Frequentei durante muito tempo a Joie de Lire, aberta em 1957. Em pleno Quartier Latin, era um reduto de estudantes e da boemia intelectual. O dono, François Maspero, era considerado o ‘homem mais bombardeado da França”. A livraria tornara-se alvo de constantes atentados movidos pela extrema direita em protesto contra a independência da Argélia.
Numa bancada em que descansavam obras de diferentes autores espanhóis e latino-americanos, chamou a minha atenção um livro de poemas numa língua que eu não conhecia, o catalão: La pell de brau (A pele de touro). Seu autor, Salvador Espriu, era um destacado nome da lírica catalã do século XX.
Reli-o várias vezes. Vive recostado numa estante, entre as obras completas de Federico García Lorca e de Juan Ramón Jiménez. Já ouvi poema número XLVI do La pell de brau no Youtube, interpretado por Pau Alabajos:
Às vezes é necessário e forçoso
que um homem morra por um povo,
mas nunca todo um povo
por um só homem...
Lembro-me disso ao mergulhar no metrô Universitat, linha vermelha 1, Barcelona. Vou rumo ao município de Santa Coloma de Gramenet. Lá me aguarda Jordi Gol, redator-chefe da Quimera, revista literária com recorde de 39 anos de circulação. De vez em quando, vou com Jordi descobrir labirintos de sua cidade, restaurantes encrustados entre ruelas. Tal o L’Havana, no Carrer del Lleó, mais de 70 anos de culinária catalã, onde navegamos na fumaça dos “puros”, os charutos havaneses.
Dessa vez, temos encontro marcado com outro Jordi: o poeta Jordi Valls. O terraço do café é próximo à biblioteca da cidade onde o poeta trabalha. A manhã anda fria, mas um sol de inverno trespassando o mijo do copo de chope lampeja tons dourados sobre a mesa. Quando ele chega, é como se nos conhecêssemos. É frequente que isso ocorra na confraria dos poetas.
Na minha imaginação, existe uma trama invisível conectando a poesia de Jordi Valls à do poeta que “conheci” naquela livraria do Bairro Latino, em Paris. Um fio condutor. O fio condutor é título de um poema de Jordi dedicado a Fernando Pessoa, de seu livro Natura morta.
Comento o quanto acho singular o diálogo de sua poesia com a pintura. No livro Male, por exemplo, dois poemas (O cesto de pão e O quarto de Van Gogh em Arles), tratam da aura que envolve as obras de dois grandes mestres. O cesto de pão é o nome de um quadro de Salvador Dalí, datado de 1926. É o ano da despedida de Dali do mundo acadêmico, de onde foi expulso. Finda a obra, sua explosão imaginosa desintegrará o espelho do mundo das artes de então. Nos versos de Jordi Valls o “místico clarão na borda” da cesta de vime e os “miolos da certeza” do pão conduzem-nos à releitura da obra clássica do mestre do Surrealismo, como se nos dissesse:
Enxerguem no halo desse pão o futuro mordido, a fome de todos nós: Não é inteiro e ainda crepita quando o cortamos,/ brota da crosta branca pouco cozida/um místico clarão na borda/ da extremidade e ergue-se pela ausência/ de algo mais tangível ao cenário:/ a cesta de vime entrelaçado que marca/ o futuro mordiscado e depois a fome./ Santificado o nome como garantia/ que queremos muito bem e em qualquer/ recanto do lar poder encontrar,/ pelo menos, os miolos da certeza.
Com outro texto de Jordi Valls penetramos no quarto da casa de Van Gogh, em Arles. O poema é em torno do quadro pintado em 1890, menos de dois anos antes da morte do artista. A tela não tem o pontilhismo dos trabalhos anteriores. Tudo se amalgama, os objetos do quarto são coisas vivas. Nas paredes do dormitório realça um azulado tênue, como se os tons de Utagawa Hiroshige houvesse, de repente, despejado uma auréola zen sobre a moradia do conturbado pintor flamengo. Os vislumbres dos pastéis da técnica pictórica japonesa amainam a inquietação e a angústia que marcam tantas composições da fase anterior do pintor flamengo. É a influência da arte nipônica declarada nas cartas dirigidas ao irmão Theo. No poema, Jordi Valls capta com mestria essa circunstância. É quando o “olho” do poeta adentra-se no quarto transfigurado “antes de haver sido chamado” e repara o ausente presente “sutilmente em tudo”.
Presente no mundo, deglutindo sua essência, decifrando suas engrenagens, transformando a língua dos homens: essa a condição do poeta. O fio de sua navalha é quando o real se impõe com a ferocidade dos ratos. A contenção torna o gume mais agudo. E apenas a precisão de um tiro lhe basta. O poema FMI oferece-nos essa outra face da poesia de Jordi Valls: a denúncia da “fome dos roedores”, os que não se inquietam com o desvelar da arte e da beleza. Pois aos olhos desses ratos sobrevivemos “somente para produzir excrementos”.
Daí, a resposta entranhada numa poética que constrói um discurso amoroso com os objetos do cotidiano, em que azulejos arrebatam limites e traduzem a verdade do pássaro de Baudelaire, metáfora do “voo” do poeta:
O pó do pó
(Jordi Valls)
os azulejos brancos na parede da cozinha,
e entre os azulejos perfeitamente ordenados,
ele olhava o passar da unha discreta
pelo limite do contorno escolhido. Foi, então, quando
o amor adoeceu com tuberculose
e ele não sabia como agarrá-lo,
se com a filosofia natural do momento
ou com os dramas frequentes daqueles
casos. Ele, que futucava o gesso,
como se estivesse numa estrada poeirenta
do deserto de Sonora, fora-da-lei.
E nem é que procurasse a aventura,
nem propostas de evasão
mais ou menos críveis. Vinha do tempo dos morangos
pela margem do rio, da persistente saudade,
com aquele pensamento sórdido de:
“Eu não posso viver sem você, apaixonadamente”.
Era como memorizar a saudade pelo breve contorno
do azulejo, sem tomar a decisão
de avançar o dedo e queimar o Albatroz em pleno voo.
Despeço-me e desaguo-me de volta da linha vermelha 1, familiar ao poeta Jordi Valls. É o percurso que o levava todos os dias a uma desaparecida livraria Catalònia e à Universidade.
No meu vagão do metrô, clima de alegria:
jovens tocando derbak, percussão árabe à qual meu ouvido está habituado.
O sol se foi.
As mil noites e uma noite conjugam o poema.