Everardo Noroes jul19 Arte sobre Reproducao

 

O Diabo ofertou-me trinta poemas
e foi embora fazendo graça
fingindo-se de Fernando Pessoa. (J. H.)


“Aonde me levam os astros?”

Ao celular, Jarkko larga-me a pergunta, sem explicação. Logo sugere que nos encontremos no mercado de Campo d’Ourique, às 15. Está de visita à Casa de Fernando Pessoa, no mesmo bairro. Campo d’Ourique é conhecido por ter sido esquecido pelo tsunami que devastou a cidade em 1755. Mas, segundo Jarkko, não se livrou de outro tão grande quanto: o provocado pelo autor do Livro do desassossego que carrega na mochila.

— “Estou pelo Chiado. Chego já!”, respondo.

Fica pairando no ar a pergunta dele sobre os astros.

 

Entro no "elétrico" 28 abarrotado de turistas.

Três franceses comentam o ridículo do presidente Macron numa estação de esqui, enquanto Paris pega fogo com os coletes amarelos. “Paris ce n’est plus Paris...”, escuto. No jornal Le Monde, da véspera, fotos de fachadas dilapidadas da Apple, Louis Vuitton, Longchamp e outras casas que provocam frisson em turistas brasileiros e chineses. E eu pensando no tempo em que Charles Aznavour, o armênio, cantava o coração vazio de tudo como Paris no mês de agosto; Yves Montand, o italiano, entoava o tempo dos lilases. Tempo em que uma baguete com café creme era alegria matinal de estudante no Quartier Latin.

Desço em frente à Igreja do Santo Condestável ou São Nuno, o santo e herói, estrategista militar que nunca perdeu batalha, a quem Camões se refere no verso “ditosa pátria que tal filho teve”. Avisto Jarrko do outro lado da rua, à porta do mercado, jeito hippie. Até parece o gringo John, de São Paulo, que dá aulas de conversação em inglês andando pelas ruas e comentando livros de Faulkner ou pinturas de Kandinsky.

Sugiro a Jarkko umas voltas pelas lojas de queijos, azeites, frutos secos. Ele poderia provar um figo na farinha. Pergunta-me se é fruta cultivada no Brasil.
Conto o episódio de um secretário de governador, demitido por ter associado a fruta ao sexo feminino durante um almoço "oficial".

— “Acho esquisita a forma ‘latina’ como vocês observam essas coisas. De um lado, sexo sem problemas; do outro, o pecado medieval. E o jeito como tratam as crianças, como se fossem brinquedos! Namorar uma brasileira ajudou-me a perceber isso.”
Comento um encontro de escritores nórdicos ao qual assisti. A uma pergunta sobre literatura infantil, um deles respondeu de forma rude não existir diferença entre literatura para guris ou outra qualquer. Havia apenas Literatura. Ponto final!

 

Numa lojinha do mercado, o vendedor dá a provar um figo na farinha. Jarkko abre-o, cheira, fragrância de flor. Antes de provar, comenta:

— “É uma reprodução sexual diferente, flor invertida, ovário bem-nutrido! Se as coisas continuarem como estão no país de vocês, em breve figo vai ser proibido!”
Sentamos para o café e ele recita Alberto Caeiro:

A espantosa realidade das cousas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.

— “Penso como Fernando Pessoa”, continua. “A imagem poética é sempre uma ‘translação do sentido’. Por isso, marco meus encontros em cafés ou mercados públicos. Para sentir cheiros que condensem a saudade. Como o odor da resina do pinheiro de nossas florestas! Não sei se você sabe, mas o muguet é nossa flor nacional. Quando se lê um poema, os versos invadem nosso cérebro e o levam à morada dos sentidos. Mas um cheiro ou um sabor navegam em direção contrária. Vão direto à nossa sensação. Tocam-nos com mais sutileza do que um texto literário. Um poema poderia nos ferir mais fundo se tivesse cheiro. Quando sentir de novo este cheiro de figo, vou pensar neste mercado e, por inferência, no Pessoa.”

Aviso a Jarkko para ter cautela.

— “Por quê?”

— “Há os que chamo de ‘poetas vampiros’. Os críticos literários certamente devem ter classificações para eles. O poeta vampiro toma conta da alma dos candidatos a poeta que o apreciam. No nosso caso, toda uma geração foi ‘dominada’ por João Cabral de Melo Neto. Uma espécie de vírus para o qual não havia recurso. Escreveu numa forma diferente. Um tanto inspirado em Gonzalo de Berceo, autor espanhol do século XIII. Versos que lembram o cordel do nordeste brasileiro. A cuaderna de Berceo acabou virando título do Quaderna, um dos livros de João Cabral. Foi o nosso vampiro mais perigoso. Mas Fernando Pessoa é um caso à parte! Ele afeta não apenas poetas. Há gente que passa a vida a vasculhar armários e baús atrás de alguma coisa que poderia ter sido usada por ele. E os achados nunca findam!”

— “Soube até que escreveram sobre medidas antropométricas do poeta! Como se a Ode marítima tivesse a ver com alguma ordem anatômica!”, comenta.

A risada dá por findo o café.

 

— “Ainda não entendi a pergunta Aonde me levam os astros?

— “Na visita à Casa, vi um mapa astral desenhado na soleira da porta. Tomei um susto ao imaginar aquelas linhas e signos emaranhando-se nos neurônios, interferindo na minha escrita. Pesquisei no computador sobre os mapas astrológicos dos heterónimos feitos por ele...”

— “E então?”

Ri e comenta que buscaria desvendar que astros haviam anunciado seu livro Ääreton valkoinen (Infinito branco).

— “Sabes algo de astrologia?”, pergunta.

— “Nada! Mas tenho um amigo que conhece uma senhora dos lados de Alvalade. Talvez consiga o número de telefone para marcar consulta! Quer que tente?”

Abro os contatos do celular. Ligo para o Nuno. Peço-lhe o número da senhora que fez palestra sobre o tema numa das livrarias da Baixa.

Jarkko anota num papelzinho verde que tirou de dentro do livro de F.P., no qual há uma frase de Picasso, em inglês: I would like to live as a poor man with lots of money. Brinde oferecido por Maria, uma menininha que acompanha a mãe num trabalho voluntário na livraria solidária Associação Déja Lu, praça Luís de Camões, Cascais.

 

Despeço-me.

Do lado de fora, os 18 graus com sol sugerem a caminhada.

Digo-lhe que, em breve, veremos o aceno roxo dos jacarandás.