo. No instante em que traça sua parábola talvez busque articular um impulso que dificilmente executará na vida. É um dos raros saltos possíveis a um “marginal” da periferia. Assim são classificados os que têm, como ele, um abismo certo no final da baliza.

O clima é de surpresa na tarde da Praça do Derby. Mas poucos ali acreditam que um chão tão sujo poderá acolher o vôo de um pássaro igual àquele.

Detrás do muro, passa o homem da tapioca.
O carrinho de CDs agora toca Garçom. De Reginaldo Rossi.

 

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N.B.
(Algum tempo após ser “liberado”,
David deu seu salto maior para o Infinito.)