Na tasca, mesas cobertas de toalhas estampadas com sardinhas estilizadas.
Sentado à minha frente, Jarkko Heikkinen, poeta finlandês que anda atrás de uma editora para publicar um livro traduzido para o português por um colega de faculdade. O título: Ääretön valkoinen (Infinito branco).
— Deve ser um lugar onde palavras são bichinhos negros brincando à beira de um lago perdido numa imensidão branca!
Rimos. Pedimos dois expressos.
Cheirou a xícara fumegante. Antes de sorver o primeiro gole:
— Café acelera o pensamento, detona alguma coisa de dentro. Acontece quando escrevo. Acelera, como se eu fosse uma máquina. Brodsky, o poeta russo, observou que escrever versos é um acelerador extraordinário. O café me provoca a mesma coisa. E não há cheiro como este, nem essa cor, entre marrom e negro, indefinida, a tingir nossa estepe mental.
Fez essas associações num português correto.
— Como conseguiu falar assim, com essa performance?
— Namorando uma colega brasileira durante alguns meses. Além disso, fiz um estágio num curso de línguas, em Helsinque. O curso foi complemento!, riu.
Deve ser bom poeta, pensei. São raros escritores que dominam línguas diferentes da sua. Como Yosif Brodsky, aliás. No seu exílio, o poeta russo findou escrevendo em inglês. Lembro quando saiu seu primeiro livro numa tradução francesa, Colinas e outros poemas, que eu costumava ler nas idas e vindas de metrô. E de como fiquei chateado com o processo em que foi condenado e preso por "parasitismo". No interrogatório, uma juíza perguntou-lhe:
— Quem decidiu que o senhor era poeta?
— Acredito que... isso é um dom de Deus!
Pedi a Jarkko para ler um dos poemas do Infinito branco.
Sacou da mochila um livrinho de capa clara com pequenos arabescos negros.
— Acho que nem todo poema é para ser dito. Não sei se é o caso do que vou ler. O recitativo impede o diálogo solitário entre o texto e o leitor, que precisa estar livre para apropriar-se do poema e dizer: Dane-se o autor!.
Abriu a página e apontou-me o título: Hulluuden kivi.
— Qual a tradução?, perguntei-lhe.
— Pedra da loucura. Talvez seja a tradução mais próxima.
Associei o título a uma das pinturas de Bosch.
— Será que imaginou aquele quadro do homem sentado, o outro de pé com um funil na cabeça abrindo-lhe o crânio para extrair o cálculo que produz alucinações?
Sorriu, quando lhe fiz a pergunta.
– “É possível. Como no tempo da Flandres de Bosch, há muita gente excêntrica na Finlândia. Não sei se em razão da solidão provocada pelo frio tão intenso, se pela escuridão que engole o sol quase todos os dias do ano. Muitas pessoas vivem em lugares ermos, rodeadas de florestas e de bichos selvagens. Sentem a necessidade do falar sozinho!
Enquanto dizia aquilo, notei uma espécie de melancolia que até o tornava simpático. Contrastava com a ideia que me transmitia de um personagem desenvolto e alegre, com experiência de mundo.
Pediu outro expresso e o bebeu de um gole só, enquanto contemplava pela janela da tasca o prateado do rio. Era por volta das 13 horas. Devia estar lamentando que a luz soberana que campeava pelo cais de Lisboa nunca visitaria seu país.
Mexeu-se na cadeira, fez um sestro de sobrancelhas.
— Primeiro, vou ler em finlandês. Assim, você pode me dizer se o ritmo e a harmonia lhe parecem agradáveis.
Era um pequeno poema numa língua impossível. Soava bem. Quando terminou, contei-lhe o episódio com um ex-colega iraniano. Num intervalo de trabalho, ele havia me chamado à parte, em tom de confidência:
— Você não conhece minha língua, mas vou recitar um poema para que sinta o quanto ela é bela!
Declamou uns versos, não lembro se de Hafiz, se de Omar Khayyam. Mas era mesmo fascinante aquela fala de quase mistério.
Jarkko comentou:
— Toda língua é prazerosa se o poema for tecido como um tapete persa! A música num texto pode ser como a cor numa tela. Mas, às vezes, um simples desenho, a carvão ou a lápis, nem precisa de colorido, tal a força de suas linhas. Poemas também são assim. É quando resultam num diálogo perfeito com o leitor. Não pedem recitativo. São como um croquis perfeito. E, em alguns casos, podem até se tornar uma espécie de exercício de possessão.
— E a tradução de seu livro?, perguntei-lhe.
— A tradução de um poema raramente é perfeita. De novo, Brodsky! Lembro uma observação dele: "Traduzir é procurar um equivalente". Isso mesmo! É impossível substituir um poema por outro. Sobretudo os de uma língua como a minha, que nem é indo europeia e, para complicar, tem 15 casos de declinações!
Do livrinho de capa com arabescos negros, retirou uma folha de papel manuscrita, guardada na mesma página do texto que ele havia lido. Era o "equivalente", em português, de seu poema:
Cava na tua boca
a voz que não existe.
Extraído de uma brancura de gelo,
retine no meu cérebro
o louco martelo da noite. (...)
— Gostei dessa associação entre a brancura do gelo e o "martelo da loucura". Não sei por quê, lembra cenas do filme Madre Joana dos Anjos: a brancura do hábito da freira contrastando com o negror da batina do padre fazendo o exorcismo, aquele convento no meio da neve, os cavalos brancos desembestados em torno do homem da estalagem segurando as rédeas...
— Curiosa essa sua associação entre o meu poema e o filme. Não havia pensado nisso. Vi a película num festival do cinema polonês. Nunca havia dado conta que esse filme me impressionara tanto assim!
Houve uma longa pausa, como se tivéssemos dando um tempo para digerirmos tudo o que havia provocado seu poema em finlandês.
Propus que fôssemos a um pub próximo, um lugar onde há um relógio que marca as horas ao contrário.
— É o único recurso que conheço para retornarmos ao "alfa". Ao princípio que leva ao princípio do poema. E, na circunstância, cabe bem uma estrofe de nosso poeta russo:
Não te espantes. O meu ofício é a metamorfose.
Quem eu olhar ganha de imediato os meus próprios traços.
Isto pode ser-te útil. Afinal de contas, estás no estrangeiro.