A voz ao telefone chega de um longe brumoso. Como a própria imagem do general caolho, personagem sinistro da história de França.
“Sim, fomos nós que matamos Audin”. Mataram-no à faca, para fingir que foi degolado pelos árabes. É insinuação típica de uma guerra suja. Na Argélia, era costume a degola de inimigos e traidores.
O general francês costumava praticar “fugas” e “suicídios”, à frente de seus serviços de inteligência. Escondeu durante muito tempo as execuções de conhecidos militantes nacionalistas, como Larbi Ben Mehdi e Ali Boumendjel. Seus métodos foram reproduzidos, depois, por discípulos latino-americanos. Os assassinatos de Vladimir Herzog, Rubens Paiva e José Jobim são exemplos.
Matamos Audin, diz o general. Fui eu quem deu a ordem. Em tom jocoso, conclui: "É isso que você quer saber?"
Mas ninguém acredita muito no velho militar. Sua medalha da Legião de Honra lhe foi arrancada após muitos abusos cometidos ao abrigo da farda. A “pátria” francesa não precisa mais dele.
Pouco tempo após o telefonema, ele se foi. Carregando enigmas de quem comandou a morte e a tortura de milhares de pessoas. Como “herança”, legou técnicas refinadas e brutais de interrogatório, aprimoradas em guerras na Indochina e na África. Mesmo assim, todas perdidas. Inclusive a Guerra das Malvinas, na qual seus discípulos portenhos, especialistas em reprimir compatriotas, logo se renderam aos ingleses, numa das mais vergonhosas batalhas do continente.
“Matamos Audin.”
A voz asquerosa esvaiu-se, enquanto ressurgia a figura de sua vítima, tal como na foto do jornal. Maurice Audin, o jovem e brilhante matemático francês, três filhos pequenos, um deles nos braços. Professor da Universidade de Argel, comunista, favorável à independência argelina, deixou inconclusa tese de doutorado de alta matemática. Era orientando de Laurent Schwartz, o ganhador do prêmio Medalha Fields pela elaboração da Teoria das distribuições. Audin foi sequestrado em junho de 1957 e “desapareceu” nas mãos de torturadores. Sob a supervisão do general caolho.
Na hora do sequestro, a mulher de Audin pergunta aos militares quando o marido seria solto. Respondem, curto e grosso. Dentro de uma hora, se for bem-comportado. Quanto a ela, que fosse cuidar das crianças.
Até pouco tempo, os registros oficiais rezavam que Maurice Audin fugiu sem deixar rastros quando era conduzido numa viatura. O Estado francês assumindo a mentira.
Agora, em setembro de 2018, o presidente da França discursa a responsabilidade do Estado no episódio. Mais de meio século passado. Quase pré-história. Personagens mortos, versões desencontradas. Funciona bem o véu estendido pelo Estado sobre o passado para esconder sua violência.
O caso de Maurice Audin reabre frestas no subconsciente da França e um testemunho de fogo está registrado num livro de perturbadora grandeza, La question. Henri Alleg, o autor, dirige, na ocasião, o jornal Alger républicain, o mesmo em que colaborava Albert Camus. Brutalmente torturado, Henri Alleg consegue sobreviver. Transferido para a prisão Barberousse, em Argel, depois levado à França, condenado a 10 anos de trabalhos forçados. Foge da prisão de Rennes. Em 1962, finda a guerra, regressa a uma Argélia independente e reabre o jornal.
Na prisão, um de seus advogados lhe sugere fazer o que seus companheiros analfabetos não conseguem. Publicar seu testemunho. Escrevinha em folhas de papel higiênico e os manuscritos vão sendo retirados aos poucos, escondidos nas pastas de seus advogados. Em 1958, La question sai do prelo. Descreve a jornada do autor, submetido a ignomínias numa das famosas casas da morte de Argel. Proibido pelo governo francês, o livro mobiliza os intelectuais mais importantes da França. Entre eles, o filósofo Jean-Paul Sartre.
“Um testemunho sóbrio, escrito no tom neutro da História”. Assim se manifesta François Mauriac, prêmio Nobel de Literatura. É que o narrador de La question sobrepõe-se ao torturado. Sem comiserações. E o leitor é dominado pela narrativa, desde a primeira página, ao perceber que um livro assim somente poderia ter sido escrito por alguém que respondeu com o silêncio à ferocidade das torturas.
Henri Alleg narra seu último encontro com Maurice Audin.
Torturado por dois paraquedistas, um deles, furioso por não conseguir fazer-lhe falar, pede ao comparsa para ir buscar Audin. O jovem professor entra na sala, arrastado, rosto macerado.
O torturador grita:
– “Vai, Audin, diz a ele o que vai acontecer! Evita que ele passe pelos horrores de ontem à noite!”
Maurice Audin apenas murmura:
– “É duro, Henri!”.
É levado. Desaparece.
Um paraquedista berra:
– “Aqui todo o mundo fala, seu filho da puta! Fizemos a guerra da Indochina, que serviu pra conhecer vocês! Aqui é a Gestapo!”
Uma filmagem mostra um Henri Alleg de volta a Argel mais de três décadas depois. A câmera foca um velho baixinho no convés do navio. A chegada ao cais onde amigos o aguardam. A confraternização do reencontro. O passeio de automóvel por ruas conhecidas. Ele sorrindo ao comentar que no lugar onde morou foi depois erguido o Palácio da Presidência.
Grande angular sobre um casario, a cidade aos pés. El Djezair. Argel, a Branca.
É sua volta ao lugar do martírio.
Sobe escadarias. As mesmas em que muitos prisioneiros foram arrastados. Avista a ribanceira onde homens eram jogados como animais imprestáveis. Conversa com os moradores, comenta sobre o que aconteceu com o amigo Maurice Audin. Aponta o lugar de onde foi lançado o advogado Ali Boumendjel. É uma das casas da morte de onde sumiu Maurice Audin e milhares de argelinos.
Junto à Universidade de Argel, onde o jovem matemático dava aulas, avista a Place Audin (Praça Audin). Fica no cruzamento de duas principais avenidas da cidade, a Rua Didouche Mourad e o Boulevard Mohamed V.
Para quem vem de fora, pode parecer esquisito aquela placa com o nome de um francês. É um dos principais pontos da capital do país, que perdeu quase um milhão de pessoas na guerra contra a França.
Para os argelinos, a Place Audin será sempre mais do que um lugar.
>> Everardo Norões é escritor, poeta e cronista. É autor de, entre outros, Retábulo de Jerônimo Bosch