Noroes Hana Luzia1

 

País nórdico. 

O inverno lá fora passeia em torno dos 20 graus negativos.

No escritório, especializado em fábricas de celulose e papel, o executivo exibe uma pedra ovalada. Cinzenta. Como um seixo qualquer, sacado de um leito de rio. De tão insípida contrasta com o ambiente sóbrio e requintado, ornado com obras saídas da oficina de Alvar Aalto.

O homem alto e louro, jeito de desportista, observa o olhar dos visitantes fixados no objeto inusitado. E diz ser aquele o mais precioso a ornar a sede da empresa multinacional, cuja filial brasileira, em São Paulo, emprega mais de quinhentas pessoas.

Numa espécie de passe de prestidigitação, ele debulha a pedra, devagarinho. Os “gomos”, de interior avermelhado, parecem extraídos de uma romã. À medida que a peça é desfeita, a mesa de centro vai se revestindo de finas lâminas talhadas, de feitio singular.

– Uma ametista do Brasil! – comenta o homem, sorrindo.


O seixo é substituído por dossiês, planilhas e mapas.

Cerca de uma hora depois, no intervalo do café, a conversa engendra comentários sobre o que se considera a grande proeza da época: o Projeto Jari.

A novidade é o espetáculo tecnológico do barge mill, o barco gigante rebocando uma fábrica pronta para ser fixada num local determinado e logo começar a produzir. Como o monstrengo no meio do mar, o de Fernando Pessoa.

O estudo sai do ovo em 1967. Pouco tempo depois, a fábrica de celulose, à qual está geminada uma usina termoelétrica, é rebocada do Japão por um navio. Percorre cerca de 25 mil quilômetros mar afora, durante 53 dias. A viagem é preparada com rigor de uma operação de guerra. Estudos minuciosos sobre correntes marítimas para otimização da rota e uma parafernália da mais alta engenharia devem tornar possível a ideia megalômana.

O monstrengo é fincado em área previamente inundada, sobre pilastras feitas com 3.700 toros de maçaranduba arrancadas da mata nativa.

Espécie de navio fantasma, deslocando-se entre continentes, a megaoperação bem poderia ter sido filmada com trilha musical de Wagner. Mas ao contrário da nau flamenga do compositor alemão – condenada a vagar eternamente –, a embarcação que zarpou do Oriente tem destino certo:
a Amazônia brasileira.

A iniciativa é idealizada e capitaneada por um empresário excêntrico: Daniel Ludwig, magnata da indústria naval. Um dos homens mais ricos do mundo, tem negócios em 23 países. Extremamente discreto, ao contrário de espalhafatosos multimilionários ianques, não gosta de colunas sociais nem exibe mulheres. Impossível encontrar informações mais íntimas de seu percurso. Homem certo para negociar com regimes que navegam em águas bizarras, nos quais espionagem, repressão e obras grandiosas e pouco convencionais fazem boa combinação. É personagem saído dos romances de Graham Greene.

Ludwig adquire, no coração da floresta brasileira, em plena ditadura militar, território quase do tamanho de Sergipe. Implanta uma espécie de Estado privado no interior do território do Amapá. Como ‘bonecas russas’, encaixando-se um dentro do outro. Com uma ressalva: o mais embutido é mais poderoso. O projeto Jari ignora a Lei que impede estrangeiros de controlar mais do que ¼ da área de um mesmo município.

Em vez de grande sucesso, Jari cambaleia. Os percalços são inúmeros, entre eles o fracasso da imensa plantação de gmelina. Espécime importada e reflorestada em cerca de cem mil hectares de mata nativa, não se adapta às condições da selva devastada. Prejuízos incalculáveis respingam nos cofres do governo brasileiro, cujo apoio financeiro, via BNDE (atual BNDES), é indispensável à montagem do plano faraônico.

O fato, embora comentado pela imprensa, tem pouca repercussão.

Nos arquivos secretos dos anos 1970, documentos sobre o tema certamente adormecem em gavetas seladas.

Curiosamente, especialistas em geopolítica do regime – como o general Golbery do Couto e Silva, apontado como um dos envolvidos no empreendimento – parecem ter “esquecido” uma iniciativa semelhante, menos de meio século antes do Jari, o desastre da Fordlândia.

Parênteses:
nos anos 30 do século passado, uma cidade, a Fordlândia, é construída na Amazônia para abastecer de borracha o fabrico de pneus da Ford. Cerca de 5.000 pessoas vindas dos Estados Unidos, incluindo engenheiros e suas famílias, instalam-se na cidade “modelo”. O plano prevê abrigar em torno de 10.000 trabalhadores. A experiência dura muito pouco tempo, deixando no seu rastro edifícios e equipamentos abandonados em meio ao Inferno Verde. A selva inóspita, mosquitos, doenças tropicais, a comida enlatada importada dos Estados Unidos e rejeitada pelos trabalhadores brasileiros de maioria nordestina – habituada ao frugal feijão com farinha e carne de sol – são algumas das causas da ruína.

Fotografias da cidade defunta lembram cenário de filme de terror. Em meio aos escombros de máquinas enferrujadas e edifícios carcomidos, vagam, hoje em dia, cerca de 2.000 pessoas sem abrigo. Enquanto, aos poucos, a floresta vai mastigando o que o homem tenta impor sem pedir licença:

Fordlândia.
Transamazônica.
Jari.


O escritório segue de vento em popa.

É tempo de algumas indústrias migrarem para países dos longes tropicais. As mais poluentes, sorvedouros de mão de obra barata e que rastejam benefícios fiscais. A da celulose, destinada ao fabrico de papel, é uma delas. Seu abominável “licor negro” – dejeto resultante do processo de digestão da madeira –, não se permite lugares como o do homem da ametista. São terras sombrias na maior parte do ano. As árvores, principal insumo, levam tempo demais para crescer, comparadas às que vicejam onde é largo o sol.

***

A conversa finda.

Lá fora o inverno continua em torno dos 20 graus negativos

O homem alto e louro recompõe as finas lâminas cor de sangue espalhadas na mesa. E, numa nova prestidigitação, as faz retroceder
à condição de seixo.

(A ametista, finamente talhada,
cintila sobre a mesa.
O homem sorri.
Nem se dá conta:
o faiscar da pedra
é metáfora do brilhar do fogo:
tudo arde.)