Jarkko nos contou que, numa de suas passagens por Paris, flanando sozinho, entrou na livraria Shakespeare and company. Após resistir à tentação de “passar a mão” numa primeira edição de Scott Fitzgerald, recomeçou o passeio até estancar de frente à igreja de Saint-Séverin. Entrou no templo gótico flamboyant e abismado com os vitrais, o bosque de colunas, os ornamentos, sentou num banco para descansar da caminhada mochila às costas. Reparou em torno. Não havia mais ninguém. Ainda ruminava o Paris é uma festa, lido à noite passada, de um Hemingway que fazia ponto naquela livraria antológica. Foi quando ouviu o órgão jorrar uma peça de Bach, enquanto no vitral dos apóstolos, São Pedro, túnica verde, testemunhava a cena empunhando uma chave. O poeta pensou ser aquilo o sinal de uma mensagem encoberta. A música escorria na matemática inebriante do compositor e, meio hipnotizado, Jarkko ficou ali quase toda uma tarde. E saiu reconhecido ao organista misterioso que certamente ensaiava para um próximo recital.
O concerto mais emocionante ao qual havia assistido, confessou. E um dos lances mais “congelantes” de suas andanças.
– Um barato!
(“Congelante” é seu jeito de intrometer na conversa expressões de quem vem de país gelado e, depois, mesclá-los aos da gíria brasileira aprendida com a namorada.)
Um dos folhetos na entrada da igreja explicava que São Vicente de Paulo – santo dos pobres e fundador da ordem das Irmãs de Caridade –, costumava acolher ali crianças abandonadas.
– Quem sabe, sou uma delas! – comentou Jarkko, rindo.
Aquela sua história serviu de mote a uma conversa sobre o quanto somos amoldados pelo espaço. Depois de ter passado mais de seis horas na igreja, era como se houvesse transcorrido apenas alguns minutos. Além de ter se sentido íntimo daquelas paredes a lhe debruçarem sobre o lado de fora do tempo.
Há locais com essa espécie de aura. Pode ser uma igreja ou um bar. Exemplo do boteco sujo, sem charme, com clientela cativa. De repente, o dono cisma que ficou rico, resolve mudar de ponto e acaba falido. Não compreende que num ambiente de bar como aquele até barata passeando pela calçada servia de mote a uma conversa regada a chope.
Fenômeno idêntico ao de quando entramos numa igreja ou num jardim árabe concebidos para a meditação e nos vemos transportados para uma outra esfera. Mesmo não havendo o som de um órgão, sentimo-nos tocados por uma música secreta, trazida ao nosso “ouvido de dentro”. E tanto pode ser uma cantata de Bach como um “desafino” de João Gilberto.
Somos tomados por uma sensação semelhante, quando participamos de uma cerimônia do Candomblé e observamos “baixar o santo”. Prometi a Jarkko que lhe daria de presente um livro da fotógrafa Roberta Guimarães, cujas imagens registram essas manifestações de raízes africanas e dão uma ideia do ambiente, adereços e rituais que costumam desembocar em transes.
– E caso queira se aprofundar no assunto, fique sabendo que em Lisboa já existe terreiro! – disse-lhe.
Respondeu-me que se houvesse algum em Lisboa, na época de Fernando Pessoa, tinha a certeza que o Poeta teria baixado por lá e inventado mais alguns heterônimos!
Jarkko contou vários casos ocorridos na sua infância na Finlândia, onde o escuro do inverno tornava tais “visitas” mais tenebrosas e faziam-no lembrar certos romances ingleses. Alguns de seus poemas, que prometeu logo traduzir, têm os rastros de lugares assim, que impregnaram sua memória e imaginação.
Comentei que o filósofo Evaldo Coutinho havia observado que o arquiteto pode ser considerado um “localizador de sentimentos”, ao cumprir uma coisa notável: deter o tempo. Entramos num determinado recinto e somos possuídos por uma espécie de espírito ali reinante. Se num edifício gótico, sentimo-nos identificados a alguém da época. E quando moramos numa casa que já foi habitada repetimos os mesmos gestos de moradores antigos e nos tornamos ‘estátuas móveis’.
É certo que novas invenções logo irão permitir grandes mergulhos nesses fenômenos. E seremos capazes de captar ondas sonoras que circulam entre nós. Se já observamos o interior do corpo através do ultrassom ou localizamos alguém a partir do GPS, iremos poder restaurar conversas antigas a partir de vibrações sonoras flutuando feito borboletas. Então “escutaremos” o que aconteceu dentro de casa e vamos recapturar nossos discursos, músicas e fofocas “arquivados” no éter.
– Pelos comentários dos blogs e sites brasileiros, quando isso acontecer os juízes vão ter que ter máxima cautela nas conversas! – disse Jarkko, em tom de ironia.
E arrematou dizendo que no dia em que inventarem o que apelidou “sh” – sound hunter, caçador de sons –, voltará à Shakespeare and company para “escutar” os papos de Hemingway, Scott Fitzgerald ou Anaïs Nin.
{Há tempos não tinha novidades do Jarkko.
Até que o Nuno Félix da Costa [nota 1] enviou-me este e-mail:
“Caro Everardo:
Encontrei hoje o Jarkko no Jardim da Estrela um tanto bebido.
À laia de justificação disse-me estar obcecado com os efeitos do álcool nos vários heterónimos do Pessoa e exagerara nas aguardentes ao tentar levar o Ricardo Reis a descontrolar-se como um bêbedo normal. Tal não acontecera quando experimentara beber como Campos ou como o próprio Pessoa cuja vulnerabilidade era transparente, mas Ricardo Reis não se descontrola nem cambaleia tal como não erra a métrica, constatara.
Estava sol e vento como em quase todos os domingos lisboetas, Jarkko tentava parecer normal sentado num banco do jardim, mas claramente sucumbira e nem o polimento poético lhe valia. Despedi-me advertindo-o que cuidasse da espantosa realidade das cousas que, tal como os horóscopos, também se desacerta.
Abraço”
Respondo ao Nuno que num próximo encontro com o poeta de Ääretön valkoinen tentarei saber que diabo ele carregava na mochila capaz de ter lhe provocado aquela “viagem” na morada de Saint-Séverin!
NOTA
[nota 1]. Autor do livro Pequena palavra: anotações sobre poesia (Cepe Editora, 2018).